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Os mandarins, de Simone de Beauvoir

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

A impressão mais forte que Beauvoir causa para quem lê seus romances é a de que a angústia pode ser palpável. Podemos tocá-la com as mãos ao virar as páginas de seus livros. No que se refere à obra de 1954, a condenação da escolha e a liberdade causada pela própria consciência de se ver livre, ante um mundo vazio de sentido, aparecem em conjunto com uma maturidade imposta pelos anos da guerra.

Em Os mandarins, o fascínio causado pelo encontro com a História — e seus tentáculos de violência que desprezam a vida —, os fortes contrastes, sombras e movimentos; os sujeitos que se recuperam dos traumas do nazifascismo — diga-se de passagem; apoiado pelo grosso da população parisiense — são dirigidos por uma narrativa implicada, expressa tanto pelo distanciamento quanto pela aproximação do narrador. Assim, duas vozes narrativas aparecem para dar conta das ruínas de uma Europa dilacerada pela falência da Aufklärung (esclarecimento) causada pela guerra e pela mutilação de qualquer sentido de humanismo.

No quadro pintado pelo romance é fácil distinguir as personagens reais: Sartre, Camus, Nizan, Nelson Algren e a própria Beauvoir… Isso sempre me fez pensar por qual motivo, ao invés da ficção, a autora não optou por um livro de memórias que com certeza teria feito mais sucesso e, quem sabe, tal como Sartre, teria lhe dado a alternativa de recusar o prêmio Nobel. Eu sei; pensamento de um verdadeiro filisteu… reconheço.

Mas a verdade é que isso constituiu a força desse romance; a hábil escolha pela ficção resguardou o sentido de liberdade artística, tornando a ficção mais real do que a descrição e a discrição próprias à memória. Com efeito, o real ressurge por trás das cortinas, quando, sem o peso seletivo e castrador da reminiscência autobiográfica, a narradora pode se ver livre e trazer à cena a obscenidade das escolhas e sua dificuldade de sustentá-las. É, aliás, isso que faz com que sintamos a mesma náusea das personagens; sem a falsidade própria à memória pode-se ir até o fim diante da falta de redenção de nossas próprias escolhas. Ficamos sem ar com Anne Dubreuilh.

Assim, assistimos a uma ficcionalização da realidade dos intelectuais franceses — os mandarins — que paradoxalmente nos permite compreender o obsceno do real de maneira mais efetiva. Embora todos os leitores reconheçam as personagens como personagens reais, sempre resta uma ambiguidade protegida pela ficção, uma lacuna preenchida pela imaginação do leitor. Algo lindo. E esse é só um dos recursos que constitui a força da poética desse romance. Numa era, porém, em que tudo tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado, tornado dado; numa era na qual o próprio inconsciente do candidato a funcionário público acadêmico é dominado pela nota de rodapé e pelas normas da ABNT, a ideia de uma ficcionalização da realidade, que se torne mais real do que aquilo que se apresenta documentado, é certamente provocativa. Tudo bem! Que salto! Peço desculpas, voltemos…

Se só nos frustramos perante uma escolha depois de tê-la escolhido, o romance de Beauvoir sinaliza de maneira radical, pela experiência de suas personagens, o drama decorrente dessa tal liberdade. Aliás, é a liberdade narrativa de um duplo ponto de vista — ora um narrador onisciente que observa as atitudes de Henri, ora uma narradora em primeira pessoa refletindo sobre si encarnada em Anne — que fornece os elementos centrais a tecer a trama da luta política e filosófica do pós-guerra. Subjacente a essa escolha, reside o ruminar sobre a própria guerra e a cegueira que se abatia tanto nos intelectuais quanto nos defensores do status quo.

O mundo era um lugar pior do que parecia e então como será possível amar depois da tragédia? Qualquer escolha que se faça terá irremediavelmente que lidar com essa questão. Por isso, em Os mandarins, a verdade da ruína é o que ilumina as ações de uma miríade de personagens que dançam ao som do jazz e se lamentam ao som de Edith Piaf. Uma polifonia de vozes que vão nos fazendo naufragar naquela França de setenta anos atrás e ainda incrivelmente atual.

A escolha pela ficção, diante de um assunto tão concreto, não deixa de causar vertigem no leitor, acentuando uma angústia que se desdobra frente ao ocaso e falta de redenção quer seja na política, como no caso de Henri, quer seja no papel atribuído à mulher, como no caso de Anne. A forma de exposição dos problemas arraigados na estrutura de uma sociedade despedaçada, e em vias de acerto de contas com seus fantasmas, acaba por nos conduzir às frustrações da esquerda. Henri encarna as contradições desse processo por meio de um movimento narrativo que desvela a estrutura social e a busca do sujeito em agarrar o processo histórico pelos cabelos. O engajamento na política, a despeito das ilusões perdidas, se mostra um passo decisivo sem o qual reina o cinismo.

Anne, porém, parece ser uma resposta ao ocaso das experiências históricas que dilapidaram o sentido de humanidade. Sua complexidade — a presença de desejos não resguardados pelo que está aí, mas pela tentativa de ir além do que está posto — parece indicar um outro caminho possível. É assim que o amor surgido das ruínas, num outro continente, num outro país, parece despertar outros possíveis itinerários para uma mulher madura, mas… a aparência engana. Ainda que abalada pela força do desejo de entrega, da sua dissolução no outro através de um amor idílico, Anne reconhece que esse caminho seria uma traição ao seu projeto de ser mulher. Isso me parece fundamental; reconstituiu o sentido do político a partir do feminino repondo o problema do pós-guerra noutra perspectiva: a possibilidade de um outro devir que torne as mulheres agentes da transformação a partir da recusa, inclusive da guerra. É realmente essa uma das forças de Os mandarins; a ideia de que as mulheres seriam decisivas no futuro próximo. É, pois, é! Parece que Castor estava certa!