Sobre a maconha: com uma esquerda dessa quem precisa de direita?

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato
Estivemos a um passo do início do que poderia ser a superação de uma das mais violentas escolhas políticas da contemporaneidade: a “guerra às drogas”. Sem dúvida, a descriminalização da maconha faria parte de um importante debate público acerca dos estragos que essa opção causou e causará enquanto permanecer como instrumento de controle coercitivo. Infelizmente, as drogas permanecem como um problema da alçada militar, o sólido imaginário constituído exclui a possibilidade de pensá-lo enquanto algo ligado à saúde e a possibilidade de tratamento noutros marcos. Um imaginário inquestionável para amplo setor da ex-querda.
Um importante estudo do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESC) divulgou um dado importantíssimo: “em um ano, 2019, as instituições de segurança pública e do sistema de justiça criminal dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo gastaram mais de R$ 5,2 bilhões com a política de proibição das drogas”. O mesmo estudo mostrou que entre 2000 e 2020 a população carcerária cresceu 226% e que 32% dos crimes cometidos estão relacionados à lei de drogas sendo a maioria dos presos réus primários.
Com um montante dessa ordem estratosférica escoando dos cofres públicos ou no embasbacamos acreditando num ônus da arrecadação ou erguemos o pescoço e admitimos que essa “guerra” é na verdade um excelente negócio. A segunda opção parece ser a mais instigante ainda que a primeira também contenha seu momento de verdade. É só olhando para o negócio de morte que representa a lei de drogas, e para o dilaceramento que ela causou no país, que podemos entender a dinâmica de gestão brasileira normalizada pela herança colonial no seu DNA.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública foram 47,5 mil mortes violentas em 2022, como grau comparativo — e não relativo —, na Ucrânia desde o início da guerra, com uma das maiores potências militares do mundo, o saldo é 70 mil soldados mortos. Há, portanto, uma guerra em curso no Brasil contra uma população cujo poder de fogo não chega perto do montante operacionalizado pela indústria do assassinato estatal.
Por isso, devemos levar em consideração que o proibicionismo é uma escolha efetivamente política organizada por uma racionalização da morte lucrativa que tem relação umbilical com a “guerra às drogas”. Os estudos são abundantes, os fracassos são visíveis, então, por que parte volumosa da esquerda ainda julga a questão com olhos reativos? Lembra-te, hipotético leitor, da afamada onda conservadora? Com certeza a quebra de suas águas não respeitou os limites do espectro político.
Precisamos admitir que o grosso da esquerda brasileira é efetivamente conservadora e pouco propensa a pensar na questão das drogas, mas isso é pouco para explicar a desfaçatez surgida na defesa cega do partido e da escolha do presidente. O fato escandaloso é que há um vestígio colonial que invisibiliza o estado de mortandade causada pelo Estado contra pobres/pretos.
Sabemos, desde Césaire, que o cerne do domínio colonial reside nas violências que, ao se naturalizarem, se atam à estrutura simbólica como normalidade. Eis a herança colonial: ao se espalhar pelo corpo social, a situação de violência contra o “subhumano” racializado aparece como uma normalidade monstruosa. A política contra as drogas, tal como se configurou no Brasil, se traduz na mais exímia herança colonial. Sua força está em disfarçar sob o manto do estado civil — do direito e de todo aparato legal — aquilo que é regido pelo absoluto estado de violência em nome de uma guerra dirigida contra os “vagabundos” que, sabemos, são negros.
Na verdade, com exceção daqueles que foram violentados por essas medidas, quem está verdadeiramente maduro para esse debate? Quem de forma honesta se importa realmente com essa “guerra” que é dirigida contra um corpo marcado pela racialização? Quantos juízes negros há no Supremo ou no Conselho Federal de Medicina? Não confunda meu questionamento com uma mera questão de “representatividade”, o que quero afirmar é tão somente que o Brasil é dirigido e administrado por aqueles que, distantes dos canhões do caveirão, são totalmente insensibilizados à questão radical da violência que sustenta esse país — mesmo porque ela financia o aparato todo.
Com Fanon, sabemos que a vida sob império colonial é uma vida reduzida às dimensões do estômago, da implacável subsistência, do toma lá dá cá, da mesquinhez que retira do horizonte o livre fluir de uma existência digna, mas também retira a liberdade de pensar para além da lógica do possível. A própria imaginação de uma ex-querda ficou condicionada à colonização.
No intocado império colonial reduzimos o horizonte que se abre para a emergência da criação, a nossa vida colonial se estrutura na repetição e na sujeição. É contra isso que precisamos nos voltar: a crítica da vida colonial é uma crítica contra a violência, contra o medo e contra o apego à necessidade. Aqueles que ainda sabem de que lado bate o coração também estão cientes da necessidade de dar o fora! A luta contra o proibicionismo é, nesse sentido, radical e faz parte da descolonização de nosso imaginário.