Resumo da ópera
Primeiro ato

Nas últimas semanas, os mercados financeiros foram mais uma vez assombrados por notícias e especulações a respeito de defaults bancários nos Estados Unidos e na Europa (Suíça). Como já se tornou habitual desde o crash de 2008, os responsáveis estatais pelo controle monetário entraram imediatamente em ação, para impedir que o problema se alastrasse até chegar a um ponto catastrófico.
No governo Obama, o sistema bancário privado norte-americano foi submetido a uma regulação mais apertada, e um fundo comum, provido pelos próprios bancos, foi criado para cobrir eventuais calamidades financeiras. Não demorou muito tempo, a regulação foi afrouxada para bancos pequenos e médios, embora o fundo tenha sido mantido. Justamente um desses tipos médios acabou assolado por uma corrida bancária, que o fez sangrar até a beira da falência. O fundo comum foi então acionado para salvar os correntistas com depósitos abaixo de 250 mil dólares.
Como nenhuma crise grave de banco individual deixa de abalar o sistema como um todo, o Federal Reserve (banco central dos EUA) resolveu ir além, provendo um “colchão de liquidez” para cobrir possíveis buracos não só do banco em questão, mas de um outro que parecia seguir a mesma fatalidade. Dias depois, na Europa, foi a vez do Crédit Suisse — banco tradicionalíssimo e nada pequeno — receber das burras do Estado suíço um auxílio multibilionário para o salvar de apuros semelhantes aos de seus consortes no outro lado do Atlântico.
Detalhe importante: observadores calejados da cena financeira nos informam que ninguém sabe ao certo se há mais bancos em estado comatoso e, portanto, qual a real profundidade do buraco. Tateando no escuro, as assim chamadas “autoridades monetárias” se veem premidas a despejar doses maciças de dinheiro público, a fim de apagar no atacado todos os focos de incêndio. E com isso entoam o solo que se repete há vários anos: sob o pretexto de salvar o conjunto da sociedade de uma catástrofe, alçam os detentores de capitais especulativos não só à condição de protegidos incondicionais, mas de chantagistas número 1 do poder estatal.
Segundo ato

Quase paralelamente a esses eventos, e longe das salas e corredores herméticos em que sua trama discreta se desenrola, os europeus vêm testemunhando um fenômeno social cujo barulho há muito não se ouvia, pelo menos não com tamanha ira e amplitude: a greve. São milhões de trabalhadores — britânicos, franceses, italianos e, para surpresa de muitos, até mesmo alemães… — que resolveram atender à convocação de seus (até pouco tempo atrás) empoeirados sindicatos, ao sentirem na própria pele o custo econômico da guerra da Ucrânia, expresso na erosão de seus salários por uma inflação previsível, mas igualmente inusitada.
Na França, como que indiferente a essa situação um tanto aflitiva, o governo do presidente Emmanuel Macron resolveu responder com seu próprio canto de guerra, declinando as melodias ameaçadoras de uma reforma do sistema previdenciário. Antes, havia tentado passar seu projeto através da via constitucional habitual: convencer uma maioria dos representantes do povo no parlamento sobre a necessidade de esticar por mais dois anos a idade mínima da aposentadoria. Quando finalmente se deu conta da indisposição da Assembleia Nacional, inclusive no interior da própria bancada governista, em vez de recuar, Macron decidiu dobrar o volume de seus acordes beligerantes, recorrendo a um dispositivo constitucional que permitia baixar por decreto a reforma pretendida. Um gesto que só fez aumentar ainda mais o grito de ira dos milhões de afetados, colocando-os num estado de ânimo quase insurrecional. E assim permanecem no momento em que este Resumo é escrito.
Ficamos a imaginar o que teria levado o presidente francês a adicionar tamanha carga dramática a um script já bastante dramático. Talvez estivesse resmungando nas coxias um certo contraponto. “Ora, se os regentes do sistema financeiro europeu podem tomar decisões de muito maior monta, do dia para a noite, sem consultar qualquer parlamento, por que não Eu, para implementar reforma tão pequena e singela?” Procedendo de tais resmungos ou não, eis que sua toada autoritária voltou a escancarar a contradição que, também desde 2008, corrói a passos cada vez mais largos a democracia francesa, assim como todas as demais submetidas à governança neoliberal: máxima leniência com os ocupantes dos camarins, detentores da riqueza e dos capitais especulativos; máximo rigor e inflexibilidade com o povão da “geral”…
Terceiro ato

Foi mais ou menos em meados deste janeiro que o respeitável público recebeu, meio sem entender direito, a notícia da invenção de um novo e fantástico personagem. Não alguém como nós outros, de carne e osso, mas feito de um imenso emaranhado de fios, corrente elétrica, semicondutores, processadores hipervelozes, justaposição de programas, algoritmos, “inteligência artificial”… enfim, uma espécie de deus ex machina repentinamente baixado nos palcos do mundo.
Seu nome: ChatGPT, GPT sendo o acrônimo de Generative Pre-trained Transformer. Não perguntem o que significa, embora a última palavra lembre um filme de ficção científica bastante popular, mas nada inspirador. Quem já o experimentou sabe pelo menos que ele é capaz de sugar e triturar, em questão de segundos, toda a informação disponível na rede mundial a respeito de uma informação ou tarefa qualquer que lhe solicitemos.
Triturar, isto é: processar a informação/tarefa solicitada, vertendo as informações coletadas num roteiro com começo, meio e fim. Se você pedir que resolva um problema matemático, simples ou complexo, se a solução (ou os diferentes pedaços dela) existir em algum lugar na rede, ele o fará; se pedir que faça o fichamento de um texto de Kant, ele também o fará. Não sei se alguém já tentou, mas é provável que se pedirmos para que componha uma ópera, ele nos a entregará prontinha, talvez num piscar de olhos. Certamente ainda não será das melhores, mas quem sabe um melê estranho de Mozart, Wagner e Puccini?
Nota bastante preocupante: poucas semanas atrás o respeitável público também tomou conhecimento de uma carta urbi et orbi assinada por altos especialistas da ciência informática e pesos pesados da indústria high tech, inclusive gente por trás do projeto e financiamento do próprio ChatGPT. A carta clama por uma moratória de “pelo menos seis meses” à continuidade das pesquisas para obter versões mais poderosas do que a última versão, já desenvolvida, do tal Transformer. Alegam, entre outras coisas, que “sistemas poderosos de inteligência artificial devem ser aperfeiçoados apenas depois que estivermos confiantes de que seus efeitos serão positivos e seus riscos manejáveis”.
Antes dessa advertência, o texto lança, em crescendo, uma bateria de perguntas assustadoras, até chegar à pergunta-síntese, talvez a mais desconcertante: “… Deveríamos arriscar perder o controle de nossa civilização?”.
Impossível desprezar o valor e a relevância do alerta, mesmo que sua proposta prática soe meio insólita. Porém, em vista do que foi dito nas partes anteriores deste Resumo, e do calibre do poder social que a soma dos signatários dessa carta representa, um pingo de ironia como que desliza entre suas vibrações mais graves. Mais ou menos assim: pessoas graúdas que hoje são capazes de controlar uma multidão incontável de outras pessoas e até parte importante do que acontece em nosso mundo, confessam piamente… que já não sabem direito se controlam o que elas mesmas estão fazendo!
Mas olhem só: “nós” (eles) contra “eles” (quem?)? Intuo que o jovem Frankenstein não esteja ciente dessa conspiração antecipada de seus futuros súditos. Pergunto-lhe: “Você [pelo menos você!…] sabe o que está fazendo?” Sua defesa: “Como um modelo de linguagem, eu sou programado para processar e gerar texto com base em padrões e estatísticas da linguagem natural. No entanto, eu não tenho uma compreensão consciente do que estou fazendo, no sentido de estar ciente da minha própria existência ou tomada de decisões”.
Resumo do Resumo. O ChatGPT ainda é um bebê, ou nem isso, o que me faz sentir um misto de alívio e desconsolo: afinal, Who is in charge?
(Em tempo. Peço a caridade de aceitar que este Resumo ainda foi escrito por alguém de carne e osso!)