O ódio à filosofia

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato
Uma das grandes questões que me persegue é entender o ódio à filosofia, algo embaraçoso sempre acompanhado pelo olhar de desconfiança e uma exagerada propensão pela expectativa ante uma estúpida tiradinha pedante. Vindo de classes populares, desde cedo me vi preso nesse olhar e no riso irônico a esperar que eu tropeçasse por andar com a cabeça nas nuvens. Além disso, a fama de ateísmo da matéria não causava boa impressão à candidatura de moço “vencedor” cara à experiência de favelado.
Mas é um saber fascinante. A filosofia tem como uma de suas tarefas reposicionar os problemas, torná-los vivos, e não simplesmente resolvê-los. O problema é que, nesse engenho, ela termina por desestabilizar o constituído. É ela que investiga o desenvolvimento dos conceitos e não só os produz, que os cria e não só os repete, como diziam Deleuze e Guattari,1 que desnuda problemas no aparentemente simples, naquilo que era posto “até ontem” como a ordem natural das coisas.
Quando cheguei a essa conclusão logo pensei que se a ordem precisa ser mantida, a filosofia é também insubordinação: o discurso perigoso que, para os adoradores da polícia, precisa ser calado. Outro traço de sua beleza reside no fato de que antes desse desmonte do instituído como verdade há um princípio da abstração cujas sementes são semeadas pelo exercício matemático — aposta-se na ideia de Revolução Agrícola ocorrida por volta de 3.000 a.C.2
A matemática foi o passo para o desenvolvimento da noção de razão, de filosofia e de ciência. No Oriente Médio, na China ou no Egito, o desenvolvimento das cidades, a necessidade do controle da produção ou do sistema de irrigação, guiou à edificação de um conhecimento que naturalmente tinha que estar correlacionado à verdade. A noção de verdade dependia totalmente disso, nessa gênese constitutiva do conhecimento como horizonte prático da organização da vida social, da correspondência direta entre as ideias e sua aplicação prática.
Essa radical possibilidade de abstração da matemática foi o pontapé inicial de uma investigação que partiu da realidade, mas não se limitou a ela. E com ela foram suspensos todos os prévios conhecimentos dispostos na vida comum alterando o presente. Se a matemática é o princípio de abstração guiado pelo esforço racional então esse exercício não pode ser posto no interior de um lugar geográfico ou nas mãos de alguns homens. Há, portanto, um grau de generalidade radical da razão.
Foram alguns pensadores europeus, imbuídos de predicados identitários e absortos em teorias racialistas do século XIX que passaram a ignorar essa generalidade da razão e quiseram tornar a filosofia monopólio de uma abstração chamada Ocidente, nascida nos porões do navio negreiro.
Ora, esse deslocar-se abstrato do pensamento, que coloca em xeque os conhecimentos prévios, efetivamente levou à desconfiança geral de todos ante o filósofo. Isso porque o acontecimento filosofia, próximo à liberdade de axiomas da matemática, volta-se contra as opiniões estabelecidas por meio de uma exigência racional singular que ultrapassa a tradição comunitária presa ao dado sensível e ao sentido comum da vida ordinária. Noutras palavras, a filosofia, ao suspender aquilo que é posto como verdade na cotidianidade, presumiu a agência do sujeito.
Foi assim que no grande caminho que percorreu, nos percalços que driblou, a filosofia se colocou questões que visavam substituir a doxa (opiniões) comum pelo exercício do logos (razão). Na política, como litígio e necessidade de pensamento, esse logos foi posto como palavra manifesta.
Se nos perguntamos qual é o ponto de emergência da filosofia? Qual ruptura ela causa na estrutura diluindo-a em hipóteses? Não foi justamente quando nos demos conta de que os deuses perderam seu reinado na consciência ordinária? Não foi justamente quando as explicações tradicionais sobre os maiores enigmas da vida já não eram satisfatórias? Não foi necessariamente quando se abriu caminho para a convicção de que a interpretação disso, que chamamos universo, deveria se sustentar em bases justificáveis ao exame? E isso não foi fornecido por uma atitude singular que suspendia e reconstituía o sentido da ação social?3
Se os mitos, e sua estrutura do sagrado, visavam responder os problemas últimos acerca da totalidade das relações contraditórias que a vida evidencia, com as transformações operadas no terreno da vida exigiu-se um novo pensamento, uma nova perspectiva, que encarasse a multiplicidade dessa nova totalidade. Uma nova perspectiva tornou-se necessária e com ela lançou bases à ciência cuja finalidade passou a ser a da busca incessante das leis e regularidades que regem a natureza.
Certamente, houve um estado intermediário, marcado pela resistência do mito que impunha o destino e seu caminho fatal com intervenções nada amigáveis dos deuses; eram seus uma luz, um sol pálido e um sentimento de acomodação ou pertencimento. Hoje, olhando todas as aventuras que a filosofia me proporcionou, chego à conclusão que essa estrutura do mito foi apenas deslocada com Platão, mas isso não é coisa que diga impunemente numa coluna de pouquíssimas páginas.
Me importa saber que o deslocamento do indivíduo, o rompimento com sua acomodação foi dado pelo golpe da razão. A filosofia irá certamente conservar uma ideia de necessidade dos acontecimentos, mas sua tarefa revolucionária será destituir o sagrado para entronar o caráter lógico e escrutável dos fatos concretos da natureza e da vida humana. O papel de desencantar e laicizar o mundo cobraria um alto preço.
Sabemos o quanto a filosofia, com a delicadeza nada sútil de sua desconstrução do estabelecido, foi perseguida. Sócrates, que trazia um desconforto geral ao anunciar que a solidez da tradição grega se dissolvia, foi talvez a primeira vítima fatal desse tipo de exercício. Mas, o que tinha feito Sócrates? Em termos grosseiros, lançado um convite nada ingênuo à reflexão sobre aquilo que era considerado como imutável.4 Fez sua fama, tateando desagradavelmente as crenças alheias, demonstrando que se, às vezes, os resultados daquilo que se crê são funestos, é porque a filosofia não deixa o saber ser atraiçoado pelas ilusões cotidianas. Por isso, sejamos francos, o ódio não é tão à toa.
Há um encanto pelo desencantamento promovido pela filosofia e às vezes me pego matutando se esse encanto, com a hecatombe do século XX, não se interverteu naquilo que visava negar, ou seja, se mitificou. Fico pensando: será que os filósofos não foram coniventes com os desastres? Em todo caso, eis aí uma ideia de amor!