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Por que regular o “território livre da internet”

Sabe que los ojos que miran la flor serán la flor, Roberto Ochoa

Tenho a idade da era digital. Com essa afirmação estou parafraseando o filósofo Paulo Arantes, que do alto dos seus 80 anos diz ter a idade da era atômica. De fato, nasci no ano em que o matemático Leonard Kleinrock defendeu sua tese de doutorado no MIT demonstrando a possibilidade de comutação por pacotes, modo como a troca de dados está até hoje em vigor na infraestrutura da internet. Meu primeiro e-mail, cro@ax.apc.org.br, tem 30 anos e foi aberto no Alternex, rede de internet implantada no Ibase, a organização não governamental criada pelo sociólogo Herbet de Souza na sua volta do exílio para “democratizar a informação”.

Em 1994, ano em que o governo abriu o acesso à internet comercial no Brasil, eu estava nos bastidores da convocação da coletiva de imprensa realizada pelo então diretor da Rede Nacional de Pesquisa, Tadao Takahashi. O Comitê Gestor da Internet e o Alternex, então comandado pelo Carlos Afonso, um dos diretores do Ibase, haviam ganho uma briga contra a Embratel e conseguido manter a rede nas mãos no Ministério da Ciência e Tecnologia.

De lá para cá, a minha vida on-line foi cada dia mais se confundindo com a vida off-line, até o momento em que passou a ser impossível fazer essa diferença. Ter a idade da era digital significa, entre outras tantas coisas, ter passado a maior parte da minha vida adulta imersa nas experiências de mudança da nossa relação com o tempo e com o espaço.

Nos anos 1990, a era digital se apresentava como um “verdadeiro mundo novo” e o mote da comunicação horizontal e sem hierarquias ou controle animava os programadores e inspirava o cientista britânico Tim Berners-Lee, criador do ambiente web, que tornou a troca de pacotes de Kleinrock um ambiente gráfico de navegação como conhecemos hoje, com veiculação de texto, imagem, áudio etc. Antes de Berners-Lee, a internet era um lugar inóspito frequentado por programadores, nerds, hackers e algumas pessoas curiosas que começaram a participar de grupos de BBS, uma espécie de bisavô do Twitter. Logo depois, tornou-se um ambiente comercial de grandes negócios, em que o comércio eletrônico ditava o funcionamento da rede e a expressão “território livre da Internet” passou a ser uma forma jocosa de fazer referência ao vale-tudo que já então se avizinhava. Todos os sites tinham pelo menos uma maldita “pop-up”, a janelinha de propaganda da abertura da página. Hoje, foram substituídas pelos avisos de “estamos coletando seus dados”, porque a mineração de informações de usuários é o maior negócio da rede.

É claro que junto disso sempre houve o tal uso horizontal e sem hierarquias postulado pelos primeiros formuladores da rede. Dos zapatistas aos manifestantes da primavera árabe, a internet serviu — e ainda talvez ainda sirva — para articulações políticas transformadoras. E foi nesse ponto que a ultradireita percebeu que era ali mesmo que poderia agir, mais uma vez usando como estratégia a repetição, no modo cínico, das formas políticas da esquerda, só que esvaziadas de seus conteúdos. Trump, Brexit e Bolsonaro são os três piores exemplos dessa combinação entre big-techs, algoritmos e farta disseminação de mentiras, como tão bem explica a antropóloga Letícia Cesarino em seu livro mais recente, O mundo do avesso: verdade e política na era digital, e nesta entrevista para a Rosa.

Chegamos assim ao momento em que o mesmo Berners-Lee libertário dos anos 1990 declara, conforme reportagem da Folha de S.Paulo, que “os governos precisam fazer alguma coisa e têm de estabelecer leis de controle para lidar com as coisas más”, um depoimento que poderia ser interpretado como apoio ao chamado “PL das Fakes News”, projeto de lei cuja votação se arrasta há mais de dois anos e pretende exigir que as grandes plataformas de internet se submetam às leis dos países onde atuam.

Daquela promessa (utópica) de “democratização da informação” que Betinho e Carlos Afonso trouxeram na bagagem quando desembarcaram no Brasil pós-anistia, recém-chegados do Canadá — onde a rede já se expandia nas universidades como instrumento de pesquisa e contato entre acadêmicos — parece ter sobrado apenas a suprasoberania de plataformas cuja concentração de poder inclui o domínio total sobre todos os nossos dados. Aqui, meu pessimismo se encontra com o de Paulo Arantes, e por isso comecei com uma referência a ele.

Mesmo sem nenhuma esperança, sou a favor do projeto de lei, sobretudo se considerarmos a explícita articulação entre a liberdade de uso das plataformas e a expansão das forças de ultradireita em diferentes países do mundo. É óbvio que o projeto tem seus problemas — o mais evidente é pretender entregar a regulação para a Anatel —, mas, nas últimas semanas, desde que foi retirado da pauta, tem suscitado uma enorme enxurrada de debates indispensáveis. Não deixa de ser curioso observar que a mais nova onda da inteligência artificial, o Chat GPT, tenha errado as informações sobre a tramitação do projeto de lei. Foi do jornalista José Roberto de Toledo a ideia de perguntar ao GPT o que é o projeto 2630 e a resposta é surpreendente. Segundo a inteligência artificial, o projeto já foi aprovado no Congresso e aguarda sanção presidencial. Repetindo o Toledo, “alguém avisa ao Arthur Lira, por favor”.

Demonstrações de força recentes do Google e do Telegram contra o projeto só indicam que aprovar um projeto de lei que permita algum tipo de freio ao abuso a que as sociedades estão sendo submetidas é uma necessidade política para resguardar a frágil democracia brasileira de seus inúmeros ataques. As chamadas big-techs são uma ameaça à soberania do Estado, instrumentos de veiculação de toda sorte de mentira e desinformação. O meu pessimismo reside aí: é difícil defender a soberania do Estado sem antes fazer a crítica ao modo de funcionamento do Estado no Brasil.

Não se trata de acreditar que o PL das Fake News vai resolver os imensos problemas com os quais estamos lidando, em especial em períodos eleitorais, quando a liberdade é posta a serviço do que há de pior na ultradireita, mas de defendê-lo ainda assim, pelo argumento mais simples de que é melhor isso do que nada.