Branquidão e branquitude

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato
Algumas nuances, se preservadas, nos ajudam na orientação do labirinto da racialização colonial e de sua herança. Até pode ser chatice, mas sempre é importante prezar pelos conceitos uma vez que nossa sociabilidade está radicada na linguagem. O dizer não se diz impunemente. Curioso que, apesar de odiar a filosofia, o Brasil é ávido por conceitos. Esses dias mesmo, acabei de ler um livro, Modernidade em preto e branco,1 no qual se mostra uma dessas façanhas dos tristes trópicos: a vulgarização da ideia de art nouveau. Tudo era art nouveau. Daí que não preciso ir longe para dizer que hoje igualmente se diz qualquer coisa sobre o racismo estrutural.
Alguns estudantes estranham muito minha ideia de resgatar um conceito usado por Guerreiro Ramos para pensar a fenomenologia da noção de raça, qual seja: branquidão. O estranhamento é causado pela minha implícita recusa de usar a torto e a direito a noção, muito divulgada a partir do importante livro de Cida Bento: branquitude. Explico sempre que, não é que eu me recuse a usar a ideia de branquitude, mas, saliento: depois da constituição das repúblicas e da transformação daquilo que Hobsbawm chamava a “era dos impérios”, só de maneira rara, em momentos de crise especialmente, a branquitude foi acionada. E o que isso significa? Entre outras coisas que a identidade branca de maneira estratégica só raramente é posta. No geral os brancos não se veem enquanto racializados muito menos enquanto identidade. A universalidade abstrata e formal encobre a necessidade de afirmação identitária já que, como sujeito pleno de direito, o processo de identificação do branco repousa na norma hegemônica. Sobre ele está o manto do homem universal.
Assim, enquanto a branquidão é a invisibilização da racialização promovida pela herança colonial-escravocrata em tempos de normalidade, a branquitude, que emerge em momentos de crise, aparece para reafirmá-la como identidade da “raça superior”. Leio a branquitude, portanto, como a afirmação identitária branca que busca tornar visível a racialização. A branquidão pensada por Guerreiro Ramos como herança colonial se refere ao espaço de partilha que organiza a linguagem dos seres sociais. É um pano de fundo invisibilizado na troca direita entre os sujeitos, mas que permanece como algo determinante a ela. Para compreender essa distinção, no entanto, é necessário voltar a Césaire.
Quando ele constrói a noção de negritude (négritude), a ideia era recolocar noutro patamar o discurso sobre o negro. Em 1932, Césaire, bolsista em Paris, conhece a revista Legítima defesa, escrita para a luta contra o colonialismo. Suas linhas já eram ácidas contra o mundo capitalista e contra o racismo. Com uma experiência pessoal marcada pela subalternidade colonial, Césaire se interessa sobretudo pelo discurso que fazia do negro uma espécie de sub-humano quando inicia sua publicação em L’étudiant noir (estudante negro), periódico organizado por estudantes martinicanos. É na terceira edição da revista que Césaire inventa a palavra négritude, em 1935.
Desde então, os embates em torno da noção de negritude são interessantíssimos: às vezes o conceito é criticado como ideologia, noutras como essencialista demais e até mesmo racista. Isso, entretanto, estava longe do que pensava Césaire, a reivindicação da negritude tratava-se de uma afirmação daquilo que era invisibilizado, daquilo que ocultava não só a raiz colonial, como a violência do processo fundante da modernidade. Então era uma afirmação da raiz traumática que organiza o negro e a raça como um signo moderno. A afirmação da identidade negra, pensada por Césaire através do conceito de negritude, organizava um outro tipo de discurso, uma nova gramática a respeito do negro e dos descendentes de escravos e que abria caminhos para pensar à história a contrapelo.
Assim quando ele lança em 1950 o Discurso sobre o colonialismo,2 em linhas vertiginosas, ele trata daquilo que governa o imaginário ocidental. Numa linguagem ácida, bela, inflamada, o colonialismo é visto como a construção de uma subalternidade dos povos não europeus. A herança colonial é a naturalização dessa subalternidade mantida por uma identidade construída pelo colonizador. A Europa reduziu de maneira drástica a variedade de experiência para além de suas fronteiras, e, como resultado, ignorou a capacidade dos povos dominados arrendando-lhes uma forma de identificação. É esse o solo que marca o discurso de Césaire. O paradoxo acentua o fato de que ao dar identidade a todos os outros, a Europa construiu uma identidade para si, mas que não a reconhece enquanto tal.
É só quando Hitler resolve reivindicar sua branquitude, a raça ariana, que a branquidão da Europa se torna visível no interior dos muros europeus. E quem é porventura esse branco? Não os judeus, não os eslavos, não os árabes da Argélia… O interesse de Césaire em Hitler evidência que a reivindicação racial, como finalidade última por parte dos brancos, é um evento traumático pois rompe com sua universalidade formal. Quando o branco resolve reivindicar sua identidade é porque se crê ameaçado pelas crises, pelo desemprego e pelas guerras, ou seja, pelas exatas condições de todos os colonizados. Por isso o que não se perdoa em Hitler “não é o crime em si, o crime contra o homem […] é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas”.3 O que é insuportável à Europa “humanista” é o fato de que Hitler desnuda o caráter particular de sua pseudo-universalidade. Ao reivindicar a raça superior, Hitler faz com que o obsceno do imaginário europeu, construído pela colonização, venha à cena.
Revelador, Césaire manda a letra:
ninguém coloniza inocentemente, ninguém coloniza impunemente; uma nação colonizadora, uma civilização que justifica a colonização — portanto a força — já é uma civilização doente, uma civilização moralmente atingida que, irresistivelmente, de consequência em consequência, de negação em negação, chama seu Hitler, quero dizer, seu castigo.4
Enfim, pode parecer chatice refletir sobre a nuança de branquidão e branquitude, mas, se o paralelo for a reivindicação da identidade, a branquitude não é bom negócio para as sociedades herdeiras do colonialismo. Muito melhor para os donos do poder é sustentar a posição da universalidade abstrata; a posição da branquidão que organiza de maneira fenomenológica as marcações identificatórias próprias à gestão e naturalizadas por ela.
Como Césaire parece evidenciar: reivindicar a raça por parte dos brancos destitui o jogo cinicamente organizado pelo colonialismo como aquele provedor dos lugares da álgebra social. Por que insisto nesse ponto? Porque diante da crise do capitalismo global hoje assistimos o crescimento da reivindicação da branquitude. Para muitos já não interessa mais essa universalidade fantasmagórica da branquidão organizada pela ideia dos direitos do homem. Estamos de volta à fase em que se reivindica o direito de um homem específico; o branco, burguês e cristão. Quer dizer, já se reivindica a branquitude aquecendo-se uma guerra de raças muito lucrativa ao capitalismo contemporâneo. Parece chatice, mas economizar a noção de branquitude e dá-la aos reais inimigos, e não ao coleguinha de sala, parece revelar algo de fundamental nos tenebrosos dias que seguem…