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A gente se sente de mãos atadas

La Muda, Roberto Ochoa

A frase escolhida para o título foi dita por uma professora da escola estadual Thomazia Montoro, na Vila Sônia, em São Paulo, logo depois de um aluno esfaquear e matar uma professora e ferir outras quatro pessoas. Compartilho com ela o mesmo sentimento de impotência. Há doze anos atuo como professora em universidades públicas que estão sendo sucateadas e vilipendiadas por ações propositais dos governos federais, que vão do corte de verbas ao total descrédito. Sei que estou comparando coisas aparentemente incomparáveis — as mortes nas escolas com a destruição da universidade. Só me aproximo da professora da escola estadual, mesmo sabendo que a brutalidade que se abateu sobre a escola está numa escala muito mais elevada da que experimento todos os dias na universidade, para manifestar solidariedade e provocar uma reflexão sobre o que, afinal, esperamos da educação hoje.

Nós, professores e professoras, em qualquer grau de ensino, da creche de Blumenau à universidade federal, passando pelas escolas estaduais sob ataque cerrado, estamos vivendo há tempo demais sob a pressão de oferecer perspectiva de futuro num novo tempo do mundo em que, repetindo o filósofo Paulo Arantes, não há mais horizonte de expectativas. Durante os últimos seis anos — quatro de Bolsonaro e dois de Temer — as universidades públicas foram alvo de todo tipo de desmonte. A lista de providências emergenciais tomadas pelo governo Lula nestes primeiros 100 dias dá bem a medida do tamanho do buraco: não havia merenda escolar, as obras de reforma estavam paradas, as bolsas de pesquisa, congeladas em valores irrisórios, e as condições de trabalho só se deterioravam. Será preciso muito mais esforço para interromper um processo de destruição desse tamanho.

Enquanto as universidades públicas estão sucateadas, os cursos privados se adaptaram muito rapidamente a um modelo EAD onde diplomas são emitidos sem nenhum compromisso com a formação, no sentido mais amplo, aí incluídos os diplomas de licenciatura, indispensáveis para o exercício da docência no ensino fundamental e médio. Forma-se professores e professoras que nunca pisaram no “chão da sala de aula”, meu clichê favorito por tudo que nele remete à fábrica, ao operariado, ao trabalho braçal envolvido — e, em geral, obliterado — no trabalho intelectual de lecionar.

Minha identificação com a impotência expressa pela professora paulista não começou hoje, mas se agravou depois de saber que a brutalidade da qual a escola foi alvo é parte de um processo de aceleração nos casos de violência escolar: em oitos meses, foram dez ataques contra escolas, quase o mesmo número dos últimos vinte anos. Discursos de ódio e misoginia (sempre importante lembrar que, em Realengo, no Rio de Janeiro, o assassino só atacou mulheres) são a tônica e o motor da violência, combinado à ampliação do acesso às armas e a uma naturalização dos valores da extrema-direita na sociedade brasileira. Como solução, leio inúmeras reportagens apontando para o papel de professores e professoras, de quem se espera que sejam responsáveis por identificar potenciais assassinos, que sejam treinados para promover acolhimento, escuta e convívio social. A estas responsabilidades não se soma nem um centavo a mais em salário ou menos ainda se discute quais são as condições de trabalho a que profissionais de docência estão submetidos.

Os elementos de ódio presentes na violência da escola são expressos na universidade por outros caminhos: frustração e abandono de curso, mais frequentes na graduação; impotência no desenvolvimento da pesquisa e depressão, na pós-graduação, e uma inédita cisão entre corpo docente e discente. Poucos anos atrás, numa interlocução com o trabalho do psicanalista Gabriel Tupinambá, escrevi “Mais que um, menos que dois”, ensaio dedicado a refletir sobre a divisão que aflige discentes de universidade pública voltados para aquilo que a universidade promete — emancipação — e não necessariamente cumpre. Ali, já tentava mapear o modo como o sofrimento psíquico do corpo discente se refletia no adoecimento do corpo docente, em seus sintomas mais variados: alienação e trabalho; melancolia e messianismo; estresse e empreendedorismo. Pensei em pares porque a tarefa de profissionais de educação hoje é dupla: atuar politicamente para conquistar condições de trabalho e trabalhar, condição que se agravou durante os últimos quatro anos.

Ter sido, como professora, alvo da política de destruição de Bolsonaro — ora por ações deliberadas, ora por inação — produziu em mim marcas indeléveis, do estresse ao esgotamento físico e psíquico. É por isso que ouso comparar o incomparável, por compreender que todas as pessoas que estão envolvidas com educação no Brasil hoje caminham por um corredor estreito, de um lado imprensadas pela ausência material de condições de trabalho, de outro lado cobradas por resultados que, individualmente, não poderão oferecer. Por isso, junto-me em solidariedade à professora da escola paulistana e a todos os docentes sobre os quais recai o peso impossível da responsabilidade de estancar um processo de degradação social que se expressa nos diferentes espaços de educação que são, eles mesmos, impotentes para estancar. Tornados alvos, lutamos de mãos atadas, trabalhando antes para desatá-las e só então, exauridas pela batalha, lecionar.

Em uma passagem em que busca explicar a função da psicanálise lacaniana, o filósofo Alain Badiou foi muito feliz ao dizer que o tratamento visa levar o sujeito a fazer a passagem da “impotência ao impossível”. No desabafo da professora que dá título a este texto — “A gente se sente de mãos atadas” — está a expressão da impotência de quem trabalha com ensino público hoje. Resta descobrir como faremos essa passagem ao papel impossível da educação.