William Carlos Williams1

Existe uma poesia especificamente norte-americana? Um idioma poético que seria característico da América do Norte e que não se confunde com o inglês? Há quarenta anos essa era uma pergunta justificada; há vinte, uma pergunta ainda admissível. O médico rural William Carlos Williams, 78 anos, filho de um inglês com uma porto-riquenha, nascido e falecido na pequena cidade de Rutherford em Nova Jersey, Ridge Road n.9, respondeu para o futuro de uma vez por todas: ele é o decano e o patriarca de uma poesia que se libertou da dependência europeia e se disseminou por todo o continente, de Nova York a São Francisco.
O desejo do Novo Mundo de tornar sua língua madura e manejável na poesia, o esforço para chegar à autoconsciência poeticamente, está sem dúvida legível desde o começo na literatura norte-americana. Mas os modelos líricos da Europa, as atitudes e os tons importados, prevaleceram por mais de um século. O próprio conceito burguês de cultura, transplantado para o país à surdina e com grande empenho, era e ainda é estranho ao espírito norte-americano. Enquanto esteve sujeita a ele, a inteligência do país se afastou da sociedade em que vivia. Epigonismo e sentimento de inferioridade foram as consequências disso. Os poetas de colegiado, diligentes, corteses, bem-educados, os incontáveis versificadores de talento oriundos das boas famílias, homens que após três ou quatro viagens à Europa, em suas hermitage bem distantes das selvas de Chicago, deitaram no papel suas variações sobre temas europeus, desperdiçaram suas forças e passaram em brancas nuvens. Mas também os mais importantes — sim, eles justamente — estavam hipnotizados pela tradição literária. Pagaram suas revoluções com a perda de sua identidade americana. Assim foi com T. S. Eliot, que, aos 26 anos fixou-se na Inglaterra e, mais tarde, levando isso às extremas consequências, deu as costas a tudo o que fosse norte-americano: hoje ele se professa monarquista, anglicano e arauto de uma estética classicista. Ezra Pound abandonou o país aos 32 anos, para somente após a Segunda Guerra Mundial retornar (e não por gosto) ao seu local de nascimento. Hoje voltou a viver na Itália. Essas não são meras coincidências entre biografias. Encantados por um conceito de literatura que dificilmente poderia ser pensado como mais europeu, exigentes demais para se satisfazerem com prêmios de consolação e com concessões como centenas de outros vultos mais modestos, Eliot e Pound pagaram com o exílio suas citações de Dante e Catulo.
Outros poetas norte-americanos, pelo contrário, tomaram a firme decisão de se dedicarem à terra natal, rejeitaram polêmica ou, discretamente, o conceito de cultura tal como ele vigia em Londres, Paris ou Berlim, e se propuseram conscientemente a “cantar a América”. Mas seu engajamento ideológico e temático, por mais bem-vindo que fosse o sentimento próprio de nação, era de partida criar uma linguagem poética sui generis. Paisagem e poesia americana como mero motivo, como folclore e declamação, como mystique e autoafirmação: essa era a receita dos chamados regionalistas, de Vachel Lindsay, Lee Masters e Carl Sandburg — todos tributários do mais monumental e poderoso esforço poético de conquista da América, a obra de Walt Whitman. Sentimental ao limite da histeria, investida de uma retórica desesperada, essa obra permanece até pouco tempo em nosso século a maior exceção, o maior exemplo de inconfundível poesia norte-americana.
Williams também leu Folhas da relva quando era estudante. De 1902 a 1906 cursou medicina na Universidade da Pensilvânia. Ali conheceu Hilda Doolittle, que, mais tarde, fez nome sob o criptônimo literário H.D., Marianne Moore e Ezra Pound, dos quais se tornou amigo: “Ezra já gostava de dizer que eu era pouco educado e não lia muito. Até hoje ele faz isso.” Pound se engana. Durante o seu tempo de vida, Williams foi um leitor insaciável, embora assistemático e pouco criterioso. Seu conhecimento da literatura abrange dos provençais às antologias clássicas dos chineses. Mas em sua obra isso não aparece. Ao contrário de Pound, ele jamais anuncia suas leituras. Prefere citar uma velha negra ou um lavrador em vez de Cavalcanti ou Confúcio. Não se quer discípulo de nenhum mestre, nem praticante de nenhum modelo. Seu uso da tradição escapa à convenção barata que adora farejar “influências”. Ele não a recupera para continuá-la. Ele a utiliza com o propósito de saltar para o desconhecido. Williams pertence àquela rara espécie dos inventores: os que inauguram um começo e, em vez de serem depositários de legados, fundam-nos.
Somente uma personalidade fora do comum está habilitada para isso. Nenhuma “vida cultural”, mesmo a mais refinada e quem dirá a dos Estados Unidos, produz uma nova língua. Talento tampouco basta. O que Williams realizou pressupõe um espírito completamente independente. A autobiografia publicada por ele aos 70 anos de idade dá mostras de uma figura assim, um rarissimum na história da literatura, em plena ação.2 Isso define sua importância, mas a torna ao mesmo tempo sem préstimo para aquela rasteira espionagem comercial que gostaria de explicar a poesia a partir das circunstâncias de vida de quem a fabulou.
Williams repeliu durante toda a sua existência o papel do pontífice literário:
A pose do poeta, aquela atitude previamente calculada para o público: eu nunca quis nada disso — era o que mais me irritava em Pound. Para mim parecia uma velha sobrecasaca… Meu treinamento me conduzia mais à discrição e à invisibilidade do trabalho científico. Precisávamos simplesmente fazer o nosso melhor e não importa o efeito esperado (o de uma coisa única em si), eu acreditava que o melhor seria levar uma vida comum… Isso, desnecessário dizer, não era muito do agrado de nosso querido Ezra.
Nenhuma surpresa de que as sobrecasacas oficiais ignoraram a literatura de Williams por um século. Até hoje não o perdoaram por ele não ter granjeado boas opiniões, não lhes ter dirigido nenhum gesto e parecer não dar a mínima importância ao seu lugar na história da literatura. “Tudo está em se propor e responder a todo instante a pergunta sobre o que se fez. Esse é o único modo de manter as mãos limpas. Participação cega não é perdoável de forma alguma, seja por pressão, seja por superação. Quando muito, porque a saúde acaba.” Uma doutrina assim não prima pela popularidade. O papel heroico do outsider foi rejeitado por Williams com tanta obstinação quanto o do membro de facção poética. Sem amargura, ele conta do destino de seu primeiro livro, hoje considerado uma preciosidade: saiu pela Editora Ele Mesmo; as vendas atingiram quatro exemplares; o restante perdeu-se no fogo junto com o galinheiro onde ficaram estocados por uma década.3
No ano de 1921 veio a lume seu quinto livro de poesia, Sour Grapes.4 Sobre sua recepção, Williams relata:
Os psicólogos me atacaram em bando por causa do título. Eles perguntavam: Sour grapes, sabe o que isso significa? — O quê?
Que você é um amargo, um frustrado, um desiludido… Tem inibições… Com os jovens franceses não é assim, eles simplesmente persistem… Mas você tem medo, como um típico americano. Mora em seu pequeno subúrbio e ainda gosta disso! Você, uma grande figura? Acredita que pode ser um poeta? Um poeta? Ha, Ha, Ha, Ha! Um poeta! Sour grapes é a única coisa que você tem a oferecer.
Mas com o meu título tudo o que eu queria dizer era que uvas azedas são iguaizinhas às doces: Ha! Ha! Ha! Ha!.
A crítica americana, salvo por raras exceções, falhou diante de Williams: por perplexidade, por arrogância, por ressentimento de um autor para o qual ela era indiferente. Revelador é o juízo de Eliot, que, ainda no início dos anos 1920, esclarecia: “Williams é um poeta ao qual provavelmente se pode conceder alguma importância local.”5 Gertrude Stein não o levou mais a sério. Ele a visitou em Paris. Devia ser por volta de 1924 quando a escritora lhe mostrou manuscritos amontoados em seu apartamento: “Ela me perguntou o que eu faria em seu lugar com todos aqueles livros não publicados… Se eu escrevesse tanto assim, disse, escolheria o melhor e o resto iria para o forno… Meu comentário provocou um silêncio terrível. Mrs. Stein o cortou com as palavras: Compreendo. Parece que escrever não é o seu métier.”
Ao que tudo indica, a vanguarda não conseguia aceitar que Williams pudesse exercer sua profissão de médico com competência e satisfação. Ainda mais em um bolsão provinciano dos Estados Unidos (não em Berlim ou Paris, como Benn, Döblin ou Céline). “Um trabalho assim sem maiores exposições tem uma grande vantagem”, observa Williams.
Com ele, mantemos a cabeça no lugar e podemos pensar. Minha forma de pensar é em primeira linha meus rabiscos. Esse sempre foi o meu passatempo favorito, rabiscar… Cinco minutos são mais do que suficientes. A máquina de escrever estava sempre pronta no meu consultório. Bastava que eu puxasse a prancha embaixo da mesa e eu podia pôr mãos à obra. Eu escrevia o mais rápido possível. Em meio a uma frase, um paciente entrava pela porta e com um empurrão, ela desaparecia. Pronto. Eu era um médico. — Mal ele havia partido, era puxá-la, e pronto, já estava escrevendo de novo… Sempre me perguntam como eu conseguia fazer dois trabalhos ao mesmo tempo. As pessoas não entendem que um é a complementação do outro, que essas duas atividades são duas perspectivas do mesmo, ou seja, do todo.
Williams, desde sempre uma cabeça pragmática, nunca pôde admitir a ideia de fixar suas percepções em uma poética. Toda rigidez ideológica lhe é profundamente adversa. Suas considerações teóricas são muitas vezes contraditórias; quando não sofríveis. Mas seria possível destacar algumas frases em que a compreensão da poesia se demonstra clara e aguçada: “Um poema é uma pequena (ou grande) máquina feita de palavras. Nada em um poema é de natureza sentimental. Com isso quero dizer: tanto quanto uma máquina, ele não pode conter partes supérfluas. Seu movimento é uma manifestação mais física do que literária.” Williams reclama ocasionalmente a “cientificidade” como seu método; a relação com sua formação em medicina é inequívoca. Entre seus modelos literários, ele cita o entomólogo francês Henri Fabre. O fato de que essa preferência não resulte em um procedimento das ciências naturais, mas sim em um fenomenológico, é o que se mostra em sua reação ao seguinte episódio-Hemingway, registrado em sua biografia:
Bob (um conhecido de Paris), contou que esteve com Hemingway na Espanha. O trem que os levava parou em uma estação e os passageiros desceram para tomar um pouco de ar fresco. Ao lado da plataforma havia um cão morto. Sua barriga estava inchada e o cadáver se decompunha em todas as cores do arco-íris. Bob queria se afastar do fedor, mas Hemingway ficou por ali, tirou sua caderneta do bolso e começou a fazer descrições minuciosas da carcaça em toda a sua plenitude. Bob se retirou enojado. — Acho que Hemingway está coberto de razão, eu disse.
No prefácio de seu livro de poemas Kora no inferno Williams indica como critério último de qualidade para a escrita a observação exata do visível e sua transformação em um texto que o torne representável.6 Isso conduz a uma singular poesia do próximo, daquilo que está “debaixo do nariz”. “Meu terreno, este quintal dos fundos, sempre foram da maior importância para a minha escrita.” Não foi sem razão que Eliot e Stein, habitantes das grandes capitais, suspeitaram tendências provincianas no médico rural Williams. Bem considerado, no entanto, o provincianismo pode ser uma virtude para o escritor. No caso de Williams nada sugeria gestuais de capitulação: sua zone não era menos prodigiosa que a Paris de Apolinaire. Ela se chamava Rutherford e era indiscutivelmente americana: suas transformações ao longo do século refletem a história do continente.
Caminhando por Rutherford, pela rua principal, com suas farmácias iluminadas pelas novas luzes de neon e seus escritórios de advocacia um em cima do outro, é difícil imaginar o povoado onde cresci. Naquela época não havia canalização, distribuição de água, nem mesmo tubulação de gás e muito menos eletricidade, telefone ou trilhos de bonde. A passagem de pedestres era feita de placas de madeira pregadas em vigas; as vespas faziam ninhos sob as tábuas e zuniam pelas frechas. Picavam como loucas. Eu podia contar nos dedos as ruas que tinham calçada. E as primeiras pavimentadas foram uma sensação! Tínhamos poço artesiano no quintal dos fundos e celeiros, como a gente do interior — tudo isso a dez milhas do coração de Nova York! Bebíamos água da chuva que as calhas levavam para as cisternas. Na cozinha, havia uma bomba manual e com ela mandávamos água para uma caixa de zinco instalada no telhado. Quando ela esvaziava, ganhávamos uma nota de dez a cada hora bombeando.
A casa inteira era iluminada por lampiões — pois é, sou assim velho! Nos quartos, eles ficavam pendurados em ganchos de ferro e tínhamos um exemplar especial em vidro e porcelana sobre a mesa da cozinha, suspenso por uma corrente: era preciso tirá-lo dali para limpar, encher e acender.
Quando Williams começou a escrever, esse idílio já pertencia ao passado. Hoje a área de Rutherford compõe um reino limítrofe roído e devastado pelas marcas da civilização técnica, uma Zona-de-Ninguém entre campo e cidade, distrito dos cemitérios de automóveis, dos barracões Nissen, dos galpões de locomotivas e dos tanques de petróleo, parte da infernal paisagem do norte de Nova Jersey:
— uma rota franja de árvores e fachadas de tijolos
sobre a cidade, sumindo,
além da caixa d’água a pino,
uma ou duas casas isoladas aqui e ali,
nos campos de barro.O céu é imensamente
amplo! Nem uma alma. As casas mal
numeradas…Pedregulhos
e guardireios abandonados interrompidos
por ladeiras transversais.
Morro abaixo
nos pequenos jardins separados (Keep out
you) pomares nus e entre o galhau
de videiras sem poda casas baixas
chuviscadas por luz desobstruída.
Cordas de aço
nos varais, em um uma toalha
azul e branca arfando suave.Colchões de pluma das janelas e cobertas por
linóleo velho e serrapilheira, figueiras. Latões
sobre arbustos…Espírito do lugar ergue-se destas cinzas
repetindo em segredo um obscuro refrão:Esta é minha casa e onde vivo.
Aqui nasci e este é o meu escritório —
Isso é o que se encontra no poema Manhã. Essa paisagem retorna inúmeras vezes nos poemas de Williams. Ela a aceita, compreende, faz dela o seu lugar justamente ali onde ela é mais mofina e esquálida.
Wallace Stevens, a cuja poesia Williams deve muito, destacou e tornou famoso o aspecto “antipoético” de sua obra.7 Nisso há algo de verdadeiro. Mas a força para fazer poesia a partir de cinza e refugo não está na petição de princípio programática ou mesmo no parti pris moral. Williams não pretende de modo algum lidar com um conceito — aliás, rebaixado — do poético, para que assim possa negá-lo. O despojo é, em primeiro lugar, nada mais nada menos do que um fato empírico e o poeta o encara com aquela falta de prevenção, aquele “primeiro olhar”, que lhe são próprios. Sua agudeza de visão é desconcertante. Em toda e qualquer circunstância ele dá preferência ao detalhe em vez da metáfora. Seus recortes são sempre feitos com mão certeira. Muito de sua técnica remonta à pintura, que aliás ele desde sempre tratou com muita atenção. Seus melhores poemas lembram às vezes a arte gráfica asiática, especialmente por sua economia, a arte de poupar. Essa maneira de escrever sempre teve como perspectiva tornar evidente sem oferecer à interpretação. Ela evita deliberadamente as “profundezas” e em vez disso apresenta a superfície com a mais intensa pregnância. Daí sua impenetrabilidade, aquela qualidade que Pound denominou opacity. Assim o que não é vistoso mostra-se aprazível, o descartado torna-se sofisticado, como no conhecido poema O carrinho-de-mão vermelho.
A observação cuidadosa do arruinado revela seu sentido como busca pela saciedade do que está pleno. Perfeição é o nome do seguinte poema:
Ó amável maçã!
linda e completamente
podre,
nem um contorno marcado —talvez com umas poucas
ruguinhas no topo mas fora
esse lado perfeita
em cada detalhe! Ó amávelmaçã! que
profundo e envolvente manto
marrom cobre sua
superfície intocada! Ninguémmoveu você
desde que a pus no parapeito
da varanda há um mês
para madurar.Ninguém. Ninguém!
Isso é vida suspensa, uma nature morte. A expressão francesa acerta em cheio. A poesia-de-coisas desistiu de insuflar sopro anímico nos objetos (como em Rilke); não é a sua perenidade que se louva; sua verdadeira consistência, a transitoriedade, surge no próprio instante em que ela decai. Só nesse sentido e em nenhum outro um poema assim pode ser compreendido como metáfora, e, no caso, como metáfora implícita, que não está lá para testemunhar por um outro, só por si mesma. Uma espécie de canção descreve a poética desses poemas-coisa; o poema nomeia como emblema de seu próprio modo de escrita a flor que rompe pedras para, de repente, brotar — saxífraga.
A maior parte dos trabalhos de Williams são exemplos dessa maneira de apreender por lampejos. Eles lembram uma poesia feita de instantâneos. Com isso, os vários aspectos dos fenômenos parecem se concentrar em um átimo de segundo. Esse olhar por cortes multilateriais, essa espécie de tomografia, foi nomeada “epifania” por Joyce. Williams, que prefere a linguagem cotidiana, usa para isso a palavra glimpses, isto é: revelações rápidas e passageiras, que parecem ter sido flagradas com o canto do olho. Sua metamorfose em poema pressupõe não somente a acuidade da visão, mas também uma extraordinária capacidade mnemônica. Williams dispõe de uma memória para o detalhe que, ora resulta em assombro, ora em calma. A descrição de sua vida está repleta de epifanias. No ano de 1890 ele estudou por alguns meses em Leipzig. Embora fosse então um septuagenário, ele ainda se recordava dos gritos de euforia que saudaram o Zepelim; de uma garota que lhe perguntou as horas (estava sem relógio, mas ficou feliz por conversar); da wagneriana Gotterdämmerung, de um ensopado de caça chamado Hasenpfeffer; de uma velha senhora que todas as manhãs vinha pegar grama para seus coelhos em frente à prefeitura. Suas recordações são de uma dignidade irrepreensível porque não fazem nenhuma distinção: voltam-se para atendentes de armazém com a mesma atenção com que recuperam a lembrança de um escritor mundialmente famoso e falam de Maiakovski com a mesma clareza com que descrevem um gato que o acompanhou por alguns anos. Ele dedica um capítulo inteiro de sua autobiografia ao peixeiro que descia a Ridge Road com ele todas as manhãs, como se isso não fosse razão para surpresa.
Williams nunca se interessou pela “humanidade”: esse vocábulo seria impensável em sua boca. Ele se preocupa mais com as pessoas. O retrato desempenha um grande papel em sua obra. Sua data de nascimento é idêntica à dos poemas-coisa. A técnica do poupar o ajuda, com sua grande vivacidade, a atingir uma virtude que, sem intenção deliberada, se comprova no sentido moral, não apenas no estético. Uma delicadeza que, antes de qualquer coisa, torna possível falar até do mais íntimo. A imagem de sua avó no leito de morte, tão generosa quanto inclemente, é um notável exemplo de arte do retrato.
A destruição é um tema que atravessa todo o trabalho de Williams. Os homens que ele apresenta, assim como as coisas em sua deterioração, também chegam à sua mais alta evidência na doença, no envelhecimento, na morte. Sem dúvida esse saber está associado à atividade burguesa do poeta. Pois o médico é o único que participa como testemunha ocular daqueles instantes de verdade e tem acesso à esfera proibida do sofrimento e da degradação físiológica. As terras devastadas e os homens-ocos de Eliot reaparecem — é verdade que mais palpáveis e menos sumários — em muitos textos de William Carlos Williams. Esse tema atinge sua culminação mais impiedosa no poema Completa destruição.
A precisão lacônica de seus retratos deve-se não apenas ao olhar atilado e à memória eidética, mas também a um ouvido infalível para inflexões de voz, maneiras de falar, em uma palavra: para as vozes com que esse autor conta.
O que as pessoas tentam dizer, o que elas querem sempre, incessantemente e em vão sugerir é o poema que elas procuraram realizar em suas vidas. Nós o temos ali, à nossa frente, como se pudéssemos pegá-lo. Ele está presente a cada instante como uma substância muito sutilmente dispersada, que podemos escutar em tudo o que se diz. A poesia tem sua origem em palavras ditas pela metade, como as que um médico pode escutar todos os dias de seus pacientes enquanto os trata.
Essa língua falada do dia a dia passa de tal maneira para os poemas que nada se perde de sua autenticidade. Williams escreve sem qualquer consideração pelo último maneirismo das correntes literárias e evita todo jargão, tanto o erudito quanto o seu oposto, a gíria. Esse uso justo da linguagem informal é especificamente americano; e uma das razões essenciais para o enorme efeito que Williams exerce sobre a nova poesia norte-americana.
O refinamento de seu modo de escrita é ao mesmo tempo camuflado pela aparente cotidianidade desse uso da linguagem. À primeira vista seus poemas parecem até um pouco sem-graça. O grau de adensamento que eles atingem só se revela por uma observação mais concentrada. Cada tentativa de traduzi-lo é uma provação no exemplar. Sua concisão é inatingível em alemão. Nossa poesia, como de resto toda a nossa literatura, é hostil à linguagem familiar. A famosa exceção de Arno Schmidt soa em seu contexto absurda e despropositada; a tentativa de lançar mão da linguagem de todos os dias é mal interpretada como obscuridade.
Sua habilidade em transpor inflexões e gestos para a poesia permite a Williams, além disso, pôr fim à convenção literária que assume como fato consumado que a vida familiar, a existência cotidiana em uma casa, a intimidade na cozinha ou em um banheiro não possam aparecer na poesia moderna. É um estranho tabu, caríssimo aos poetas deste século, que o Polo Norte, a bomba atômica e o Minotauro sejam mais dignos de sua atenção do que a toalha, a geladeira ou a gaveta do aparador. Onde a linguagem da poesia se distancia de toda fala, pouco se admira. Fiel à sua máxima de que o mais próximo seria o teste de resistência para toda escrita, Williams domina com graça e sem nenhum esforço aparente os frágeis objetos da existência doméstica, por exemplo nas miniaturas Um adeus amigável e Isto é só para dizer.
W.C.W. (como seus amigos e alunos o chamam) não se contentou com as pequenas formas que ele domina com tanta soberania. Sua obra é bastante vasta. Ela abrange uma série de peças de teatro, um grande afresco da história americana, diversos volumes de contos e três romances. Esses trabalhos não poderiam ser analisados aqui. Por outro lado, um ensaio sobre sua poesia estaria incompleto sem um comentário sobre o maior poema de Williams, Paterson, no qual ele procura reunir o conjunto de suas experiências e possibilidades.8 A crítica acadêmica, que adora trabalhar com conceitos tradicionais, confundiu-o com um poema épico em versos; mas entre Paterson e esse gênero clássico há em comum somente seu aspecto mitológico. Seria melhor compará-lo com os Cantos de Pound, com o Canto general de Neruda, com Fleitapozvonotchnik [Flauta-vértebra] de Maiakovski, com os poemas mais longos de Saint-John Perse como Anabase e Amers. A organização de um texto tão grande impõe enormes dificuldades. Williams utiliza para sua construção os mais disparatados materiais, formas gastas de canções e éclogas, monólogos e diálogos; ele acopla por montagem na estrutura dos versos textos em prosa dos mais diferentes formatos; cartas, relatos de crônicas antigas, testamentos, posters, tabelas geográficas e lendas indígenas. O que surge disso é uma imagem extraordinariamente plurívoca. O pathos da grande forma é contraditado por um humor cediço, a evocação celebratória, pela intrínseca ironia do empírico.
Paterson é antes de tudo um lugar real; uma cidade industrial à beira do rio Passaic ao nordeste de Nova Jersey, 150 mil habitantes, alguma indústria têxtil e metalúrgica. Essa dimensão coletiva se manifesta no poema como pessoa, como “Mr. Paterson”: “As múltiplas facetas da cidade podem ser um testemunho da diversificação do pensamento humano.” Essa sabedoria dá origem a uma mitologia da civilização americana e de sua história. Mas o poema também contém o reverso: seus cinco livros são ao mesmo tempo uma história natural do rio Passaic, desde sua nascente, passando pelas grandes cataratas, até sua foz. Também o rio aparece magicamente antropomorfizado em pessoa, como Anna Livia Plurabelle em Finnegans Wake. Como em tudo o que Williams escreveu, ele também enxerga nesse aspecto mais ambicioso de sua obra uma conexão com sua profissão e sua existência “provinciana”:
Nova York estava fora do meu campo de visão. Com pássaros e flores eu não queria me contentar; queria escrever sobre as pessoas que estavam próximas de mim, que eu conhecia bem até os menores detalhes — conhecia seus olhos de longe, conhecia até mesmo o seu cheiro. Isso é a tarefa de um poeta, não tratar de categorias vagas: escrever sobre o específico, o único, como o médico trabalhando com os pacientes que estão na sua frente.
Está claro que um autor nesses moldes não pode se comportar, politicamente, em relação ao todo da sociedade, segundo os critérios de uma ideologia. Ele não pode se submeter a nenhuma doutrina, não por divergir deste ou daquele tipo de conteúdo, mas devido ao caráter abstrato inerente a toda doutrina da salvação. Williams é um democrata de nascença: a democracia é para ele menos uma convicção do que um elemento vital, simultaneamente imprescindível e óbvio. O Cristianismo lhe é alheio, como toda reverência à autoridade. A crítica americana algumas vezes quis censurá-lo por suas tendências “à esquerda”; certo nisso é que Williams é incapaz de aceitar sem contrariedade a injustiça social e a corrupção econômica; mas ele seria igualmente incapaz de se comprometer com os dogmas comunistas. Não em profissões de fé ou em manifestos, mas a cada letra impressa até mesmo em seus mais minúsculos poemas, mostra-se como esse homem está profundamente vinculado ao destino da América. Quase nunca em sentido expressamente político, e por pouco não inadvertidamente, sua obra reflete com extrema sensibilidade o choque coletivo sofrido pela sociedade americana: a entrada na arena da grande política internacional, os roaring twenties com seus filmes mudos e as almas penadas da Lei Seca, o grande boom e a grande crise, o New Deal de Roosevelt, a hecatombe da Segunda Guerra Mundial e suas consequências. Em uma discussão do poema Paterson, o crítico Robert Lowell ressalta:
Diante de nós temos a América de Walt Whitman, mas ela se tornou palco para uma verdadeira calamidade, mutilada pela desigualdade, devastada pelo caos da industrialização, entregue pura e simplesmente à catástrofe. Nenhum outro poeta descreveu isso com tanta arte, compaixão e experiência, com tanta força e tanto senso de urgência.9
Também no que se refere às coisas da literatura e da arte, o habitante das hinterlândias, o médico rural da província parece estar ligado por sistemas secretos de vasos comunicantes com “os de fora”. Em suas poucas viagens travou relações com quase todas as figuras importantes de seu tempo. Acompanhado por Pound, visitou Yeats em Londres; em Paris frequentou Aragon e Cendrars, Cocteau e Djuna Barnes, os surrealistas e os americanos da lost generation, Juan Gris e Brancusi, Léger e Duchamp : todos ainda distantes de sua fama mundial; em Nova York cruzam-no pelo caminho O’Neill e Maiakovski, Nathanael West e Francis Scott Fitzgerald. Conheceu todos os grupos e correntes (e essa foi a era dourada dos -ismos): mas nunca pôde se associar a nenhum deles por um longo período: ele os encontrava, os conhecia e se recolhia de volta a Rutherford.
De tempos em tempos, tinha o hábito de viajar para Nova York. Ali ele pôde conviver não apenas com as grandes celebridades do momento. Dia sim dia não topava com os arruinados, os “homens vazios”, os exauridos e os desmantelados. Nas loucas festas da Era-Fitzgerald os fracassados sentavam-se à mesma mesa dos bem-sucedidos: e os bem-sucedidos eram à sua maneira fracassados. A imagem de uma anônima, tal como Williams a esboçou, fornece uma imagem disso.
A casa de Margaret Anderson e Jane Heap, com sua enorme cama suspensa do teto por quatro correntes, valia o show. Jean Heap ficava sentada como uma curandeira esquimó e Margaret, sempre no pano de fundo, era uma beldade em grande estilo. Sob uma cúpula de vidro vi um dia uma escultura que parecia o modelo em cera de um estômago de galinha. Aquilo chamou minha atenção. Soube que havia sido feita por uma aristocrata alemã, Elsa von Freytag-Loringhoven, uma criatura inacreditável no alto de seus mais de 50 anos… Não quer conhecê-la? Parece que ela estava encantada com meus trabalhos. Eu concordei — pobre de mim! Infelizmente a escultora se encontrava na prisão naquele momento, pois tinha roubado um guarda-chuva… No dia de sua soltura, fui buscá-la e a convidei para tomar o café em algum lugar da 6ª Avenida. Ao final prometi revê-la. Queria chegar mais cedo — seu sotaque alemão era bem pronunciado. Ela ganhava um salário de fome como modelo… Eu a revi, mas para quê? Daí surgiu uma conversa demasiado íntima. Ela faria de mim um grande homem: bastava que eu a livrasse da sífilis e abrisse minha alma para o verdadeiro trabalho artístico. Aliás, ela era uma protegida de Marcel Duchamp. Certo dia me mandou um nu fotografado que ele mesmo havia tirado, uma fotografia estupenda. A foto ficou por anos em minha maleta até que me cansei e joguei fora. Como foto, pelo menos, era uma obra-prima. A baronesa me seguiu durante anos e viajou a Rutherford. Não foi fácil me livrar dela. Alguma coisa em seu jeito me lembrava uma avó, uma “cigana”, e eu fui estúpido o suficiente para dizer que seria um prazer recebê-la. Agora sim eu estava perdido! Eu a visitei algumas vezes e lhe dei dinheiro. As cinzas se amontoavam em seu fogareiro caindo aos pedaços. O pardieiro em que ela morava era compartilhado com dois cães que se esparramavam em sua cama. Ela mesma, no entanto, era de uma polidez impecável… Até que passou a fazer cenas. Wallace Stevens já não ousava cruzar a 14ª Avenida quando viajava para Nova York com medo de avistá-la, e um pintor russo, seu conhecido, um dia a encontrou embaixo de sua cama — sem uma peça de roupa. Deu no pé e se escondeu no apartamento de um vizinho. Ela se recusava a deixar o quarto enquanto ele não viesse… Era capaz de levar alguém à loucura. Mais tarde lhe dei 200 dólares para uma viagem à Europa. O mensageiro interceptou o dinheiro. Dei-lhe o dinheiro mais uma vez, e finalmente ela se foi. Mas não chegou muito longe. Um aventureiro qualquer, francês parece, deixou meio por brincadeira o gás aberto em seu quarto enquanto ela dormia. Foi a última vez que tive notícias da baronesa.
Só superficialmente essa figura é uma aparição periférica. Desde Edgar Allan Poe a história das artes na América — salvo quando se entrega às mil formas da propaganda — tem sido uma história de quedas trágicas. William se recorda repetidamente desses esquecidos, por mais ínfimos ou de relevo que possam ter sido seus dons. “Vê-los dava um nó na garganta; estavam quase certamente destinados à desgraça.” É provável que ninguém se recorde de um escritor chamado Emanuel Carnevalli e de seu primeiro e único livro, a crer em Williams, uma obra extraordinária. A obra gozou de um sucesso considerável, o autor foi convidado a Chicago. Ali adoeceu de encefalite, ao que consta. “Enfim despacharam-no para a Itália. Seu pai o confinou em um asilo para desabrigados próximo a Bolonha, onde ele era cuidado por freiras. Ele me enviou algumas cartas. Tentava retomar a escrita. Mas a magia havia acabado.”
Eu vi as melhores mentes de minha geração destruídas pela loucura
nus histéricos inanes
arrastando-se no lusco-fusco pelas ruas dos bairros negros caçando
um pico nervoso…
[…]
a quem pobreza e farrapos e olhos fundos e altos sentaram-se
fumando no breu sobrenatural dos flats de banho frio
boiando sobre os tetos urbanos extáticos na onda do jazz…
[…]
a quem trancados em muquifos de cueca e barba malfeita queimando seu
dinheiro nos cestos de lixo ouvindo o terror através das paredes…
Assim começa o mais famoso poema da mais nova literatura americana: O uivo de Allen Ginsberg.10 Ele nasceu em Paterson. William Carlos Willams escreveu um prefácio para o poema que se encerra com as palavras: “Levantem a barra do vestido, distintas damas, vamos passar pelo inferno.”
E, em sua autobiografia, este é o memorial fúnebre dedicado aos amigos mortos e desaparecidos, uma litania de nomes cujas vozes já não se escutam:
Pound, trancafiado em um hospício em Washington; Hemingway, reduzido a romancista popular; Joyce, morto; Gertrude Stein, morta; Picasso, domado como fabricante de cerâmicas; Brancusi, velho demais para trabalhar; Hart Crane, morto; Juan Gris, antes meu pintor favorito, morto há muito anos; Charles Demuth, morto; Duchamp, mofando em uma cobertura na Rua 14 em Nova York sem telefone; a baronesa, morta; Peggy Guggenheim, em Veneza como proprietária de uma galeria de pinturas modernas em cujo valor não deve acreditar; Ford Madox Ford, morto; Henry Miller, casado na região de Carmel, Califórnia, no topo de uma montanha de dois pés de altura que mal consegue escalar; Djuna Barnes, na indigência, sem endereço, não escreve mais; Carl Sandburg, afastado do destemor de toda poesia; Eugene O’Neill, calado, emudecido.
Os convites, as leituras, as declamações gravadas, os capelos de doutor, a glória tardia que bateram à sua porta: nada disso conseguiu apaziguar Williams. Ele os aceitou com jovialidade, mas talvez não fizessem diferença. Seu futuro, como o de todo escritor, está no que será escrito hoje e amanhã. A renascença da poesia americana, o aparente surto repentino de energia poética vivido nos anos 1950, remete à luta corajosa e sem perspectivas de uma ínfima minoria que trabalhou no país ao longo dos anos 1920 e 1930. Quem deseja estudar sua pré-história precisa se debruçar sobre um legado quase apócrifo: os pequenos cadernos e revistas que, em tiragens limitadas, ignorados pela indústria de publicações oficial e graças a sacrifícios extremos, não só materiais, circularam entre algumas poucas mãos.
Essas pequenas revistas terão sempre em mim um incentivador. Sem elas eu teria sido condenado ao silêncio desde o início. Aos meus olhos, elas formam uma só revista que nunca vai morrer: são a única publicação não sujeita ao crivo de um editor. As idas e vindas de seus redatores obedecem a uma lei democrática. Ninguém pode dominá-la e instaurar uma dinastia. Se ela some em um lugar, ela reaparece em outro, com outro nome: para que assim se imprima o que é novo, o que está sendo escrito nesse instante.
Aquilo que foi iniciado naqueles tempos hoje venceu. Uma geração inteira de poetas reclama a presença de Williams. Espíritos muito diferentes são unânimes em apontá-lo quando alguém lhes pergunta quem foi seu professor. Na coletânea de Donald Allen The New American Poetry 1945–1960, onde essa poesia apareceu em todas as suas múltiplas formas, seus traços se encontram por toda parte.11 Charles Olson, Robert Duncan, Robert Creeley, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Le Roi James, Denise Levertov e Gregory Corso: mais do que toda história da literatura, esses nomes comprovam a realização de um único homem que em sua pequena cidade não trouxe ao mundo somente alguns milhares de crianças, mas também alguns poemas que fizeram do americano uma língua da poesia, tal como ela hoje é compreendida mundialmente.