Um desperdício incontornável1
Incipiência de conceitos biológicos e exclusão onerosa da filosofia da biologia contemporânea em O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética (2022), de Fernando Haddad
É razoavelmente consensual que uma das mais importantes descobertas da biologia do século XX foi a da estrutura do DNA. Na sua esteira, a pesquisa de quase todas as subáreas biológicas passou pela chamada “virada molecular”. Gerou-se um aprofundamento definindo uma cultura (com léxico, práticas e valores próprios) acessível apenas aos que percorrem os estágios mais e mais especializados de formação. Efetivou-se, com isso, nas ciências biológicas, o ideal das ciências físicas pensado desde as origens das ciências modernas.
Mas a complexidade do ser vivo nunca tardou em frustrar a pretensão de que esse movimento fosse de mão única. Desde as fronteiras que separaram o estudo do vivo e do não vivo, repartindo a história natural em biologia e geologia ao final do século XVIII, paradigmas de olhar horizontal e globalizante sobre a natureza ressurgiram, e de modo já bastante estruturado, no início do século XX. A exemplo da história geográfica de plantas e animais, alavancou-se a constituição de áreas intrinsecamente interdisciplinares, como o caso da ecologia e da etologia. Simultaneamente, princípios e métodos da física e da química foram integrados à investigação de soluções para problemas da biologia, originando biofísica, bioquímica e oceanografia, para citar apenas três disciplinas hoje consolidadas nos currículos de formação superior em ciências da vida. A diluição das barreiras não se restringiu ao entorno das ciências naturais e exatas, mas avançou sobre diferentes terrenos das ciências humanas. Emergiram e consolidaram-se campos híbridos do saber como, por exemplo, filosofia da ciência, história da ciência, etnobotânica, educação científica, bioética, direito ambiental, ecologia comportamental. Para compreender melhor a humanidade, na antropologia e arqueologia o conhecimento da cultura e da sociedade humana vem sendo aplicado aos achados biológicos, desde a teoria evolucionista de Charles Darwin.
Historicamente, muito se confundiu da teoria de evolução biológica com a sua aplicação teórica e política realizada por dois polímatas contemporâneos e conterrâneos de Darwin, Francis Galton e Herbert Spencer, por meio da eugenia, concebida pelo primeiro, e do spencerismo social, pelo segundo.2 Rejeitados há várias décadas, esses dois movimentos tiveram consequências devastadoras que produziram desde as "sociologias biológicas, racismo ‘científico’, explorações coloniais, até as brutalidades escravagistas e o integrismo liberal", para usarmos aqui das palavras de Patrick Tort, de 2005.3 Suas razões históricas, que não podem ser esquecidas, foram e continuam sendo objeto de investigação por historiadores e filósofos da biologia. Urge que esse movimento, profundamente descortinado nas últimas décadas, chegue aos manuais de ciências humanas e biológicas, do ensino básico e superior, desembaraçando a própria Teoria Sintética da Evolução arquitetada nos anos 1940 e ilustrando como o campo da biologia recebeu e fezcontribuições para muitas outras disciplinas.
Testemunhas dessas transformações, pensadores do século XX se puseram a elaborar teorias novas sobre a natureza da vida. Entre alguns outros, autores como Erwin Schrödinger, Hans Jonas, Michel Foucault, Georges Canguilhem e, mais recentemente, Jessica Riskin convergem em considerar que o entendimento da vida orgânica, isto é, das bases materiais da existência humana, além da vida espiritual ou intelectual, é uma tarefa fundamental do pensamento.4 Sem uma compreensão do contexto dessa base material, tanto vertical (especialização) quanto horizontal (integração), não virão as soluções urgentes para a coetânea emergência de problemas globais, como as crises ambiental e climática, além da mais recente crise sanitária. Dilemas éticos inéditos, oriundos de inovações tecnológicas, como a possibilidade de edição de genes humanos e a universalização das vacinas, clamam pela superação seja da rejeição ao biológico, seja do olhar cientificista — este último infelizmente acirrado com a pandemia da covid-19 por muitos cientistas, políticos e divulgadores da ciência. Às sociedades do século XXI, urge a pluralidade de práticas e a expansão radical da abordagem integradora das ciências, promovendo a aproximação entre a cultura e a biologia. Felizmente, essas aproximações entre as ciências caracterizam o mainstream da pesquisa, em qualquer área, neste início de século.
Essa é a perspectiva com que recebemos a obra lançada em 2022, O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética, de Fernando Haddad.5 O interesse despertado pelo anúncio da obra se amplia pelo percurso intelectual de seu autor, marcado pelo trânsito disciplinar, iniciado no direito e seguindo, primeiro, à economia, depois, à filosofia e à ciência política — como ele próprio relata.6 Assim, não foi sem alguma surpresa que lemos logo nas primeiras páginas o propósito expresso do livro como sendo o de “fazer uma crítica imanente [?] ao mainstream da biologia, da antropologia e da linguística”.7 Compreender esse propósito impôs um aprofundamento da leitura, particularmente do primeiro dos três capítulos do livro, “Novas investidas da biologia”.
O capítulo se concentra nas iniciativas das ciências biológicas voltadas a compreender as sociedades humanas a partir da teoria da evolução. O texto evidencia um considerável esforço de aproximação a grande parte da literatura sobre o tema, um desafio nada banal, especialmente para quem possui toda a sua formação nas humanidades. Haddad de fato discute autores importantes do que chama as “principais ‘escolas’ contemporâneas do pensamento biológico que se arriscam a pensar as sociedades humanas a partir de suas próprias premissas”.8
Desde o início do livro somos inteirados de que o argumento defendido é o de que “a fórmula variação/seleção, apropriada para descrever a dinâmica da evolução biológica, não se aplica à cultura”.9 Essa ideia é anunciada também na curiosa citação de Weber, à epígrafe do primeiro capítulo.10 Adiante, a posição é ainda mais direta e leva o autor a introduzir um neologismo. A cultura não “evolui”11, diz ele, mas “revolui”. A distinção radical entre os desenvolvimentos culturais e a origem das espécies passa a ser assim chancelada, pelo autor, por dois conceitos distintos. A razão da distinção reside em que, ao “movimento transcendente” da física e química para a biologia12, seguiu-se nova transcendência, desta vez de “outra natureza”, da biologia para a cultura, com o aparecimento da linguagem simbólica entre humanos. A singularidade deste segundo movimento, explica Haddad, reside na sua projeção temporal própria, geradora de “contradição” — esta, justamente, o terceiro excluído a que o título do livro se refere. Por isso a cultura é, para o autor, insuficientemente compreendida por meio do arcabouço conceitual da evolução biológica (ou, em outras palavras, a cultura não pode ser reduzida à biologia).
A partir dessa alegada insuficiência, ao primeiro capítulo de O terceiro excluído coube abordar, panorâmica e cronologicamente, ideias de alguns autores daquelas “escolas” de pensamento.13 Entre outras, o autor discute as ideias de Ernst Mayr14 sobre o processo evolutivo aplicado aos humanos, articulando-as com o pensamento malthusiano, e conclui que essa abordagem leva a ideias eugênicas. Passa então a discutir a abordagem da biologia em relação ao egoísmo e altruísmo, considerando, para isso, a metáfora do “gene egoísta”, proposta por Richard Dawkins15 em 1976 e suas relações com a evolução da reprodução sexuada. O capítulo discute também formulações de John Maynard Smith sobre a evolução do sexo, a abordagem da sociobiologia em relação ao estudo do comportamento e as implicações da utilização de ferramentas conceituais próprias da biologia para tratar da evolução cultural. Para isso, percorre desde as formulações de Dawkins sobre a memética, também de meados da década de 1970, até discussões mais recentes, como a coevolução gene-cultura, de Richerson & Boyd,16 a teoria de construção de nicho17 e a psicologia evolutiva.18 Uma preocupação constante na argumentação do capítulo, e que se distribui por toda a sua extensão, é com a questão da redutibilidade das ciências humanas à biologia. Assim, Haddad dialoga com Monod19 e sua abordagem sobre a cibernética e enzimas alostéricas.
Como as alegações do autor são tentativamente sustentadas na biologia, em nossa análise averiguamos se ele foi bem-sucedido em compreender as ideias, conceitos e metáforas arregimentadas pelos autores que discutiu. Repetindo a estrutura do livro, também antecipamos neste início de texto as conclusões expressas em nosso título. A análise dos conceitos da biologia em O terceiro excluído falha em sustentar o pressuposto da insuficiência da reflexão biológica para abordar a cultura.
Resumimos em duas as razões dessa falha. Uma das dificuldades de consequências incontornáveis para uma recepção positiva da obra diz respeito à literatura percorrida pelo estudioso. Embora volumosa e densa, ela se concentra em obras lançadas antes da vasta produção especializada que levou à emergência de uma nova área de conhecimento, a filosofia da biologia — um "domínio bem identificado no mundo anglo-saxão desde o final dos anos 1970", como acentua Thomas Pradeu.20 A filosofia da biologia, de fato, adquiriu autonomia em relação à filosofia da ciência em geral a partir de volumes temáticos publicados por David Hull (1969) e Michael Ruse (1973), cujo potencial heurístico, e seriedade com que foram recebidos, levou à criação de sociedades e periódicos científicos especializados em todos os continentes. As comunidades crescentes de pesquisadores dessa nova disciplina ficaram, lamentavelmente, ausentes de O terceiro excluído.
A segunda razão da falha, nos parece, é a de que diversas passagens do primeiro capítulo do livro denotam uma compreensão incipiente de conceitos biológicos. Praticamente todos os grandes temas da biologia apontados logo acima poderiam ser problematizados. Dada a extensão das dificuldades encontradas, optamos por tratar apenas de algumas mais detalhadamente. Começaremos com o pressuposto do autor pelo qual reduz a duas as ferramentas epistêmicas da biologia e depois seguiremos a um dos assuntos abordados, o altruísmo. A escolha desse tema se deu porque envolve um dos autores vivos de maior projeção junto ao público erudito mais amplo, o biólogo evolucionista Richard Dawkins.
Semelhanças, diferenças e genealogia
Vejamos um ponto específico defendido em O terceiro excluído, o da impossibilidade de a biologia oferecer suporte ao pensamento sobre a cultura. Na visão do autor, isso se dá porque a biologia não incorpora a contradição — uma propriedade imanente e exclusiva dos sistemas culturais. Assim, restaria à dimensão biológica conter apenas relações de “identidade e diferença”. Infelizmente, não encontramos no texto quais fundamentos ou fontes levaram a essa premissa. Mas iremos recolocá-la aqui na perspectiva geral da história da biologia.
De fato, a identificação de semelhanças e diferenças caracterizou, por muito tempo, uma base epistêmico-metodológica para o estudo dos seres vivos e suas partes, e isso desde Aristóteles. Desde autores da Renascença, como Alberto Magno (c. 1193–1280), filósofos naturais, anatomistas e fisiologistas dos séculos XVI e XVII adotaram a prática aristotélica de investigar o vivo.21 Os organismos foram assim, ao longo de toda a modernidade, objeto de estudo comparativo baseado na identificação, via observação e experiência, de suas semelhanças e diferenças.22
No entanto, dentre as muitas consequências que se seguiram às teorias evolucionistas no século XIX está a introdução de uma terceira relação fundamental na dimensão biológica, da genealogia. A teoria evolucionista de Darwin, notou Foucault, e, nós acrescentamos — contrariando-o — também a de Lamarck, encontrou no indivíduo a trama ontológica que estabeleceu, com base na ancestralidade comum, a realidade dos diferentes níveis taxonômicos.
No conhecimento biológico produzido segundo esse modelo epistêmico (das semelhanças e diferenças), diversos naturalistas argumentavam, sem que fossem definitivamente contestados, que os níveis taxonômicos (gênero, família, classe, ordem, filo) não existem na natureza — eu vejo este cão que está latindo aqui, mas não vejo espécies ou gêneros ou filos, pois essas coisas são conceitos existentes apenas na minha mente. Na natureza existem indivíduos, ou, em termos filosóficos, só os indivíduos possuem uma realidade ontológica. Isso mudou com o reconhecimento da existência do fenômeno da evolução biológica.
A teoria evolucionista introduziu a genealogia como um terceiro elemento fundamental à análise dos organismos. A ancestralidade comum significa que um indivíduo guarda relações com indivíduos do passado que são de semelhança quando a espécie permanece sem modificações e de diferenças quando variações graduais acumuladas por longos intervalos de tempo, segundo Darwin, geram espécies novas. Assim, um indivíduo se caracteriza essencialmente pelos traços dessa ancestralidade, dessa genealogia, o terceiro elemento descoberto pela compreensão da evolução. A realidade do indivíduo, a sua dimensão ontológica se espraia, portanto, entre os níveis taxonômicos. Dessa forma, um gênero é tão real quanto os indivíduos que o compõem, porque compartilham um recente ancestral comum, do qual herdaram semelhanças como matéria-prima na qual se operaram as variações.
Toda essa problemática, muito simplificada aqui, aponta para a dificuldade de considerar que na biologia pós-evolucionista persiste uma dualidade ontológica (e epistêmica) dos seres vivos, como presume a argumentação em O terceiro excluído. Nosso contra-argumento é o de que, à identidade e às diferenças, somou-se a genealogia e compôs-se uma tríade ontológica do ser vivo. Não nos cabe identificar a genealogia com a contradição, mas chamar a atenção de que tal mudança substantiva no modelo de estudo dos seres vivos, decorrente exatamente da teoria evolucionista, foi tão cabalmente desconsiderada na obra em questão.
Passemos agora a outro tema estruturante do primeiro capítulo de O terceiro excluído: as tentativas de a biologia explicar o comportamento social por meio de modelos altruístas ou egoístas.
O que a seleção natural seleciona, egoísmo ou altruísmo?
É possível estabelecer conexões entre o comportamento social da espécie humana e o de outras espécies animais? Em que condições essas relações seriam válidas? A aproximação entre o comportamento humano e de outras espécies se dá apenas como analogia ou há correspondências de outra ordem? Questões como essas são alvo de discussão e análise desde muito cedo na história da biologia evolutiva, e não escaparam à atenção de Haddad em O terceiro excluído, em especial as formulações provenientes da sociobiologia proposta inicialmente por Edward. O. Wilson, em 1975. Com grande repercussão e desdobramentos, a sociobiologia representa uma das tentativas de aproximar a análise do comportamento humano à etologia, disciplina dedicada ao estudo do comportamento animal. Embora tenha discutido também a matematização por que passou, em especial a que se refere à seleção de parentesco e sua abordagem utilizando teoria dos jogos, Haddad se concentrou na questão do comportamento altruísta e suas possibilidades de surgimento. Como discussão de fundo, trata-se de entender como surgem comportamentos altruístas no contexto de seleção darwiniana, que favorece os indivíduos mais aptos a mobilizarem recursos para sua sobrevivência.
Para compreender o altruísmo, e a maneira pela qual Haddad o aborda, tomemos uma formulação típica do que se ensina sobre evolução na escola. Numa população de guepardos, por exemplo, sobrevivem por mais tempo e, assim, deixam mais descendentes os indivíduos que correm mais rapidamente e, assim, são mais eficientes em capturar presas; numa população de presas, também, os indivíduos que se confundem melhor com o ambiente e, portanto, não são vistos pelos predadores preponderam. Pode-se pensar em muitos outros exemplos em que se aplica esse conceito de seleção natural proposto por Charles Darwin. Nessa formulação, a seleção natural atua sobre indivíduos, selecionando-os em função das variações que apresentam em suas características. É o que ficou marcado pela expressão, cunhada por Herbert Spencer, “sobrevivência do mais apto” (survival of the fittest), incorporada por Darwin apenas na quinta edição de A origem das espécies — obra que, aliás, não contém a versão corrompida do conceito para “sobrevivência do mais forte”, pois a força é apenas um elemento no enorme leque de caracteres adaptativos submetidos à seleção natural.23
Interações ecológicas, como a da predação, exemplificada acima, produzem efeitos sobre conjuntos de indivíduos de uma dada espécie, caracterizados pelos biólogos como “populações”, em contraste com as chamadas “comunidades”, termo com que se referem a agrupamentos de diferentes populações. Esses conceitos suscitam a questão: há outras unidades biológicas, além dos indivíduos, sobre as quais atua a seleção natural?
As tentativas de resposta a essa questão deram origem a um longo debate na literatura de filosofia da biologia.24Observações iniciais sobre esse assunto, no entanto, remontam ao trabalho de Charles Darwin. No capítulo VI de A origem das espécies, falando sobre a esterilidade de formigas operárias, ele escreveu:
Sabermos como as operárias se tornaram estéreis é uma dificuldade, mas não é uma dificuldade muito maior do que a apresentada por quaisquer outras modificações marcantes na estrutura; por isso pode ser demonstrado que alguns insetos e outros artrópodes em estado natural tornam-se ocasionalmente estéreis; e, caso sejam insetos sociais e tal modificação tenha sido vantajosa para uma comunidade [uma população, segundo o conceito posterior da ecologia] que necessite de um número anual de insetos operários mas que sejam incapazes de procriar, então eu não vejo nenhuma grande dificuldade de isso ter sido efetuado pela seleção natural.25
Entende-se o problema levantado por esse exemplo da seguinte forma: o indivíduo que exibe o caráter estéril, e é assim desfavorecido, não deveria ter sido eliminado pela seleção natural? O trecho acima mostra que Darwin pensou sobre o problema e o respondeu considerando que a seleção natural atua não apenas sobre organismos individuais, mas também sobre grupos de organismos. Esse caráter, esterilidade individual, foi selecionado em detrimento do indivíduo, porque a seleção natural operou sobre um nível superior de organização, o da população, conforme o conceito ecológico atual. Esse caráter, esterilidade individual, que pode ser entendido como manifestação de comportamento altruísta, deixa de ser um contraexemplo ou uma exceção. Mais importante, é explicado no mesmo quadro teórico da seleção natural. A exibição, pelos indivíduos, de comportamentos altruístas, como a esterilidade que produz prejuízo individual para as formigas operárias, mas, simultaneamente, oferece benefícios à população, poderia ser selecionada positivamente, isto é, mantendo os indivíduos (em vez de eliminá-los) quando aumenta a chance de sucesso na sobrevivência do grupo a que o indivíduo pertence, em relação a outros grupos.
Uma elaboração sobre o assunto apareceu na outra grande obra publicada por Darwin doze anos depois, em 1871, The Descent of Man, dessa vez aplicada aos grupos humanos, e que foi citada por Haddad:26
Não se deve esquecer que embora um alto padrão de moralidade dê apenas uma pequena ou nenhuma vantagem a cada homem individual e a seus filhos sobre os outros homens da mesma tribo […], um aumento no número de homens bem dotados e um avanço no padrão de moralidade certamente dará uma imensa vantagem a uma tribo sobre outra.27
Em O terceiro excluído, a formulação sobre o que é seleção de grupo é aproximada ao trabalho de David Sloan Wilson e Edward Osborne Wilson.28 Esses autores revisitaram, a partir de uma perspectiva histórica e da filosofia da biologia contemporânea, as bases teóricas da seleção de grupo, proposta inicialmente na década de 1960, para verificar se alguns dos seus fundamentos ainda seriam úteis para compreender a evolução do comportamento altruísta. Tanto a seleção de grupo como tentativas de atualizá-la são caracterizadas, por Haddad, como algo que deveria trazer “um certo embaraço à sociobiologia” cuja “pretensão é explicar o comportamento social de um ponto de vista puramente biológico”.29 Para Haddad, esse embaraço se deveria à dificuldade em “demonstrar que a diferença comportamental entre duas tribos pudesse ser explicada de um ponto de vista estritamente genético”.30 Cabe compreender por que o autor de O terceiro excluído considerou embaraçosa essa formulação.
A perspectiva oferecida por Haddad parece presa à concepção de que a biologia se ocupa apenas de fenômenos que ocorrem em organismos individuais e unicamente como expressão dos seus genes. Nesse sentido, “puramente biológico” e “estritamente genético” podem ser tomados por sinônimos. No entanto, o escopo da reflexão biológica há muito já se ampliou a partir do nível dos organismos, tanto em direção a escalas microscópicas e submicroscópicas, pela referida virada molecular da segunda metade do século XX, como a escalas mais abrangentes, comportamentais e relacionais, como os estudos populacionais e ecossistêmicos, próprios da ecologia. A disputa está em se os conceitos aplicados ao estudo das demais espécies são ou não, e em que medida, aplicáveis a humanos — alvo almejado pela sociobiologia e cuja rejeição parece ser a premissa de O terceiro excluído.
A recepção da sociobiologia na comunidade científica foi das mais ruidosas, como se pode ler no mapa das críticas formulado por Michael Ruse já em 1983. No mesmo ano, figuras eminentes da biologia, e que de fato fizeram “escola” entre os evolucionistas, como Stephen Jay Gould e Richard Lewontin, lideraram manifestação veemente contra as ideias de Edward O. Wilson. Em carta assinada com outros 14 membros do Sociobiology Study Group, a maioria de Harvard, publicada no muito prestigiado New York Review of Books, eles estruturaram a crítica que trazemos aqui — e que se vê repetir em O terceiro excluído:
De Herbert Spencer […] a Konrad Lorenz, Robert Ardrey e agora E. O. Wilson, vimos proclamada a primazia da seleção natural na determinação das características mais importantes do comportamento humano. Essas teorias resultaram em uma visão determinista das sociedades humanas e da ação humana. Outra forma desse “determinismo biológico” aparece na afirmação de que a teoria e os dados genéticos podem explicar a origem de certos problemas sociais, por exemplo, a sugestão de eugenistas como Davenport no início do século XX de que uma série de exemplos de comportamento “desviante”– criminalidade, alcoolismo, etc. — são geneticamente baseados; ou as reivindicações mais recentes de uma base genética de diferenças raciais […].
Cada vez que essas ideias ressurgiam, dizia-se que eram baseadas em novas informações científicas. No entanto, todas as vezes, embora fortes argumentos científicos tenham sido apresentados para mostrar o absurdo dessas teorias, elas não morreram. A razão para a sobrevivência dessas teorias deterministas recorrentes é que elas consistentemente tendem a fornecer uma justificativa genética do status quo e dos privilégios existentes para certos grupos de acordo com classe, raça ou sexo.31
Ou seja, Gould e Lewontin já denunciaram à época a inexistência de base científica para a redução à seleção natural da responsabilidade majoritária por moldar o comportamento humano. Igualmente, alertaram que esse determinismo infundado já havia conduzido a alegações que justificaram situações de exclusão de indivíduos com base em sua aparência, ou em seu “fenótipo”, para usar o termo técnico da genética. No pacote, racismo, eugenia, misoginia, nazismo e outras ideias que causaram, e ainda causam, sofrimento. O determinismo biológico embutido nelas foi uma falácia naturalista, como é bem claro hoje na literatura acadêmica. Com ela, foi rechaçada a dicotomia originalmente formulada na sociobiologia que opunha a natureza aos aportes decorrentes da educação — expressa no jargão “natureza versus cultura” (nature versus nurture). Uma nova relação entre esses elementos, caracterizada agora pela adição, não pela oposição, vem sendo explorada por novas iniciativas — e se refletem num deslocamento do jargão para “natureza e cultura”.32 No entanto, nem tudo foi descartado do trabalho de David Wilson e Edward Wilson.33 Uma de suas contribuições, e que não foi notada na crítica em O terceiro excluído, ilustra o empréstimo de conceitos de uma disciplina para a construção de modelos explicativos por outra disciplina. Wilson e Wilson34 adotaram exitosamente um conceito oriundo da economia que se refere ao princípio regulador do comportamento dos agentes econômicos,35 o “trade-off” — usado em inglês entre nós, mas que poderia ser traduzido como “perde-e-ganha”. Ele significa, em síntese, que a utilização de um recurso para um dado fim sempre ocorre às expensas do seu uso para um fim alternativo. Os autores sugeriram que o princípio do trade-off fosse usado para compreender as adaptações biológicas: “Adaptações contra predadores geralmente interferem na coleta de alimentos, adaptações para se mover em um meio (como o ar) geralmente interferem no movimento em outro meio (como a água) e assim por diante”.36
Vamos tomar um exemplo simples para ilustrar o raciocínio. A enorme cauda de um pavão macho é bastante útil no comportamento de corte. A valorização, pelas fêmeas, de caudas longas com plumagens exuberantes pode significar uma pressão seletiva que levaria ao aumento progressivo da cauda. Entretanto, caudas mais longas podem representar, para o macho, maior dificuldade para escapar de um predador. Dito por um economista: um aumento incremental no tamanho da cauda significa um aumento no benefício marginal relacionado à escolha pelas fêmeas, mas também representa um aumento no custo marginal relativo à sobrevivência. A “mão invisível” da seleção natural conservará aquelas caudas nem tão pequenas a ponto de não atraírem as fêmeas, nem tão grandes a ponto de comprometerem a sobrevivência dos seus portadores. Como se vê, nem para os pavões há almoços grátis.
Analogamente, como explicam Wilson e Wilson, podemos avaliar a aparente contradição nos efeitos de comportamentos altruístas para os indivíduos no contexto do interior do grupo e no contexto entre grupos rivais. Há um trade-off entre os custos individuais de um dado comportamento altruísta e os benefícios coletivos desse comportamento: o sucesso de empreendimentos coletivos frequentemente se dá pela coordenação de esforços no interior do grupo, às expensas de iniciativas individuais potencialmente conflitantes.
Um exemplo bastante interessante é a ave popularmente conhecida como uirapuru-de-garganta-preta (Thamnomanes ardesiacus), da Amazônia brasileira. Essa espécie é conhecida pela emissão de cantos de alerta quando da presença de predadores na área ocupada por seu grupo. Dessa maneira, quando um indivíduo emite um alarme, ele o faz às custas de sua própria probabilidade de sobrevivência: o alarme permite que ele seja localizado mais facilmente pelo predador. Este comportamento, no entanto, aumenta a chance de sobrevivência dos outros indivíduos do grupo a que pertence a ave-vigia.37
É dessa forma que os autores apresentam a lógica básica da seleção de grupo e concluem: “A mudança evolutiva total em uma população pode ser considerada como um vetor final composto de dois vetores componentes, seleção dentro e entre grupos, que geralmente apontam em direções diferentes”.38
Não há, portanto, contradição ao se considerarem os efeitos de comportamentos altruístas em um contexto de “egoísmo” individual. Basta identificar, como fez Darwin e faz a literatura atual sobre o assunto, que efeitos diferentes do comportamento se expressam em níveis de complexidade biológica distintos, como os de indivíduos, famílias e populações.
O ponto de vista do gene e a reprodução sexual
A ideia de seleção de grupo foi fortemente contestada em suas primeiras formulações (os embates teóricos travados em torno dessa ideia são descritos em Wilson e Wilson). Isso levou a novas tentativas de resposta à pergunta “em que outros níveis, além do organismo individual, atuaria a seleção natural?”. Assim, novos enquadramentos teóricos foram propostos e compuseram o programa de pesquisa conhecido por seleção multinível. Particularmente, um desses enquadramentos, a chamada “seleção centrada no gene” (gene´s eye view), formulada por George C. Williams — o mesmo autor que impulsionou a discussão sobre seleção de grupo na década de 1960 — e popularizada por Richard Dawkins em O gene egoísta, de 1976, ganhou notoriedade.
Algumas ideias fundamentais de Dawkins, relacionadas à metáfora do “gene egoísta” são abordadas às páginas 41 a 43 de O terceiro excluído. Haddad parece considerar as ideias de Dawkins particularmente suscetíveis de críticas, especialmente por conectá-las à sua discussão sobre a evolução do sexo. À página 42, lemos que “Dawkins pensa ter encontrado, a partir dessa perspectiva [da ideia de seleção centrada no gene], a chave para explicar a reprodução sexuada”. Infelizmente, não é indicada a referência específica do trecho em que Dawkins teria afirmado tal pretensão.39A discussão está relacionada ao caráter paradoxal, numa primeira análise, da reprodução sexuada. Se a seleção natural tende a preservar os indivíduos mais adaptados, por que haveria de surgir um mecanismo como o sexo, que pode levar à produção, na prole, de indivíduos diferentes e com possibilidade de serem menos adaptados que seus pais? Como a metáfora do “gene egoísta” de Dawkins oferece caminhos para abordar a questão?
Pode-se compreender mais facilmente a concepção de seleção centrada no gene a partir da definição de evolução biológica da época. As primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo resgate do darwinismo depois de seu "eclipse" no final do século XIX. Isso aconteceu a partir dos estudos sobre a genética mendeliana e os padrões de herança das características, e toda a formalização matemática oriunda dos estudos de genética de populações. Assim, ao se considerar o processo evolutivo, a ênfase passou a ser na mudança da frequência dos diferentes genes em uma população ao longo do tempo — atualmente, a perspectiva sobre a evolução mudou, como mostram as definições em livros-texto de biologia, como um processo de mudança dos organismos ao longo do tempo, por meio do mecanismo da seleção natural descrito por Darwin.
Como o que estava em jogo à época da discussão dos autores comentados em O terceiro excluído era, realmente, a variação da frequência de genes nas sucessivas gerações, a ideia de sucesso evolutivo foi reformulada. Bem-sucedido não é o indivíduo que sobrevive e se reproduz, mas os genes que conseguem aumentar a probabilidade de estarem presentes, de preferência em frequências crescentes, nas sucessivas gerações. A partir dessa perspectiva, Dawkins afirmou que cada organismo, com suas características, elas mesmas produtos da expressão dos genes que o organismo carrega, seria apenas um dispositivo de propagação desses genes — que ele chamou “máquina de sobrevivência”. Uma crítica a esse panorama parece levar à conclusão de que “a ‘eficiência’ do ponto de vista do indivíduo passa a ser irrelevante”. Poderíamos imaginar que essa seria uma crítica de Haddad, e de fato a encontramos em seu livro. Surpreendente, contudo, é descobrir que se trata de uma transcrição direta — embora não creditada — do próprio Dawkins.
Como se trata de uma questão sensível, nos permitimos trazer as citações de Haddad e Dawkins, ainda que um tanto longas. Em O terceiro excluído lemos:
Dawkins pensa ter encontrado, a partir dessa perspectiva, a chave para explicar a reprodução sexuada. Ao tratar o indivíduo como máquina de sobrevivência construída por uma confederação de genes, a "eficiência" do ponto de vista do indivíduo passa a ser irrelevante. A sexualidade começa a ser encarada como atributo de um único gene, assim como a cor dos olhos. "Um gene 'para' a sexualidade manipula todos os outros genes para seus próprios objetivos egoístas" (Dawkins, 2007, cap. II — nas notas). Dessa forma, se a reprodução sexuada beneficiar o gene responsável pela característica dessa reprodução, isso constitui, segundo Dawkins, explicação suficiente para a existência da reprodução sexuada.
Essa explicação é manifestamente tautológica, pois, se a seleção natural atua no nível do gene, ela se manifesta no nível do indivíduo. É ele que vive ou morre.40
No livro de Dawkins, originalmente publicado em 1976, lemos:
Mas o paradoxo começa a parecer menos paradoxal se seguirmos o argumento deste livro, e tratarmos o indivíduo como uma máquina de sobrevivência construída por uma confederação efêmera de genes de vida longa. A "eficiência" do ponto de vista do indivíduo passa então a ser considerada irrelevante.41
Vê-se assim que a crítica não é um ponto levantado por terceiros, mas uma objeção cogitada pelo próprio Dawkins ao seu argumento — a semelhança com a estratégia retórica adotada por Darwin no Origem, ao dedicar um capítulo inteiro às dificuldades de sua teoria, certamente não é mera coincidência. E Dawkins prossegue:
A sexualidade versus assexualidade será encarada como um atributo sob controle de um único gene, assim como olhos azuis versus olhos castanhos. Um gene "para" a sexualidade manipula todos os outros genes para seus próprios objetivos egoístas. Isso também ocorre com um gene para o crossing-over.42Existem até mesmo genes — chamados "mutadores" — que manipulam a frequência dos erros de cópia nos demais genes. Por definição, um erro de cópia é desvantajoso para o gene que é mal copiado. Contudo, se o erro for vantajoso para o gene "mutador" egoísta que o induz, este poderá disseminar-se pelo pool[conjunto] de genes. Igualmente, se o crossing-over beneficiar o gene que o determina, isso constituirá uma explicação suficiente para a existência do crossing-over. E se a reprodução sexuada, em oposição à reprodução assexuada, beneficiar um gene para a reprodução sexuada, isso constituirá uma explicação suficiente para a existência da reprodução sexuada. É comparativamente irrelevante se ela beneficia ou não o conjunto dos genes do indivíduo no seu todo. Do ponto de vista do gene egoísta, o sexo não é, afinal de contas, tão bizarro.43
O que problematizamos aqui é se o trecho de Haddad caracteriza adequadamente o raciocínio de Dawkins e se permite a conclusão de que se trata de um raciocínio tautológico. Como no início de nossa resenha, antecipamos aqui que nossa resposta é negativa às duas questões. Ao termos aqueles fragmentos de Dawkins citados em O terceiro excluído no contexto do seu parágrafo original, no parágrafo acima transcrito, podemos voltar a atenção para o que Dawkins está discutindo: Qual é o paradoxo? E em que sentido o sexo não é algo bizarro?
Antes de mais nada, uma ressalva. O gene egoísta é um livro de divulgação da ciência. No prefácio vemos que o autor almeja o público leigo entre seus leitores potenciais e prevê que o especialista possa reagir “com ruidosos suspiros” às suas “analogias e figuras de linguagem”.44 De fato, Dawkins faz uso de um grande número de metáforas, analogias e metonímias. À altura do excerto acima, retirado da página 102, Dawkins expressou novamente a liberdade que tomava ao usar expressões como "gene da sexualidade", ou “gene do crossing-over”. De fato, já na página 72, ele havia alertado que características complexas, bem como partes do corpo, resultam da expressão não de um, mas de muitos genes, e que “o efeito de qualquer um deles dependerá da sua interação com muitos outros”.45 Ele escreveu ainda que em tais circunstâncias talvez fosse melhor se referir a “complexos de genes”, mas dado o caráter replicador de cada gene desse “complexo”, considerava necessária a referência a cada um deles em particular. Ou seja, o autor declarou que, por “gene”, ele entendia “uma unidade genética suficientemente pequena para durar um grande número de gerações”,46 fosse essa unidade um cístron (segmento de um gene cuja leitura codifica uma ou mais proteínas), fosse um grupo de genes responsáveis pelo padrão de mimetismo de uma espécie de borboletas (como o que ele descreve à página 84). Embora Dawkins tenha feito uma escolha sujeita a críticas, e dado o uso recorrente de metáforas e analogias,47 parece justo não ignorar esse contexto metafórico como o fez Haddad no excerto ao referir-se ao “gene ‘para’ sexualidade”, e por duas razões. Uma é a de que é possível considerar o texto do Dawkins como responsável pela revisão crítica da ideia de Williams, de seleção centrada no gene, pois foi pela metáfora de “gene egoísta” que a noção se disseminou e provocou debates aprofundados. Outra é que o deter-se na crítica das metáforas impede a exploração de seus desenvolvimentos, quase sempre frutuosos.
Além de levar em consideração o uso de metáforas por Dawkins, que explicitou que nenhum gene sozinho pode ser considerado a causa de uma estrutura complexa, a compreensão do paradoxo a que ele se refere exige ainda que se recuem algumas páginas em seu livro. Qualquer gene deve também ser considerado em relação a todos os outros ambientes genéticos nos quais o gene considerado opera — notando que ambientes genéticos alternativos podem, inclusive, influenciar na expressão do gene que consideramos. Em síntese, “o conjunto completo dos genes de um corpo constitui uma espécie de clima ou pano de fundo genético, modificando e influenciando os efeitos de qualquer gene em particular”.48
Se, no entanto, um organismo é o resultado da expressão conjunta de muitos genes, Dawkins considera ilógico pensar em termos de sucesso evolutivo de cada gene em particular. Professor em Oxford, explica fazendo recorrência a outra analogia, dessa vez envolvendo um esporte coletivo tradicional nas universidades inglesas: o remo. Nesse esporte, cada posição do barco demanda habilidades específicas do remador que a ocupa. Cada membro da equipe de remadores, portanto, se especializa em uma dessas funções. A analogia que Dawkins propõe é a de considerar cada uma das posições do barco como um “lócus gênico” (termo que designa a posição ocupada por um gene em um cromossomo); a equipe de remadores como o “pool gênico” do organismo (termo pelo qual se refere ao conjunto de genes que caracterizam uma população e cujas frequências variam, ao longo do tempo, em função da seleção natural); e os remadores, especializados em uma dada posição, como os “genes alelos” (termo que refere às versões alternativas de um gene para uma dada característica). Ora, qualquer posição no barco é disputada pelos membros alternativos da equipe de remadores especializados naquela dada posição para formarem o grupo titular daquela equipe. Analogamente falando, dado o poolgênico, ou seja, o conjunto de genes remadores disponíveis, múltiplas formações titulares seriam possíveis, alternando, para cada posição no barco, o gene remador. O sucesso de cada uma dessas “equipes” seria o resultado conjunto das habilidades conferidas por cada remador alternativo, em sua posição de especialidade, a uma dada formação. Para a analogia funcionar, o técnico escolheria aleatoriamente combinações alternativas de genes remadores, colocando-as na água para competir. Dada a formação randômica das equipes, pode-se supor que diferentes combinações de remadores habilidosos podem gerar contextos de equipe mais ou menos favoráveis. Escreveu Dawkins:
Depois de algumas semanas, começará a ficar claro para ele [o treinador] que o barco vencedor tende, com frequência, a conter os mesmos indivíduos, os quais serão considerados bons remadores. Os outros indivíduos tendem a se encontrar sempre nas equipes mais lentas e serão, por fim, rejeitados. Entretanto, mesmo um remador excepcionalmente bom poderá, algumas vezes, ser membro de uma equipe lenta, quer em razão da inferioridade dos demais membros, quer devido à má sorte — por exemplo, um forte vento contrário. É apenas em média que os melhores homens tendem a estar no barco vencedor.49
A analogia proposta por Dawkins permite pensar que o ambiente genético no qual se dá o “sucesso” de um gene é o conjunto de outros genes que compõe o “barco” do qual ele faz parte. Daí podemos compreender o paradoxo a que se refere Dawkins:50 se há mecanismos de reprodução que simplesmente copiam uma combinação de genes, sem rearranjá-los (reprodução assexuada), por que a reprodução sexuada (um processo que constantemente rearranja os remadores em novos times) é tão amplamente difundida entre as diversas espécies?51 Se a seleção natural seleciona os indivíduos mais aptos, por que é mais frequente um mecanismo que necessariamente destrói as combinações de genes que levam à aptidão? É no mínimo bizarro, diz Dawkins, todo o esforço que um organismo que se reproduz sexuadamente deve empreender para fazê-lo com sucesso.
Esse é o contexto no qual Dawkins afirma que o paradoxo entre seleção de indivíduos mais aptos e a reprodução sexuada se atenua quando se considera a seleção do ponto de vista do gene em lugar da seleção do ponto de vista do indivíduo.
A analogia ainda pode ser estendida. Imagine dois barcos com todas as posições ocupadas por cópias exatas dos mesmos remadores, os mais habilidosos naquela posição, exceto uma, digamos, a do timoneiro. Aqui, há duas versões alternativas de timoneiro, dois alelos. Imagine que uma delas é levemente mais habilidosa que a outra. Nesse caso, “a ‘eficiência’ do ponto de vista do indivíduo passa a ser considerada irrelevante”.52 Considerando a maneira como Dawkins definiu gene, para efeito do seu argumento (uma unidade genética suficientemente pequena para durar um grande número de gerações), o gene timoneiro “manipula todos os outros genes para seus próprios objetivos egoístas”.53 A habilidade de ser um bom timoneiro é motivo suficiente para a existência e a propagação de uma versão do gene, e não qualquer outra habilidade, no pool gênico. Assim, se o ambiente no qual dois alelos alternativos competem é o conjunto de outros genes no qual se encontram, ceteris paribus (expressão latina que significa “tudo o mais permanecendo constante”), a seleção tenderá a favorecer aquele que melhor contribui para a sua própria propagação. No entanto, a ação desses genes, como a dos remadores, é fundamentada na cooperação. Na analogia, um remador que é altamente eficiente na sua especialidade, mas incapaz de trabalhar em equipe pode impedir o bom desempenho do barco. Um gene que aumente a sua taxa de duplicação, estimulando a divisão mitótica da célula em que se encontra é altamente eficiente em aumentar seu número de cópias. Seu efeito, no entanto, pode ser bastante prejudicial, até letal, para o organismo que o abriga.
É possível concordar ou discordar do argumento da seleção do ponto de vista do gene, e há uma discussão caudalosa na literatura.54 De fato, um embate intelectual acerca desse tema se travou por anos entre Dawkins e o célebre paleontólogo de Harvard, Stephen Jay Gould. O leitor encontrará uma extensiva revisão desse embate particular em Kin Sterelny.55
De qualquer modo, defendemos que não há nada de circular no argumento de Dawkins, ao contrário do que se afirma em O terceiro excluído: “Essa explicação é manifestamente tautológica, pois, se a seleção atua no nível do gene, ela se manifesta no nível do indivíduo. É ele que vive ou morre”.56 A percepção de uma tautologia acontece apenas porque há, no argumento, uma incompreensão de como a seleção atua sobre os genes. Não se distingue o conceito de seleção do ponto de vista do gene e do ponto de vista do indivíduo.
A seleção do altruísmo no contexto familiar
O deslocamento da ação da seleção, do indivíduo para o gene, permite compreender melhor outras formulações como a seleção de parentesco, proposta com o intuito de resolver os impasses que a seleção de grupo fez emergir. Haddad a apresenta,57 no contexto da evolução do comportamento altruísta, como um mecanismo de cálculo de custos versusbenefícios de um dado comportamento, ponderado pelo grau de parentesco dos indivíduos envolvidos. Assim, comportamentos altruístas (que envolvem maior custo e menor benefício para o indivíduo que exibe o comportamento) tenderiam a ser mais frequentes quando os indivíduos beneficiados pelo comportamento são mais proximamente aparentados (e, portanto, compartilham um maior número de genes). Para Haddad, isso funcionaria como uma crítica à seleção de grupo pois “os organismos seriam altruístas apenas em relação a seus próprios genes, e não em relação ao grupo a que pertencem”.58 Os genes, esses titereiros do comportamento dos indivíduos, produziriam apenas dissimulação: “o altruísmo, segundo as abordagens biológicas, acaba sendo sempre produto de um cálculo egoísta”.59
A ideia de seleção de parentesco foi formulada pelo biólogo evolucionista britânico William D. Hamilton,60embora tenha sido intuída anteriormente por Haldane.61 Foi a partir de sua proposição que o problema do comportamento altruísta em insetos eussociais62 (como as abelhas) foi mais bem compreendido, e está diretamente relacionado ao padrão de parentesco exibido por esses insetos. Tomemos nós, humanos: recebemos metade dos nossos genes de cada um dos nossos pais. Assim, compartilhamos metade dos nossos genes com nossos irmãos. Já com as abelhas, isso é bastante diferente, a começar pela determinação do sexo. As fêmeas são derivadas da fecundação de gametas (pelo mecanismo usual: um espermatozoide do macho se funde a um óvulo da fêmea) e, assim, recebem metade dos seus genes de cada um dos seus pais — nada de novo. Já os zangões, machos, derivam de óvulos não fecundados: todos os seus genes são recebidos das suas mães. Desse modo, enquanto as fêmeas possuem duas cópias de cada gene — e podem passar para seus descendentes uma ou outra dessas cópias — um macho tem apenas uma cópia de cada gene, e todos os seus descendentes receberão essa mesma cópia. Pensemos agora na prole de um casal de abelhas: nas fêmeas — as únicas derivadas de fecundação —, metade dos genes serão idênticos (aqueles genes provenientes dos seus pais zangões). Já a outra metade (proveniente da mãe) terá probabilidade de 50% de ser igual entre duas fêmeas da prole. Assim, se metade dos genes de duas irmãs é igual, e a outra metade tem 50% de chance de ser igual, temos que duas abelhas irmãs compartilham 3/4 dos seus genes. Quais seriam as implicações desse fato para a evolução do comportamento altruísta?
Numa colônia de abelhas eussociais, temos, entre as fêmeas, dois tipos: as rainhas e as operárias. As operárias são responsáveis pela manutenção da colônia, coleta de alimento, cuidado com as larvas e defesa. Fazem todo o trabalho, exceto um: reproduzir-se. São estéreis. A reprodução é tarefa exclusiva da rainha — uma fêmea, como as operárias, que compartilha, lembremos, 3/4 dos seus genes com suas irmãs estéreis. Assim, do ponto de vista do sucesso reprodutivo de cada indivíduo, a enorme energia gasta pelas operárias na manutenção da colônia não faria sentido, tampouco o autossacrifício que fazem na defesa da colônia contra um agressor — as operárias morrem quando ferroam um oponente. A seleção de parentesco explica o altruísmo extremo das abelhas eussociais: um gene que aumente a propensão ao altruísmo em cada uma das fêmeas aumenta o custo desse comportamento para a sobrevivência do indivíduo. No entanto, devido à proximidade genética incomumente alta entre as abelhas irmãs, do ponto de vista dos genes, é praticamente irrelevante se um indivíduo em particular não vai se reproduzir. Protegida a rainha, seus genes se perpetuarão. O conjunto de genes que compõe uma operária, produzindo comportamentos que sustentem a colônia e maximizem a probabilidade de reprodução da rainha, maximizam a sua própria probabilidade de reprodução, mas em outro indivíduo.
A teoria da seleção de parentesco, portanto, implica que somos mais propensos a fazer sacrifícios por aqueles organismos mais próximos geneticamente a nós.63 Vem daí o chiste de Haldane, citado por Haddad à página 39 (“eu daria a vida para salvar dois irmãos…”) e sua constatação de que a seleção de parentesco não dá espaço ao “altruísmo genuíno e desinteressado”. É como se a seleção de parentesco significasse que somos indivíduos cujas escolhas se baseiam em cálculos sobre proximidades genéticas e probabilidades de sobrevivência. Não é nossa intenção aqui fazer uma discussão sobre as implicações da aplicação dos princípios da seleção de parentesco sobre o comportamento humano (o leitor interessado encontrará um bom texto introdutório em Wright, 1996). Não deixa de ser curioso, no entanto, que os sistemas simbólicos em cuja estrutura estão implicados grandes imperativos altruístas frequentemente utilizem signos relacionados ao parentesco na identificação mútua dos seus membros — durante as guerras, soldados que devem fazer sacrifícios por outros soldados com os quais geralmente não têm qualquer parentesco são transformados em irmãos em armas; em certas tradições religiosas, a massa de fiéis é identificada como filha do mesmo pai e, assim, pode se reconhecer mutuamente como irmãos e irmãs. O uso conspícuo de metáforas relacionadas ao parentesco parece favorecer a identificação e aumentar a propensão ao comportamento altruísta em muitas instâncias da cultura humana. As relações entre o uso simbólico e a ideia de seleção de parentesco merece a atenção dos investigadores.
A Rainha Vermelha como justificativa para o sexo
A inconsistência dada ao conceito de “seleção a partir do gene” leva também O terceiro excluído a equívocos quanto a algumas consequências teóricas — que trazemos abaixo e contrapomos a seguir. A reprodução sexuada se justificaria pelos “inequívocos benefícios que traz ao indivíduo num ambiente de mudanças rápidas, em particular quando o desafio provém de agentes patogênicos em evolução acelerada”.64 Dessa maneira, a “recombinação dá à prole uma vantagem inicial na corrida contra os germes”.65 Em seguida, o texto descreve situações em que a reprodução sexuada não é uma vantagem:
Cabe observar que nem toda reprodução sexuada é vantajosa. Todo organismo convive com mutações danosas que, quando se tornam dominantes numa população, são eliminadas por seleção natural. A maioria das mutações danosas, não obstante, é recessiva e só causa danos quando se acumula numa população, aumentando a probabilidade de dois portadores se acasalarem.66
Iniciemos nossa análise pelas circunstâncias, apontadas nessa citação, nas quais a reprodução sexuada é uma desvantagem. Se uma mutação se torna “dominante”67 numa população, é exatamente porque há uma pressão seletiva favorável a ela, ou pelo menos neutra (ausente, neste caso chegando a uma frequência significativa por deriva genética aleatória). Dessa primeira maneira, essas mutações “dominantes” (no sentido de “mais frequentes”) estão se tornando assim justamente por efeito da seleção natural. O fim do período também revela uma falha na compreensão. O acúmulo, ao longo do tempo, de mutações recessivas e danosas numa população é tornada possível, pelo menos em alguns casos, pela reprodução sexuada. Considere, por exemplo, um gene recessivo e letal (que mata os indivíduos homozigotos antes do período fértil). É a reprodução sexuada que permite que esse alelo se mantenha na população, “escondido” pela heterozigose. É o que se chama, em genética, de carga genética (genetic load), a frequência de alelos recessivos que uma população "tolera" até que esses comecem a se “reencontar” em homozigotos, originando um efeito deletério. Considerada a partir do ponto de vista do gene, a reprodução sexuada opera de jeitos misteriosos.
Tomemos agora a associação entre reprodução sexuada e combate a agentes patogênicos. Considerar a reprodução sexuada uma boa estratégia para os indivíduos lidarem com patógenos faz sentido? Mais ainda, ela é contraditória com a ideia de seleção do ponto de vista do gene? Para responder a isso, vamos examinar brevemente o modelo conhecido como hipótese da Rainha Vermelha,68 formulado inicialmente por Van Valen69 e desenvolvido por Ridley.70
Considere uma combinação eficiente de genes-remadores. Como a maioria dos desafios ambientais que uma dada combinação de genes enfrenta é causada por outras combinações de genes (que, na natureza, produzem organismos predadores, parasitas, competidores), a adaptação pode ser uma condição temporária. Afinal, os competidores, predadores e parasitas estão sempre sofrendo mudanças em seus genes, de modo que sempre haverá uma nova configuração deles, tornando-os diferentes e possivelmente mais perigosos. Assim, é preciso, tal como a Rainha Vermelha da ficção, “correr o mais que se pode para continuar no mesmo lugar”, ou seja, mudar coadaptativamente para fazer face a novas ameaças. Ridley71 argumenta que, entre todas as ameaças, a potencialmente mais perigosa é a representada pelos patógenos: “A ‘Grande Guerra’ de 1914–18 matou vinte e cinco milhões de pessoas em quatro anos. A epidemia de influenza que a seguiu matou vinte e cinco milhões em quatro meses”.
De fato, para uma dada espécie, há mais organismos patogênicos do que predadores ou competidores, e seu ciclo de vida, usualmente muito mais curto que de suas vítimas, faz com que sejam os patógenos, muito mais que os predadores, os responsáveis pelo controle populacional dos seus hospedeiros. Dessa maneira, os sistemas imunológicos dos hospedeiros são o mais importante fator de pressão evolutiva, selecionando continuamente linhagens de patógenos que sobrevivem às suas táticas de defesa. Por outro lado, os patógenos produzem, eles próprios, uma pressão seletiva sobre os sistemas imunológicos, selecionando os mais eficientes — a metáfora da “corrida armamentista” também já foi utilizada para descrever essa condição. Tudo o mais permanecendo constante, é um conjunto de genes-remadores que produz a defesa imunológica do selecionado, contra todos os outros conjuntos possíveis, no corpo do hospedeiro (raciocínio análogo poderia ser feito sobre o conjunto de genes-remadores que produzem a patogenicidade no agente parasita). Resumindo, o conjunto “vencedor” de genes-remadores do lado do hospedeiro tem esse status apenas temporariamente. Assim, a mera cópia dessa configuração genética “vencedora” resultaria apenas em um fracasso adiado.
Imagine o leitor, no entanto, que um outro gene (novamente, na acepção de gene empregada por Dawkins) produza um mecanismo de “reembaralhamento” dos remadores genéticos responsáveis pela defesa imunológica a cada geração. Ele produziria, na prole, novas combinações destes remadores. Mais do que isso, essas novas combinações não seriam produzidas a partir de um conjunto aleatório de remadores, mas daquele conjunto que, dado o processo de seleção histórica ocorrido até aquele momento, já é bastante “bom” em produzir respostas de defesa. A reprodução sexuada permite, a partir da "inteligência acumulada" pelo processo de seleção, testar novas combinações de remadores, que serão novamente selecionadas em função das novas combinações de remadores-patogênicos nos parasitas. Nesse contexto, não apenas as novas combinações de remadores imunológicos, mas também o “gene do reembaralhamento”, se propagariam no pool gênico da população ao longo do tempo. Assim, o “gene para a sexualidade”, mais uma vez, “manipulou todos os outros genes para os seus próprios objetivos egoístas”.72 A “cooperação” entre “genes egoístas” não é ilógica ou mesmo tautológica.
É importante perceber que pensar a evolução da reprodução sexuada não é de nenhum modo incompatível com a ideia de seleção do ponto de vista do gene, como parece querer dizer Haddad.73 Nem mesmo as noções de egoísmo e altruísmo podem ser afastadas da análise (obviamente consideradas como metáforas, no sentido utilizado por Dawkins: características de agentes destituídos de intencionalidade). O sexo não “altera” a dinâmica da evolução, mas é, ele mesmo, agente e produto do processo evolutivo.
O que pensamos, enfim, sobre o primeiro capítulo
É sempre bem-vinda, e indicadora de erudição e apetite intelectual, uma iniciativa de síntese de conhecimentos, especialmente quando envolve campos de pesquisa em expansão tão acelerada, como é o caso da biologia, antropologia e linguística nas últimas quatro décadas. A iniciativa se torna mais importante, e necessária, quando esses campos estão direcionados a temas imbricados, como no caso da evolução biológica e da cultura. Além de coragem, tal esforço exige duas características cruciais, acuidade e atualização conceitual. Como se procurou expor nos exemplos tratados aqui, O terceiro excluído falhou em atender a esses dois critérios plenamente.
Quanto à acuidade conceitual, procuramos ilustrar com os exemplos neste longo comentário as dificuldades em compreender a natureza de conceitos biológicos mobilizados ao longo do primeiro capítulo de O terceiro excluído. Mostramos o quanto foi desconsiderado o fato de, muitas vezes, os conceitos científicos serem constituídos como metáforas. O uso de metáforas no discurso científico “não apenas facilitou a compreensão dos respectivos fenômenos, mas também tem influenciado […] a direção que a pesquisa tem tomado”.74 Kostas Kampourakis adverte justamente sobre a importância de os cientistas refletirem “sobre os significados e usos das metáforas que empregam, assim como devem ser explícitos sobre suas limitações”.75 Vimos que Dawkins faz uso extensivo de metáforas (e analogias) para abordar os conceitos que discute — e o faz deliberadamente, advertindo o leitor. Haddad parece considerá-las uma ameaça à qualidade da argumentação.76 Embora ele não esteja absolutamente sozinho nesse ponto77, enquanto isso, as metáforas e analogias continuam servindo para orientar a ciência e são consideradas tão legítimas quanto na poesia ou retórica.78 Metáforas não são sequer dispensáveis das teorias científicas, na medida em que “fazem um trabalho genuíno na exposição” de uma teoria científica.79
Quanto à atualidade da literatura, O terceiro excluído pouco arregimenta das discussões avançadas pela comunidade de estudiosos da área. Além da filosofia da ciência erigida ao longo do século XX, fundamentalmente sobre as questões do mundo natural não vivo, nos campos da física e da química surgiu uma subárea autônoma e independente, a filosofia da biologia. Assim como a história da biologia, ganhou expressão própria, com congressos e periódicos específicos, justamente nos anos 1980,80 e passou por crescimento bastante acelerado nas duas primeiras décadas do século XXI (uma revisão desse histórico foi recentemente apresentada por Uller e Kampourakis).81 Praticamente alheio a esses 40 anos de expansão contínua, o livro aqui analisado abordou basicamente as discussões das décadas de 1960 a 1980, historicamente importantes, mas que já foram, se não superadas, bastante redimensionadas. Portanto, o livro recupera apenas parcialmente a história das controvérsias sobre os temas que abordou. Pudemos mencionar alguns dos autores significativos ao longo da nossa discussão. Haveria muito mais. De qualquer forma, tendo sido esse um dos pilares com que a obra pretendeu alegar a insuficiência do arcabouço conceitual da biologia para discutir a evolução cultural, a incipiência do tratamento dado à compreensão de conceitos biológicos levou a problemas incontornáveis na argumentação. Essas lacunas fazem com que a obra perca em originalidade e pertinência para ser dirigida aos desafios conceituais que a intersecção de disciplinas abordadas pela obra impõe. Os novos modos de explicação que apareceram no final do século XX, como profetizou Evelyn Fox Keller,82 tendem a assumir uma importância ainda maior neste — já longo — século XXI.