Pobre Adorno

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato
Toda vez que Hollywood apronta seu enlatado surge alguém para falar da chatice do adorniano de plantão sem, todavia, ocultar sua própria chatice; adesão e busca por integração ao instantâneo do momento. Sintoma do tempo, o chato, que fala da chatice alheia, nem se dá ao trabalho de ocultar sua colaboração algorítmica. Žižek, que desceu ladeira abaixo em nome da fé pelo Ocidente e “tudo de melhor que ele produziu para a humanidade”, aproveitando-se do hype — é assim que se escreve para não parecer cringe? (Deus, por que Tu nos abandonastes?) — mistura tudo de uma vez.
O resultado é um sucesso midiático na leitura de um texto que promove, por outros meios, o efeito esperado de fazer descer goela abaixo mais um produto da inocente indústria cultural. O progressismo delira, afinal; pode ir ao cinema com tranquilidade e tirar seu retratinho na caixinha rosa. “Nossa como sou um adorniano chato!”, penso comigo, “mas, pelo amor de Deus, me inclua fora dessa! Prefiro ser chato do que ser tiete!”
Adorno, o Theodor, se tornou qualquer coisa, qualquer “textão” de Facebook que fale legitimamente mal da indústria cultural. Nessa noite em que todos os gatos são pardos, o que importa mesmo é a vontade e a sua representação. Não precisamos mais ter vergonha de nossa anódina adesão e seguimos com nossa moeda nos lábios, nosso óbolo pago, rumando ao mundo dos mortos. A amenidade da defesa pelo enlatado não exclui, entretanto, a exasperação ante um pensamento como o de Adorno. Por isso, sempre seus ossos são revirados quando mais um filme “progressista” fatura bilhões de dólares.
No contínuo fracasso de uma crítica radical, perdemos os anéis e os dedos, matamos o bebê e bebemos a água. Irônico que, talvez, no momento em que mais se use o conceito de colonialismo como uma categoria crítica fundamental, mais parecemos nos deixar colonizar pela indústria hollywoodiana. E nessa seara não há qualquer interesse em pensar como o tempo vivido foi substituído pelo tempo das coisas.
O petrificar da história num eterno presente, ligado à constante reposição do fluxo de mercadorias, até nos faz questionar se por acaso a ideia de fim da história de Fukuyama não é uma realidade. Se deixamos de olhar com desconfiança para isso, o que dizer sobre o papel fundamental na forma mercadoria como um princípio transcendental de domínio do tempo e da totalidade social? Quem se importa com isso? O importante é ser cool — cool de burro, diríamos em Itaquá!
Na sociedade da mercadoria, a consequente busca pela passividade dos elementos mais críticos resultou na integração destes ao corpo administrativo da gestão, tudo em nome da sacrossanta reprodução e produção da vida social sob império do capital. Na distopia realizada, que faz Orwell ou Huxley parecerem ingênuos ao pensar em uma forma de dominação direta e explícita, o mundo está agora reunido sob o desenvolvimento de um mesmo tempo: o tempo do mercado mundial. Esse deus é também o deus que organiza o espetáculo mundial.
À exploração restava ser inscrita na forma de desejar o desejo desses potenciais críticos, aí, meu querido hipotético-leitor, como eu disse em algum lugar “não há mais uma necessidade de dominação coercitiva direta porque ela já está articulada na própria estrutura do processo de produção que governa o tempo”. A dominação imposta transfigura-se no desejo de ser dominado, sobretudo, com um salário bem pago e um trabalho concursado diante da hecatombe mundial.
Nesse tempo-mercadoria, o indivíduo nada é senão que uma carcaça a serviço do sujeito real: o capital. Quem se recorda que a tal colonização foi submetida à pseudonatureza desenvolvida pelo trabalho alienado mantendo sua estrutura imaginária como recurso humano? Assunto de velho! O tempo pseudocíclico do capitalismo tardio — aquele que oferece um eterno presente para a reposição do mesmo — se entranhou à experiência individual ordinária; ele cria o dia e a noite, o trabalho e o descanso, as férias e o lazer, etc. A indústria cultural — ah! A afamada indústria cultural… — acompanha esse processo nos mínimos detalhes.
O resultado é a colonização do tempo disponível do indivíduo. O pobre Adorno, tão achincalhado aqui e ali, muito antes havia percebido que o consumo cultural era a compra/venda da própria sociabilidade individual. O consumo cultural se tornava o lugar no qual se efetiva o processo de desejar o desejo; ele organizava as formas, de um desfrute passivo do indivíduo, que redefiniam também as próprias mercadorias a serem consumidas. Hoje temos o consumo “progressista” do cinema articulado ao que, noutro canto, Pablo Polese chama de capitalismo identitário:1 a fórmula do sucesso da representatividade do consumo.
Trata-se sempre disso: um simulacro vulgarizado do ativismo que incita uma despesa econômica excedente e sempre se traduz em decepções. Trata-se de pseudoacontecimentos políticos mediados pela equipe de publicidade que dão o tom de como funciona esta ou aquela identidade — agora imersa no plano de negócios de Hollywood. Talvez o chato que fale da chatice adorniana, diante desses produtos, no fundo se avexe é com sua adesão. Ele sabe que ao fim e ao cabo se tornou um sacana colaborador!
Viva a chatice adorniana!