Olhar sem ver os yanomamis

Alegrias, Roberto Ochoa
Eram os anos 1980 quando li pela primeira vez Sobre a fotografia, da ensaísta estadunidense Susan Sontag, publicação original de 1977. Lembro da estranheza diante dos argumentos da autora, que retiravam da fotografia — e, no mesmo movimento, também do fotojornalismo — o privilégio de retratar os fatos em si. Ora, para quem crescera admirando os registros de infância produzidos em estúdios fotográficos, para quem valorizava a compra dos caríssimos rolos de filmes e da revelação das respectivas fotos, era contraintuitivo aceitar que, como escreve Sontag, “a foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem”. Se é um pressuposto, então a fotografia também é uma versão do fato narrado. Fui obrigada a concluir, não sem algum espanto, que “as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos”. Entendo, no entanto, que para a grande maioria das pessoas, as fotografias seguem sendo, a despeito de todas as tecnologias disponíveis para manipulação e alteração de imagens, provas incontestes do ocorrido.
Com Sontag aprendi a perder a inocência em relação às imagens. Descobri também que a fotografia, embora não tenha o poder de definir o que é um evento fotografável, está a serviço desse evento, já que uma vez que algo seja estabelecido como um acontecimento, deve ser passível de ser fotografado, capturado, visto, exposto e posto em circulação. Desde o fim dessa minha ingenuidade em relação às imagens, observo fotografias com muita desconfiança, sempre lembrando a lição de Sontag: a representação imagética do sofrimento é um clichê e, de tanto sermos expostos a essas imagens, perdemos a sensibilidade a elas. Como consequência, acrescento, o sensacionalismo precisa aumentar em escala para a cada vez tentar provocar os mesmos efeitos. Por causa dessa suspeita, evitei ver as imagens chocantes dos índios yanomamis. Só me expus ao que foi inevitável, o olhar sempre procurando um ponto de escape quando o noticiário insistia em me mostrar as fotografias de pessoas semimortas, esquálidas, doentes, naquilo que já está classificado como grande tragédia humanitária do século XXI.
Acredito poder afirmar que as imagens dos yanomamis estão sendo veiculadas para sensibilizar a opinião pública em relação ao estado de devastação e abandono daquela população indígena. Porém, gostaria de argumentar — seguindo os termos do debate proposto por Dário Kopenawa Yanomami e Estêvão Benfica Senra no artigo “Precisamos falar sobre a beleza dos yanomamis” — que a circulação das imagens chocantes não operam a favor do povo yanomami, promovendo necessariamente comoção e solidariedade. Existe um vasto material fotográfico que nos permite vê-los na sua beleza, singularidade e na sua capacidade de agência. Penso em especial no trabalho de Claudia Andujar e as diferentes etapas de registro dos yanomamis, as primeiras ainda na década de 1970 e a mais recente a exposição “A luta dos yanomamis” (há uma pequena amostra do outro registro imagético a que me refiro no site do Instituto Moreira Salles). Malgrado todos os esforços, esse enquadramento não teve a força de se tornar a representação hegemônica dos yanomamis. Faltam a essas imagens, para seguir Sontag muito de perto, uma ideologia que sustente a forma de vida yanomami como evento digno de ser fotografado. Dito de outro modo, se as fotografias de Andujar ainda não nos sensibilizaram para a proteção do povo indígena, as imagens da sua destruição também não servirão.
Se apenas como povo destroçado os yanomamis podem ser vistos, veiculados e retratados, isso significa destruí-los mais uma vez, perpetrando a maior das violações que uma fotografia pode produzir, qual seja, criar e consolidar a percepção de que as coisas são como as imagens mostram. Escrevo para ir contra essa violação, trazendo Sontag de volta para reafirmar que fotografia é interpretação que, nesse caso, produz a falsa percepção de que sem a forte atuação do Estado brasileiros, o povo yanomami não poderá sobreviver. As imagens veiculam justo o contrário, já que a condição de pobreza e exploração do povo yanomami é resultado direto da ação do Estado contra essa população, seja na autorização para exploração das terras indígenas, seja na omissão diante do garimpo ilegal, seja no desmatamento da floresta onde eles vivem. O argumento, aqui, é tautológico: se não fosse a violência do Estado, não seria preciso apelar para ajuda humanitária do Estado.
As imagens dos yanomamis também me levam a discutir enquadramento, tema de trabalho primeiro do sociólogo Erving Goffman e depois da filósofa Judith Butler. Em Quadros da experiência social: uma perspectiva de análise (1974), ele propôs a análise das relações sociais a partir das interações pessoais e não apenas a partir dos sistemas ou das grandes estruturas, de modo a pensar como cada um de nós produz sua experiência pessoal. Desde então, a teoria do enquadramento de Goffman tem sido muito aplicada nos estudos de mídia justamente por permitir pensar a moldura ideológica na qual estão enquadradas as notícias e, mais ainda, a separação entre o que é ou não notícia. O enquadramento dos yanomamis como um povo desamparado opera, assim, para reiterar a ideia de que o tipo de vida dos povos originários deve ser eliminado, pelo bem deles, ou seja, para evitar que outra desgraça como essa aconteça. Para que esse enquadramento funcione, é preciso que os outros elementos — a beleza, por exemplo — fiquem fora do quadro. Esse jogo entre enquadrar e não enquadrar quem propõe é a filósofa Judith Butler, dialogando com Sontag, se valendo de Goffman, e indo além.
Em Quadros de guerra (2009), Butler discute como os enquadramentos participam da nossa concepção de quem conta como humano, quem vale como vida vivível ou enlutável, e propõe “enquadrar o enquadramento”, trazendo para a cena a moldura que produz os quadros e demonstrar, assim, a impossibilidade de conter a cena que se propõe a mostrar. Para que haja quadro, é preciso que haja algo fora do quadro, de tal forma que esse jogo entre dentro/fora participa da constituição do que entendemos como reconhecível.
Talvez seja mais fácil para a grande maioria das pessoas reconhecer os yanomamis como um povo destruído, percepção coerente com a ideia de que os povos originários são de tal modo primitivos que sua sobrevivência depende da sua incorporação à nossa forma de vida. Decidi não ver as fotos da devastação yanomami como um ato de solidariedade, uma afirmação de que nós — o “povo da mercadoria” — só sabemos olhar para os indígenas quando enquadrados pela moldura da devastação. Como argumentava Sontag, décadas antes da criação do Instagram, “hoje, tudo existe para terminar numa foto”. Em relação aos yanomamis, parte da tragédia é não termos ainda aprendido a admirá-los para além dessas imagens que, a rigor, retratam não a deles, mas a nossa aniquilação como sociedade.