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Negra e cantora lírica, como assim?

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

— Olá, Douglas, como vai? Acompanho seu trabalho, queria poder conversar com você!… É urgente!

Essa história, que agora narro, sempre me pareceu mais cheia de sutilezas do que os contornos que dei, muito mais complexa do que pude admitir na ocasião. Por isso, ela nunca saiu da minha cabeça. Consolidando-se como um impulso às minhas análises, permaneceu como uma sombra presente no que fiz posteriormente. Quando Flor (nome fictício) me apareceu, eu vagava errante pelos exames clínicos e críticos de Fanon e ao visualizar, em meu Facebook, aquele chamado, não me fiz de rogado:

— Aqui está meu Zap, por lá é melhor, não entro muito aqui! — respondi numa tarde de junho frienta e logo em seguida recebi uma mensagem no celular.

Poupo o hipotético-leitor das apresentações costumeiras.

— Eu não aguento mais! Ganhei uma bolsa para Viena. Não quero ir! Sou uma negra, ser cantora lírica era para ser só uma brincadeira! — ressaltou Flor.

— Como assim?…

— É isso, me tornei cantora lírica. Mas vou te dizer, Douglas… isso me ferrou! Me deslocou completamente da minha realidade; hoje nem sou reconhecida no lugar que me viu crescer, nem sou reconhecida fora dele. Quer dizer… o mundo da música erudita… você sabe como é! — encerrou um pouco quebrantada.

Pego de supetão, na completa ausência de alguma resposta, preferi ouvir o desabafo. A ideia de ser “reconhecida” era marcante na fala. Eu francamente não me importo muito com o deslocamento subjetivo. A história do sujeito é a história de um desavim. “Não posso estar comigo, tampouco fugir de mim”, dizia o poeta. O sujeito, entendido por Hegel ou pela psicanálise, é esse vazio constituído pelo fracasso da experiência em busca da identidade. Esse furo que sabe não ter nada de substancial em si senão a própria experiência que faz durante sua existência. Eis, a liberdade! Isso é certo, mas há algo diferente com o racializado, o desavim não é causado pela tentativa de identificação com o que se faz, ou com aquilo que se busca ser, mas com a impossibilidade da própria identificação já que seu lugar é um não-lugar:

— Eu fui. Fiz. Sou a melhor. Eu sei que sou. Mas, Douglas, quanta treta atravessei! Se você me perguntar hoje; o porquê… não saberei dizer. Eu quis ser a melhor, sair do que disseram que eu seria. Escapar do lugar que me cabia! Minha mãe achou até que eu estava endoidando. Cantando, tanto e tanto… Peguei o hábito de me consultar com fono (audiólogo). Quem se consulta com fono em Guaianazes? Cuidar da voz! Uma cantora… uma Maria Callas preta!… e assim fui. Agora tudo aconteceu. De repente, de todas as vozes, fui escolhida, vou para Viena! Já pensou, eu, mulher negra e cantora lírica, como assim? Não me sinto preparada, não quero ir, não me sinto bem?

O que geralmente nos incomoda nesse tipo de interpelação é o fato de que quem nos interpela já decidiu o que quer e espera de nós só a confirmação de sua própria decisão. Com efeito, tentamos hipocritamente decifrar o que o outro quer para não entrar em atrito. Uma vez, porém, que nem a conhecia e seu destino pouco me importava, eu poderia romper com a hipocrisia. Ao ouvi-la, pensava com meus botões: “o deslocamento aí não é qualquer coisa, se o desejo é sempre desejo do outro, numa sociedade racializada, na qual o branco aparece como o Ser, o ideal de brancura será o fundamento da subjetividade”, a esse apontamento seguia uma dúvida metódica: a ideia da “Maria Callas preta” era um ideal de brancura? Não dava para saber e, além disso, tinha algo a mais; a saída do que era dela esperado me parecia apaixonante. Lembrava a ideia sartriana: “liberdade é transformar aquilo que foi feito de você!” — um gesto fundamental. Caminhavam, numa mesma moça, dois sentidos: um ideal construído pela racialização e, ao mesmo tempo, a luta por romper com os lugares da racialização. A crise de sua posição tinha ficado exposta, daí sua angústia:

— Mas, por que você aponta a cor da Callas? — perguntei sorrateiro.

— Eu não aponto a cor dela, mas a minha! O que aponto nela é a grandiosidade da voz! — me disse.

— Sim, mas ao mesmo tempo essa voz vem acompanhada por aquilo que nega você, não é?

— Talvez, acho que concordo… o espaço do clássico é todo embranquecido. Acontece que fico pensando se não desejei e me tornei isso para me embranquecer!

— Não me parece, uma vez que você se assume quando se afirma como uma potencial Maria Callas negra! E certamente há algo na música que te toca profundamente e que rompe com as demarcações raciais, ou não?

— Sim. A música rompe, mas os espaços não! Esse, aliás, é meu dilema! — redarguiu prontamente ao que retruquei.

— Você sabe que a ideia de “ocupar espaço” é insipida. Você sente isso. Essa ideia só é válida com a premissa de destituir esses espaços… quer dizer, destituir os significados que os constituíram.

— O problema é esse também, não acho que eu destitua nada, me sinto só a marca da tolerância, a marca da democratização dos espaços, aquela que representa o respeito que os “chefes” dedicam à diversidade!… isso me dói profundamente, porque além de duas realidades na ideia, eu vivo duas realidades na prática. Um palco italiano, uma arquitetura neoclássica, tudo muito simbólico, limpo e cheiroso. Terminado o ensaio, porém, pego o trem e nele centenas de meninas vindo do trabalho cansadas! Mulheres pretas labutando, tristes em seus celulares… Que porra de representatividade é essa? Isso serve pra quê?

— Compreendo, concordo contigo; as formas de representatividade liberais-burguesas são armadilhas, só que não podemos deixar de perceber a força da representação naquilo que estrutura o imaginário social. Por exemplo, se já existisse uma Maria Callas negra, você não precisaria falar sobre Maria Callas, a branca… e claro, há nisso outras questões porque a operação homogeneizante do capitalismo também oblitera o acesso à historicidade daquelas identidades organizadas a partir da modernidade e que foram dela excluídas. Quer dizer, o capitalismo esvazia as identidades organizando uma espécie de história que lhe é própria. Nós temos os panteras negras e eles nos oferecem o pantera negra, entende?… o que quero dizer é que a própria forma de representação está em disputa, e essa disputa tem a ver, por mais que soe ultrapassado, com a luta de classes. Por exemplo, como cantora você deve saber o quanto os negros estavam presentes na música, inclusive na música erudita no Brasil de início do século XX. Essa história foi esquecida. Outro dia, lendo a biografia de Lima Barreto — sei que não tem a ver com música, mas serve para ilustrar — que Lilian Schwarcz escreveu, vi a ficha do Lima, sabe o que estava escrito nela? Lima Barreto: branco. Quer dizer, pensa só com Mbembe: o negro construiu a modernidade no lombo, mas simplesmente sua contribuição foi apagada… essa falta da história negra produz muitos impactos no imaginário social… Enfim, mas e Viena? E seu drama atual?

— Entendo, percebo isso, mas sinto que não estou fazendo nada, me sinto só porque me parece que esse passado negro, inclusive na arte, foi borrado, apagado e ninguém se importa! Me sinto cansada de viver esses dois mundos e de não ter voz em nenhum dos dois. Quer dizer… a única voz que tenho é quando interpreto. Aliás, é o único lugar que me sinto em casa!

— Então, você quer ir?

— Não! Não quero ir! Por que eu iria querer? O que isso muda pra realidade que me atravessa!

— Ué, sua própria realidade! Vai ter oportunidade de conhecer um novo país, novas amizades, novos olhares…

— Olhares racistas?

— Também! Mas serão outros olhares racistas, assim como outros olhares amigáveis, assim como outros olhares companheiros, assim como outros palcos e outros olhares de amor!

Quando me lembro desse diálogo, lembro que minhas ferramentas, no campo da análise, estavam marcadas pela tradição psicanalítica. Só depois vou deslocando meu olhar com a ajuda de Neusa Santos, Lélia Gonzales e Fanon. Quando enfim, chego em Isildinha Baptista, muita coisa muda de figura. No A cor do inconsciente, ela vai demonstrar como a fantasmagoria racial se impregna no corpo causando uma enorme dissociação no negro. Esse duplo deslocamento — o primeiro com relação à imagem de si (natural a todo humano); e o segundo com relação à imagem da imagem de si (próprio ao indivíduo racializado) — regula um espaço simbólico que funciona como um padrão de comparação em que o corpo negro assume um peso fundamental porque encarna a objetificação que impregna sentido à ação do indivíduo. Eu sei disso hoje, mas na ocasião do nosso diálogo não.

Olhando agora me parece que Isildinha Baptista dá mais uma volta no parafuso da dialética do ser negro. Enquanto Fanon pensava no duplo sistema de referências — experiência vivida aliás pela moça — Isildinha Baptista demonstra que a estrutura subjetiva da criança negra, antes mesmo de adentrar ao próprio mundo simbólico, já está marcada pela racialização. Isso significa que nosso desejo se molda pela estrutura simbólica racializada. Ou seja, é possível falarmos de uma cor do inconsciente. Essa conclusão nos choca. Como assim? Um inconsciente que não tem lugar, agora tem cor? Ora, se admitirmos que o inconsciente é estruturado como linguagem, sabemos que há uma historicidade à língua e ao seu desenvolvimento que impregna sentido à ação social. Quer dizer, está em foco o campo da cultura. O inconsciente é demarcado pela cultura porque é por ela que adentramos à ordem simbólica. Sendo ela racializada, também será racializado o próprio inconsciente. Sei disso com um pouco mais de critério hoje. Daí que é preciso implodir o edifício do presente racial para constituir uma nova cultura que não pode ter como modo de reprodução social o capitalismo porque é do seu embrião que a racialidade advém. Voltando ao diálogo, Flor me diz, com um riso sardônico:

— Não achei que você era um coach dos racializados! — rimos juntos e ela continua — Você sabe muito bem a trama que vem a seguir; esse não se sentir em casa é bem ruim, só que dessa vez estarei realmente longe! Você não acha que por mais longe que a gente vá, mais fica claro que a gente não vai romper com os processos do racismo e da racialização? Quer dizer, pelo menos dentro dessa lógica sistemática de fronteiras e diferenças fechadas entre nós e nós mesmos?