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Romântico tem mais é que se f…!

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

Cada um constrói os moinhos de vento que lhe convém. No meu caso, também um cavaleiro da triste figura, resolvi brandir minha espada intelectual contra o romantismo. Faz tempo que minha desavença com eles começou. Talvez desde que me postei ao lado dos literatos russos. Desde então os românticos foram por mim responsabilizados pelas piores coisas que se sucederam na história do século XX. Sei. Quando negamos algo com muito vigor, quando isso que negamos sempre aparece nas entrelinhas de nosso discurso, isso passa a constituir parte de nós. E foi assim que cai nas redes de Hoffmann. Primeiro foi O pequeno Zacarias, um livro que devorei numa só noite. Abri e não consegui parar de ler. Hoffmann fala de feitiços, fadas, sapos pensantes, burros que fumam charutos e outras coisas estranhas que na USP tem aos montes. Depois li o Gato Murr, um gatinho arrogante que me fez rir quando não devia. Afinal, esses românticos são umas pestes!

Os românticos inventaram muitas coisas, foram prodigiosos em construir uma maquinaria infernal que colocava em curso uma imaginação poderosa contra o meramente existente. Foram hábeis artífices que promoveram uma ação contra a vida sem sentido, ao tentar, na forma artística, estetizar uma outra vida possível, uma vida aliás que não poucas vezes apontava para o traumático da própria existência. O problema de olhar para o abismo não reside apenas no fato de que ele nos olha de volta, mas também porque geralmente nos vemos sendo tragados por ele. Tudo bem! O romantismo fisga e então percebemos que há românticos e românticos. Precisamos respirar e nos afastar pois quem resistiria a Kleist e seu Kohlhaas dizendo aos seus perseguidores: “podes me levar para o cadafalso, mas eu posso e vou te fazer sofrer!”.

Sim, durante mais de uma década me dediquei a xingar românticos. Ler prazerosamente seus livros e escutar suas músicas! Meu moinho de vento. Goethe estava certo, eram reacionários católicos e poetas tresloucados, ainda que sua obra toda tenha sido consumida por eles. Com essas ideias, eu me voltava a Lessing, praticamente o pai do teatro moderno alemão, e — vejam só; apesar de morador de Itaquaquecetuba — eu voava alto com Schlegel e sua noção certeira de que há no homem um desejo de alçar voo ao infinito. Mas, alguma coisa havia com Novalis que se afastou sem mediação alguma da vida para respirar o ar das alturas; tentando alcançar a harmonia e a homogeneidade de uma vida autêntica em sua própria alma, o poeta se perdia nos labirintos de seus próprios devaneios. Essa era afinal minha profunda dissensão com esses grandes senhores; sua adesão a uma fruição de vida, a um só tempo, conformada e evasiva tal como o jovem místico do século XXI. Ao erguer castelos no ar, eles se esqueciam do mundo moderno. Mas, eu — como todo jovem marxista em início de carreira — estava errado. Sim, tudo bem! Eu acertava quando pensava que o mundo não se criava da cabeça de filósofos e de artistas, mas errava feio quando não percebia que o mundo criava a cabeça deles, que respondia pelos limites que o mundo orientava. E, no caso, os românticos responderam por aquele mundo e construíram os horizontes do nosso.

É muito interessante pensar que foram os românticos alemães que criaram a ideia de Ocidente tal como, em nossos dias, é reproduzido acriticamente pelos nossos maiores filósofos e críticos. Johann Joachim Winckelmann, até hoje um dos maiores nomes da estética mundial, com seu conceito de classicismo, retirou de vistas a importância da influência do Oriente na formação grega. Ao passo que o filósofo Johann Gottfried Herder construiu a ideologia do nacionalismo romântico a partir da ideia de que a língua constituía a unidade espiritual de um povo através de um desenvolvimento orgânico da comunidade desligada de influências culturais recíprocas. Esse exclusivismo da cultura de um povo ligado à língua e ao território seria o leitmotiv do nacionalismo, de modo geral, e a força do que constituía fronteiras assépticas entre o eu e o outro.1 Então se é o mundo que cria a cabeça de filósofos e artistas, essas fronteiras e esse nacionalismo emergente respondiam pelo mundo bem concreto, que era o colonial, e do qual só em 1890 a Alemanha faria parte.

É dessa pataquada que advém a noção de “milagre grego”. Uma vez que uma comunidade orgânica se desenvolve a partir de si, a Grécia, em sua grandeza, seria obra de um milagre. Assim, tanto o filósofo quanto o filólogo foram fundamentais para os românticos. E, com efeito, eles se afastaram da efetiva realidade para, inconscientemente, produzir fantasias imaginárias assentadas na nova forma de reprodução que passava a governar o horizonte geral. Por viva vontade, os românticos acreditaram ser possível poetizar a realidade de suas almas e as aspirações do espírito, a partir de um engenhoso construto de um mundo separado, completamente interior. Daí sua sedução aos jovens desavisados de todas as épocas. O problema maior é que essas formas tão bem elaboradas artisticamente, e que se voltavam inclusive contra a Aufklärung (esclarecimento), aos poucos legitimaram o nascente modo de produção e a reprodução da vida social. Tudo isso me deixa realmente pálido. Agora o que mais me aborrece é o fato de que justamente no momento em que judeus passaram a ser cobertos pela igualdade jurídica na Europa, a consciência nacional-romântica se tornou um orientalismo que abriu alas para o antissemitismo. O resto da história conhecemos.

Com a ideia de desinfecção do Ocidente, sustentada pela fantasia nascida no romantismo, em 1884 todo o aparato da noção de raça estava montado. Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff declarou em tom de guerra que os povos e estados semíticos e egípcios, que vinham se deteriorando há séculos, não foram capazes de contribuir em nada para os helenos. Eles eram, segundo o filólogo, os inimigos mortais da cultura helênica que, segundo sua fantasia racista, era parente da cultura alemã. Pronto, estavam abertas as alamedas para a constituição de fronteiras culturais imaginárias que responderiam pelo novo modo de sociabilidade nascido no colonialismo e contribuiriam com as naturalizações da noção de Ocidente, como mundo alheio, com a noção de raça para os povos ditos “inferiores”.

Pensando bem: até que meu moinho de vento não é tão de vento assim!