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Sempre fomos antagonistas: resistência e dissidências algorítmicas para além do Norte Global1

Introdução: antagonismo na Era Paleocibernética

Em 1969, o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Henry Kissinger, disse que: “Nada importante pode vir do Sul. A história nunca foi produzida no Sul” (Hersh, 1982, tradução nossa; Arantes, 2021). Tal crença ressoa em muitos estudos sobre a história e as práticas da computação, incluindo discussões sobre abordagens ativistas e artísticas relacionadas às desigualdades e injustiças causadas por sistemas computacionais. Com algumas exceções, grande parte do que hoje é discutido nesses campos diz respeito ao trabalho realizado em laboratórios de ponta, instituições culturais e empresas de tecnologia do chamado “Norte Global”. No entanto, como proposto por Rodrigo Ochigame (2020), “algoritmos da opressão estão ao nosso redor há muito tempo, assim como projetos radicais para desmantelá-los e construir alternativas emancipatórias”. Nossa sugestão neste artigo é de fato considerar como essas histórias não totalmente reconhecidas podem ajudar (artistas, ativistas e pesquisadores no campo da arte e da computação) a apreciar mais profundamente as bases sobre as quais criamos nossas resistências à computação contemporânea.

Partindo do caso do Brasil, nosso argumento neste artigo é de que sempre fomos antagonistas. Nosso objetivo é mostrar que as práticas cotidianas de dissidência tecnológica no país, assim como as muitas rupturas táticas criadas por artistas e ativistas, representam uma história de antagonismo algorítmico que devemos recuperar, proteger, difundir e aprender com. Além disso, discutimos como essas raízes profundas, como a apropriação de tecnologias e a criação de redes alternativas de informação se relacionam com formas contemporâneas de antagonismo algorítmico. Através da confluência entre perspectivas históricas e contemporâneas sobre computação, buscamos oferecer um enquadramento alternativo que rompe com o cânone dominante do Norte global. Nesse sentido, tomamos o Brasil não como um centro único para tal conceituação, mas um exemplo dentre muitos outros locais possíveis de práticas algorítmicas contra-hegemônicas. Como tornaremos claro, essa discussão precisa ser continuada a partir de outras localidades e perspectivas.

Começamos 50 anos atrás, no início dos anos 1970. No auge da ditadura civil-militar brasileira, enquanto Kissinger apoiava golpes de estado no Chile e além (Hersh, 1982), o artista Waldemar Cordeiro fazia história ao criar algumas das primeiras obras de arte computacional do mundo.2 A prática inovadora de Cordeiro envolveu o uso de algoritmos para modificar processualmente imagens digitalizadas — isso num momento em que a computação e a cibernética estavam em suas infâncias. A mulher que não é B.B. (Fig. 1) é uma versão digitalizada de uma foto que mostra uma mulher vietnamita, uma das muitas vítimas da guerra do Vietnã, chorando. A obra foi criada por Cordeiro em 1971 e é apresentada como um pedaço de papel impresso diretamente do computador IBM 360/44. A própria imagem é composta por uma matriz de caracteres ASCII, uma grade que só se torna uma imagem coerente quando vista de longe — ao contrário da composição estrutural da imagem, que é tudo o que é visível de perto.

Figura 1: Para Cordeiro, o resultado visual era menos importante do que o processo: o algoritmo que roda e constrói a imagem por trás das cenas. Aqui, então, apresentamos uma reconstrução (2021) da obra A mulher que não é B.B. (1971), de Waldemar Cordeiro, criada pelo artista-programador Vamoss (https://vamoss.com.br/). Por meio da plataforma OpenProcessing, todos podem ver e interagir com o código, resignificando as ideias de Cordeiro para um paradigma nomeado por Vamoss de “arte de código aberto”.

A obra de Cordeiro, fruto de sua parceria com o físico Giorgio Moscati, não é uma réplica direta da foto original: foi alterada algoritmicamente para introduzir ruído por meio de alterações aleatórias, corroendo a imagem original e sua aparência. O ato de transformar a fotografia impressa em código digital e manipulá-la algoritmicamente buscava expressar um comentário social e político. O primeiro aspecto dessa postura crítica é a escolha intencional da imagem, que dá visibilidade à catástrofe humanitária e à violência infligida pelos EUA através da guerra do Vietnã.3 O segundo aspecto está na manipulação algorítmica, que é usada para “destacar a composição estrutural da própria imagem” (Arantes, 2018) adicionando ruído programaticamente. A imagem, portanto, é intencionalmente “defeituosa”, não mais uma representação limpa do mundo, como muitas vezes objetivado pelas práticas fotográficas. O terceiro aspecto, o título, uma referência aos meios de comunicação de massa da época, contrasta a representação visual da renderização algorítmica da mulher vietnamita à imagem de B.B. (apelido de Brigitte Bardot). A mulher vietnamita e B.B. são diferentes não só no papel que desempenham nos meios de comunicação de massa (i.e. cinema/glamour high fashion × imagem de guerra), mas também na intersecção entre o sentimento que transmitem (i.e. sofrimento/choro × alegria/beleza ), sua materialidade (i.e. ruído × perfeição) e sua legibilidade (i.e. nitidez cinematográfica × semi-ilegibilidade).

Já no que ele mesmo denominou de “Era Paleocibernética”, no ano de 1971, a experiência de Cordeiro com a representação algorítmica de imagens não tinha o objetivo de simular diretamente a realidade por meio da tecnologia, de maneira pouco crítica — como faziam alguns artistas do Norte Global naquele momento. Em vez disso, Cordeiro procurou subverter o funcionamento maquínico e destacar outras formas potenciais de computação de imagens: formas que tentavam ser criativas, críticas, engajadas com a política da época e atentas à materialidade do meio emergente da computação. Ao fazer uma obra de computador que problematiza uma imagem de guerra, Cordeiro se separou “da arte computacional desenvolvida no cenário internacional, que se concentrava em formas altamente abstratas e metalinguísticas” (Arantes, 2018, p. 94). Cordeiro subverteu o aparato da computação através da estrutura (processo, algoritmo e representação) da própria obra de arte (ver Flusser, 2013 [1985]; Machado 2005, 2015).

Em um momento em que os computadores ainda ocupavam salas inteiras de laboratórios universitários de ponta, como os usados ​​por Cordeiro e Moscati na Universidade de São Paulo, o potencial da computação ser crítico e político, legível e ilegível, serve como nosso ponto de partida para considerar antagonismos algorítmicos. Nosso objetivo é demonstrar como esses antagonismos não são feitos apenas em oposição aos sistemas hegemônicos de computação, mas também formados por meio de apropriações e contaminações de tecnologias dominantes. Nesse sentido, nosso argumento amplia o que Velkova & Kaun (2021, p. 535) definem como resistência algorítmica: “uma forma cúmplice de resistência, que não nega o poder dos algoritmos, mas opera dentro de sua estrutura, usando-os para diferentes fins”. Como indica a introdução do dossiê sobre antagonismo algorítmico, no qual este artigo foi publicado originalmente (Heemsbergen, Treré e Pereira, 2022), não se trata apenas da resistência por meio do próprio algoritmo tecnicamente definido. Muitas vezes, e como já dito pelos estudos críticos de algoritmos (ver Dourish, 2016; Seaver, 2017), essa resistência é sociotécnica — formada por meio de uma reação social e política em torno de como os algoritmos são criados, usados ​​ou imaginados. Nesse sentido, o antagonismo algorítmico é entendido como uma ampla intervenção ativista na “composição de relações humano-algoritmo” (Amoore, 2020). Essa definição localiza os algoritmos em um sistema com muitas camadas, incluindo seu surgimento e operação na sociedade — por exemplo, as origens filosóficas dos algoritmos, suas condições de criação em empresas/universidades ou mesmo seus danos materiais às comunidades marginalizadas (ver Azar et al, 2021).

Artistas e ativistas há muito procuram trabalhar através das “propriedades e lógicas” das tecnologias (digitais) para fazer as coisas de forma diferente (ver, por exemplo, Sack, 2018; Machado, 2005; Treré, 2018). Nosso objetivo conceitual neste artigo é sugerir conexões entre essa história mais longa e a conceituação emergente de “antagonismo algorítmico”. Assim, nós conceituamos esse antagonismo de maneira fluida, pois ele tomou diferentes formas ao longo do tempo. Por exemplo, alguns dos trabalhos que discutimos envolvem apropriações tecnológicas que não necessariamente buscam alterar as condições tecnológicas hegemônicas, mas as utilizam como vetor para outras formas de redistribuição de poder. Estes são distintos, mas também semelhantes, aos antagonismos que buscam desafiar diretamente o sistema tecnológico, repensando as lógicas das tecnologias da informação por meio de mudanças estruturais. E mais: alguns desses projetos não estão diretamente envolvidos com tecnologias digitais ou algorítmicas em si, mas são importantes se buscarmos entender o digital como uma categoria não essencialista, com continuidades com paradigmas tecnológicos anteriores de comunicação e informação. Ao conectar a questão dos antagonismos algorítmicos com outros paradigmas tecnológicos anteriores, defendemos algum sentido de continuidade entre, por exemplo, a prática antagônica de infiltração nas redes de comunicação do serviço postal e a das redes computacionais. Nosso ponto é que esses sistemas mais antigos compartilem posições e práticas táticas semelhantes em relação aos sistemas de informação atuais, e que por isso precisamos conectar essas diferentes histórias. Em certo sentido, o que caracteriza a longa história dos antagonismos algorítmicos que discutimos não é seu caráter, ou se são projetos completos ou finalizados, mas o fato de que atuam taticamente fora da norma para intervir e romper o “regime semiótico dominante”, criando espaços para pensar e fazer diferente (Raley, 2009).

Como indicado anteriormente, nosso foco está em um contexto específico de antagonismo algorítmico: o Brasil. Começamos apresentando o poder histórico encontrado nas dissidências tecnológicas, particularmente na medida em que os sistemas tecnológicos foram apropriados como resistência a estruturas de poder desiguais. Em seguida, discutimos como rupturas táticas particulares na história da arte e do ativismo midiático buscaram contaminar e repensar as tecnologias em rede. A partir desses dois engajamentos, discutimos as noções particulares de antagonismo algorítmico que dois projetos contemporâneos (PretaLab/Olabi e Silo/Caipiratech) avançam e as relacionamos com seus equivalentes históricos. Por fim, concluímos delineando quais lições podem ser aprendidas ao unir noções históricas e contemporâneas de antagonismo algorítmico, tanto para a prática quanto para a pesquisa.

Dissidências: gambiarra e as dinâmicas de apropriação

Ao discutir nosso tema, é crucial irmos além de um enquadramento simplista que entenderia a tecnologia na arte e no ativismo brasileiros simplesmente como aplicações locais de tecnologias estrangeiras. Os pesquisadores de Estudos de Ciência e Tecnologia, Medina, Marques e Holmes (2014), indicam que tal enquadramento apresenta de forma estereotipada a relação da América Latina com os computadores como sendo a de uma “mágica importada”. Contrário a isso, é crucial levar a sério a reinvenção e adaptação tecnológica no Brasil, focando em formas específicas de pensamento e prática tecnológica que se formam na região. Nesta seção, buscamos essa abordagem a partir da discussão da teoria e da prática da “gambiarra”.

A noção de gambiarra teve forte repercussão no contexto da arte e do ensino brasileiro (Bruno, 2017; Menotti, 2017; Rosas, 2008). É uma palavra que emergiu da linguagem comum no Brasil e que costuma denotar montagens técnicas precárias e improvisadas que visam suprir necessidades particulares com insumos e ferramentas limitados e muitas vezes considerados não ideais. Os autores destacam a semelhança da gambiarra com o hacking e a desobediência tecnológica, e também a enquadram em conceitos mais amplos, como “criatividade tecno-vernacular” (Tragtenberg, Albuquerque e Calegario, 2021). As possíveis traduções de gambiarra para o inglês seriam kludge ou makeshift, e também há semelhanças notáveis com a noção indiana de jugaad e seu conceito associado de “inovação frugal” (Rai, 2015).

Esse processo de apropriação, adaptação e improvisação também guarda relações históricas mais específicas com o Movimento Antropofágico, movimento de vanguarda artística brasileiro liderado, em 1928, por pensadores como o escritor Oswald de Andrade, a pintora Tarsila do Amaral e o escritor Antônio de Alcântara Machado. Em seu manifesto, eles advogam justamente pela apropriação (e reinvenção) do estrangeiro: “Hoje somos antropófagos. E foi assim que chegamos à perfeição (…) A experiência moderna (…) acabou despertando em cada conviva o apetite de meter o garfo no vizinho.” (Machado, 1928). Oitenta anos depois, Beiguelman (2010) atualizou essa noção para o campo da arte e da tecnologia com seu conceito de “tecnofagia”, que ela define como algo “que pretende dar conta de operações de combinação entre a tradição e a inovação, arranjos inusitados entre saberes científicos e artesanais, revalidação das noções de high e low tech (…) e ações essencialmente micropolíticas de apropriação crítica das mídias e recursos técnicos.” Essas referências indicam como a gambiarra não é apenas uma prática técnica, mas profundamente relacionada à arte e à estética.

Entre diferentes abordagens sobre a noção de gambiarra, os estudiosos Messias e Mussa (2020) propõem situá-la como conceito-chave e operador epistemológico para compreender as dimensões política e estética da tecnologia em um sentido mais amplo. Em diálogo com as teorias contemporâneas pós-coloniais e da complexidade, os autores mobilizam a gambiarra para nomear “uma forma de conhecimento” caracterizada pela multiplicidade e por uma desvinculação em relação a formas cristalizadas e hegemônicas de lógica e raciocínio. Eles argumentam que, como conceito, gambiarra não deve se restringir ao contexto brasileiro ou ao significado denotativo original da palavra. Muito pelo contrário, eles propõem que o conceito deva nomear formas de pensamento e de prática tecnológicos que não são restritos nem pela geografia nem pelo status socioeconômico.

Embora nessa abordagem a gambiarra não pareça ser necessariamente antagônica, é preciso destacar que muitas vezes sua multiplicidade e desprendimento são respostas improvisadas à precariedade que, ao se estabelecer como condição estrutural da desigualdade, é consequência típica da colonização e da opressão. Assim, a gambiarra deve ser entendida como pensamento e práticas tecnológicas situadas e nascidas da resistência. Além disso, o conceito de gambiarra não é simplesmente uma questão de assimilação de “magia importada”, mas, sim, como uma forma um tanto distinta de pensamento e prática caracterizada pela reinvenção e reaproveitamento crítico. Ele é capaz não apenas de reescrever o roteiro implícito (Akrich, 1992) de um determinado objeto técnico, mas também de inventar tecnologias alternativas por conta própria.

O que é particularmente interessante sobre essa noção de gambiarra como forma de antagonismo é que ela encontra ressonância na mídia cotidiana e nas práticas tecnológicas no Brasil. Um exemplo representativo é como a mídia e a pirataria digital estão disseminadas no país, talvez mais do que em qualquer outro lugar do mundo (ver Feltrin, 2020). Uma prática cotidiana, a pirataria envolve a criação de redes alternativas através das quais software, filmes, músicas e outros conteúdos podem ser compartilhados ou vendidos de forma acessível. É visto pelos participantes como uma solução criativa e uma forma de quebrar as fronteiras impostas pelos ricos detentores de propriedade intelectual do Norte Global, assim “[fornecendo] a resposta necessária aos monopólios internacionais e seus colaboradores locais” (Dent, 2012, p. 44). Ou seja, no contexto da desigualdade grosseira (tanto tecnológica quanto econômica), é por meio dessas gambiarras que “nós [brasileiros] evitamos pagar os preços ridículos que os cidadãos de países de primeiro mundo não pagam” (Dent, 2012). Esses antagonismos, embora não modifiquem diretamente o funcionamento da tecnologia no país, representam como as relações tecnológicas cotidianas são marcadas por dissidências à ordem hegemônica.

Embora o conceito de gambiarra tenha sido usado para entender como os antagonismos tecnológicos operaram nos últimos tempos, ele também permite colocar em perspectiva uma história mais profunda de desenvolvimento e apropriação tecnológica como resposta à opressão. Em seu sentido pejorativo, a palavra gambiarra tem sido usada na linguagem comum para minar o desenvolvimento tecnológico tático liderado por grupos oprimidos. Um caso claro disso é como, devido ao racismo historicamente arraigado no país, a tecnologia produzida por negros tem sido historicamente deslegitimada e não reconhecida. No entanto, conforme discutido pela pesquisadora Taís Oliveira (2021), “o desenvolvimento e o uso da tecnologia não é novidade para os negros, pois a economia do Brasil foi construída desde o início com o trabalho dessa população que trouxe da África um conhecimento técnico muito bem desenvolvido.” O historiador Cunha Júnior (2010; 2015) tem dedicado muito trabalho a apontar as técnicas e os saberes precisos trazidos pelos escravizados, que vão desde a arquitetura até as tecnologias têxteis.4 Nesse sentido, Silva e Dias (2020) indicaram como a resistência dos quilombos, as comunidades de trabalhadores escravizados em fuga e libertos, foi fundada em suas próprias proezas tecnológicas. Os quilombos lançaram mão de técnicas e saberes ancestrais na sua ordenação espacial, mas também na soldadura do ferro, criando sofisticados artefatos “provavelmente usados para a produção, mas também para a guerra” (Silva e Dias, 2020, p. 7). Assim como as noções de gambiarra, essas dissidências históricas são muitas vezes desacreditadas, entendidas como menos evoluídas do que suas contrapartes brancas e/ou do Norte Global. Valorizar e compreender essas histórias nos permite compreender melhor que novas e velhas redes de apropriação e produção tecnológica são muito mais prolíficas do que a prática tecnológica hegemônica pode supor.

Rupturas táticas: contaminando tecnologias em rede

Os processos de resistência tecnológica podem ser compreendidos a partir de diferentes transformações históricas: uma delas é como as práticas artísticas mudaram desde o início do século XX. Desde as vanguardas europeias, as obras artísticas não ecoam mais a ideia do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg de que o sentido da obra está nela mesma. Em parte devido ao avanço da tecnologia, o campo se expandiu para práticas que entendem o artista “como um manipulador de signos” (Foster, 1996). No entanto, essa mudança não foi totalmente igual em todos os lugares. A crítica de arte brasileira Cristina Freire (2006) chama a atenção para como a desmaterialização da arte teorizada por pesquisadores nos EUA e na Europa (Lippard, 1997; Popper, 2007) repercutiu em contextos como a América Latina por meio de práticas muito menos centradas na própria arte. Na América Latina, a “crise do objeto de arte” (Zanini, 2018) ocorreu no contexto da década de 1970. Surgiu de forma importante como resistência à censura da época, ocasionada pelas diversas ditaduras civil-militares da região. Tais práticas artísticas buscavam de forma mais incisiva “confundir-se com o cotidiano” (Freire, 2006), a fim de se infiltrar nas redes de comunicação para fins politicamente subversivos. Nossa proposta é entender tais contaminações de tecnologias em rede como sementes importantes para resistências tecnológicas (ver também Chandler e Neumark, 2005).

O historiador da arte Walter Zanini é uma referência fundamental no processo de infiltração da arte nas brechas dos sistemas informacionais em rede dos anos 1970. Como curador do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), ele utilizou o museu como um espaço operacional não apenas para a exibição de obras acabadas, mas também como um local ativo de experimentação. Nesse sentido, as séries de exposições Jovem Arte Contemporânea (JAC) foram marcadas não por mostras formais, mas pela criação de espaços de trocas e colaborações em um momento em que a ditadura buscava limitá-las. Isso incluiu também um processo fundamental de disponibilização de equipamentos eletrônicos para jovens artistas que não tinham meios de acessá-los de outra forma. Foi por meio dessas redes que Zanini, por exemplo, disponibilizou para artistas as primeiras câmeras de vídeo Sony Portapak do Brasil.

​​ Sua atuação como professor também foi marcada por uma compreensão da arte que sustentava tais infiltrações em sistemas oficiais marcados pela repressão e cerceamento da liberdade de expressão. Utilizando-se de ideias como “solidariedade em rede” (Sayão, 2016), Zanini promoveu em suas aulas uma rede de arte postal na América Latina (do final dos anos 1960 até sua apresentação na XVI Bienal de São Paulo, em 1981), envolvendo a participação de artistas de vários países, especialmente da América Latina. Em um momento em que muitos desses países estavam sob regimes ditatoriais, essa rede de correio escapava ao controle e supervisão do Estado. Essa expansão do uso de uma tecnologia (o correio) ocorreu como reação a uma ameaça: “Se a memória coletiva estava ameaçada nos espaços públicos [por causa da ditadura], reforça-se nas redes alternativas de encontros virtuais” (Freire, 2006, p. 69). Tadeu Jungle, um dos alunos-artistas que participavam na época dessa rede, ainda lembra de sua intensidade:

Éramos muito jovens e não poderíamos criar essa rede sem a ajuda do Zanini. Ao contrário de muitos de nós, ele tinha plena consciência de que estava contaminando um sistema. Zanini costumava escrever um convite em inglês para acompanhar a arte postal enviada. Quando enviamos a arte de um postal, meses depois recebíamos não só uma resposta do artista que o recebeu, mas também outros postais de artistas daquele país (ou mesmo uma lista com endereços de outras pessoas interessadas em participar desta troca). Assim nossa rede cresceu e cresceu. (Jungle, 2021, comunicação pessoal).

Esse conceito de arte postal foi dinâmico e variou de trocas ocasionais via correio entre dois artistas para exposições coletivas maiores realizadas no museu. Não raro os trabalhos criados subverteram os materiais tradicionais dos correios, como ocorreu, por exemplo, em 1975 com um cartão-postal criado por Paulo Bruscky para o MAC-USP, no qual misturava selos oficiais com outros fictícios de sua autoria. Também era comum artistas fazerem a curadoria de exposições por meio das redes de arte postal. O artista colombiano Jonier Marin, por exemplo, foi o responsável pela exposição Papel e Lápis, de 1976, no MAC-USP, onde ativou uma rede de 45 artistas da América Latina e Europa. Cada um dos artistas enviou um desenho a lápis no papel ao lado de uma fotografia tamanho passaporte. O tema foi aberto e muitos artistas subverteram as fotos de passaporte ao produzir imagens com poses não tradicionais — questionando ironicamente tanto a oficialidade do controle de viagens quanto a dificuldade de viagens reais sob a ditadura.

Embora existam diferenças significativas entre arte postal e arte digital, argumentamos que suas semelhanças devem ser consideradas em um enquadramento histórico mais profundo do antagonismo algorítmico. Pois tais experiências eram de fato formas de hackeamento e infiltração em sistemas de comunicação estabelecidos nos quais o gesto artístico não pode ser entendido no objeto individual da carta que foi postada/recebida, mas sim no ato performativo de postagem pelo qual o objeto foi inserido em um determinado sistema. Portanto, a obra de Paulo Bruscky não se distancia muito das práticas da net art nos anos 1990. Muitas das obras postais de Bruscky traziam, no verso (Fig. 2), uma mensagem inscrita com um selo feito à medida em que se lia “Hoje, a arte é este comunicado” (ver Bruscky, 2006[1976]). Não seria exagero aproximar essa ideia da icônica obra de net art de 1997, Simple Net Art Diagram, de MTAA (M. River & T. Whid Art Associates), na qual uma seta vermelha em negrito indicava o cabo entre dois computadores com os dizeres: “A arte acontece aqui”. Em ambos os casos o gesto artístico se coloca no ato da intervenção na conexão que se realiza por meio de sofisticados sistemas de informação reaproveitados pelo artista.

Figura 2: Verso da obra postal Poema de Repetição (1985), de Paulo Bruscky, com a frase “Hoje, a arte é este comunicado” e “Arte via Aérea”. Além disso, dois outros selos marcam a obra: um aperto de mão, talvez simbolizando o ato de comunicação/solidariedade, e o de um carretel de linha de costura se desenrolando.

A noção de infiltração em sistemas em rede também aparece em projetos artísticos individuais no Brasil da época. Um dos casos mais emblemáticos foi o projeto “Inserções em Circuitos Ideológicos” de Cildo Meireles que, em uma de suas versões (1970), envolveu a impressão de mensagens antiestadunidenses em garrafas retornáveis de Coca-Cola usando serigrafia. O texto (por exemplo, uma imagem instrutiva de como transformar a garrafa em um coquetel molotov) foi impresso em branco, dificultando a detecção em garrafas vazias, mas claramente legível sobre o líquido escuro. Depois de consumidas, as garrafas vazias eram devolvidas às lojas locais para serem recarregadas, mas agora com uma mensagem política no seu processo de circulação. Meireles também infiltrou mensagens políticas ao carimbar notas de dinheiro da época com a pergunta “Quem matou Herzog?”, em referência ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelo regime militar brasileiro — enquadrado como suicídio pela ditadura. Essas infiltrações de sistemas continuam nas obras de Meireles, inclusive estampas em notas de dinheiro com a pergunta “Quem matou Marielle?” (referindo-se ao assassinato em 2018 da ativista e vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro).

Para além do âmbito da arte, experimentos de infiltração e criação de redes alternativas também foram realizados por meio de iniciativas de mídia ativismo, muitas vezes em intercâmbio com as artes. Entre as décadas de 1980 e 2000, vários grupos e organizações no país lideraram projetos em mídia comunitária e alternativa. Isso incluía estações de rádio e TV locais (muitas vezes “clandestinas”), bem como projetos educacionais focados na autorrepresentação por meio de vídeo e outros recursos de mídia. Dentre eles, destacamos um projeto em particular, o “Canal Motoboy”, que se situa na interface entre ativismo e arte. O projeto foi realizado em São Paulo, em 2007, por um grupo de doze motoboys e idealizado pelo artista catalão Antoni Abad, com a contribuição de vários artistas locais. Usando celulares com câmera (uma novidade na época), esses motoboys registravam suas experiências cotidianas em São Paulo e compartilhavam esses vídeos online. Esse projeto atraiu muita atenção de instituições artísticas e acadêmicas como um exemplo de representação contra-hegemônica da mídia por trabalhadores precarizados, que eram comumente estigmatizados pela grande mídia (Targino e Gomes, 2011).

A consolidação da internet e sua subsequente plataformização podem ter mudado o enquadramento em relação à mídia participativa e suas implicações, mas as questões trabalhistas permanecem centrais para a compreensão das tecnologias de mídia hoje. Nesse sentido, o Canal Motoboy poderia ser enquadrado como um antecedente de projetos mais recentes que tratam da questão do trabalho plataformizado, como a net artExch w/ Turkers”, a página ativista no Instagram “Treta no Trampo” e o trabalho de fotógrafo e entregador carioca Allan Weber. Essa continuidade, porém, não deve ofuscar a diferença entre esses dois momentos. Pois, em certa medida, no “Canal Motoboy”, as tecnologias midiáticas foram um acréscimo ao cotidiano dos trabalhadores, como meios de autorrepresentação, ao passo que nesses casos mais recentes há um entrelaçamento ainda maior de trabalho e tecnologias, tornando o uso de tais artefatos muito mais integrado ao próprio tema das obras de arte. No primeiro caso, as tecnologias midiáticas foram tomadas como instrumentos emancipatórios. Em contraste, nesses últimos casos, seu status é mais complicado, já que hoje as tecnologias midiáticas são instrumentos proeminentes de opressão e, portanto, os próprios locais de luta e alvos de práticas antagônicas realizadas por essas obras.

Esses diferentes usos da tecnologia em rede, longe de seu uso pretendido, destacam como artistas e ativistas procuraram fugir do controle centralizado, seja dos regimes ditatoriais ou da mídia e plataformas convencionais. Assim como a “rede de intercomunicação” criada pelos teólogos da libertação no Brasil descrita por Ochigame (2020), as redes de arte postal e ativismo de mídia alternativa que apresentamos visam contaminar e romper os sistemas normativos em busca de “solidariedade em rede”. No cenário mais amplo e contemporâneo do antagonismo algorítmico, tais casos trazem à tona uma história mais profunda de práticas de infiltração em sistemas de informação. Além disso, esses casos mostram como historicamente existiram múltiplas formas de resistência, sobretudo em como os sistemas alternativos de informação são construídos e desenvolvidos, contornando a mídia dominante e os paradigmas tecnológicos de seu tempo.

As práticas contemporâneas de antagonismo algorítmico

Ao reconhecer essa história mais profunda de antagonismo tecnológico, é possível lançar uma nova luz sobre as respostas contemporâneas de ativistas e artistas brasileiros às injustiças algorítmicas. Nesta seção, discutimos dois projetos contemporâneos, suas abordagens ao antagonismo algorítmico e como eles se relacionam com rupturas e dissidências táticas anteriores.

Uma questão-chave em debates recentes tem sido: “Quem desenvolve os algoritmos?”. Essa questão levou a diferentes iniciativas que buscam redistribuir o poder dado aos desenvolvedores de tecnologias, na maioria das vezes brancos, homens e do Norte global (ver, por exemplo, Broussard, 2019). Olabi surgiu como resposta a essas perguntas. Originalmente fundada como um makerspace/fab lab, a organização tem trabalhado em três eixos: “diversidade, tecnologia e inovação social” (Bahia, 2021). Localizada na cidade do Rio de Janeiro, o Olabi executou diversos projetos buscando ampliar as noções de produção tecnológica. Um exemplo disso é o workshop “Costura High-Tech”, destinado a pessoas com mais de 60 anos (Fig. 3). Trabalhando em conjunto com as comunidades locais do Complexo de Favelas da Maré, o projeto une “a ideia de misturar bordado, conhecimentos de corte e costura, com impressão 3D, eletrônica aberta, para construir tecnologias vestíveis” (Bahia, 2021).

Ao invés de centrar noções de transferência de competências tecnológicas, os projetos da Olabi têm buscado “criar redes e democratizar o acesso à inovação e tecnologia”. Sua oficina de “Costura High-Tech” antagoniza o caráter excludente de como as “tecnologias vestíveis” são hegemonicamente criadas através da implantação indiferente de algoritmos de alta tecnologia por empresas como Apple ou FitBit. Ao ampliar quem se envolve na criação e execução de tecnologias inteligentes — os idosos raramente são reconhecidos e incluídos como “criadores” digitais — o projeto também oferece um imaginário alternativo de como as criações algorítmicas podem não se restringir a empresas ou laboratórios do Norte global — assim como essas criações podem apoiar objetivos alternativos. Experiências como essas apontam para instâncias situadas e críticas das chamadas “culturas maker”, Do It Yourself (“Faça você mesmo”) — ou gambiarra, como definimos anteriormente — a partir de uma abordagem coletiva e comunitária, que poderíamos chamar de “Faça com outros”.

Figura 3: Workshop “Costura High-Tech” na Rio Design Week 2016. (Foto: Victor Domingues/Olabi)

Outras ações do Olabi têm considerado o racismo presente na produção de tecnologia algorítmica. O projeto “Pretalab”, coordenado pelo coletivo em conjunto com outras colaboradoras, buscou levantar, mapear e construir conexões entre mulheres programadoras negras no Brasil, apoiar a diversidade na tecnologia e repensar a produção tecnológica de forma geral. Por meio de uma ampla sondagem, o Pretalab pôde avaliar e compreender a exclusão sistemática de mulheres negras do mercado tecnológico, mas também criar uma rede com as mais de 600 mulheres alcançadas. O resultado disso foi um site, apresentando essas mulheres e suas habilidades, no qual se pode conhecer mais sobre cada uma delas. “Pretalab” chama a atenção para como o racismo algorítmico (ver Silva, 2020; 2022) toma forma através da exclusão sistemática de negros da possibilidade de criação de sistemas algorítmicos, o que por si só repercute nas tecnologias que usamos no dia a dia. No entanto, o projeto vai além de dar visibilidade às mulheres negras: ele criou redes por meio das quais elas podem se organizar e apoiar umas às outras. Por meio do ativismo e da organização comunitária, Olabi e o projeto Pretalab possibilitam a produção de comunidades de prática alternativas, assim como repensar a inclusão e a diversidade na perspectiva dos mais afetados pelos efeitos nefastos de sistemas tecnológicos. Representa, como tal, uma forma particular de antagonismo que se relaciona com tentativas discutidas anteriormente de criar redes alternativas de prática e construir solidariedade em rede. Essa não é uma forma de antagonismo algorítmico através da construção direta de novos sistemas algorítmicos, mas uma intervenção crucial nas “condições de emergência” (Amoore, 2020) de sistemas algorítmicos, tanto em suas camadas sociais, quanto culturais e políticas. Em suma, o projeto aponta para a importância do ativismo para a construção de culturas algorítmicas mais diversas e justas.

Outro projeto contemporâneo que mostra outras perspectivas de desenvolvimento tecnológico é o Silo, situado no interior do estado do Rio de Janeiro. Um laboratório de arte e tecnologia rural, o Silo desenvolve sua própria forma de antagonismo algorítmico, deslocando os fundamentos tecnológicos em um eixo diferente: das áreas urbanas e cosmopolitas para as paisagens naturais e agrícolas. A organização realiza diversas atividades, incluindo residências artísticas, oficinas, grupos de trabalho e, em breve, uma escola. O projeto está focado em noções como inovação cidadã e troca/colaboração, mesclando conhecimentos intuitivos e tradicionais com o que é hegemonicamente reconhecido como ciência e tecnologia.

A fundadora do Silo Cínthia Mendonça (2015), que também atua como pesquisadora, discute que uma inspiração para seu projeto é a noção de “Zonas Autônomas Temporárias” do teórico anarquista Hakim Bey, com interesse na dialética entre permanência e efemeridade. Essa dinâmica é tida como central para uma abordagem do espaço e da tecnologia comprometida com as preocupações ambientais. O Caipiratech Lab, um dos principais programas do Silo, aborda temas como agroecologia, bioarquitetura e geração de energia no meio rural, em estreita colaboração com a comunidade local.

O Silo é orgulhosamente liderado por uma equipe de mulheres, e também promove atividades voltadas à igualdade de gênero e raça, como o evento feminista EncontrADA. Em 2017, por exemplo, o EncontrADA organizou workshops, sessões de mentoria e outras atividades em torno do tema “Tecnologia e Conhecimento Ancestrais”, envolvendo-se assim com algoritmos e tecnologias digitais através da lente de formas de produção muitas vezes não reconhecidas: comunidades rurais (como já descrito anteriormente no caso dos “quilombos”). Silo oferece, assim, caminhos antagônicos para o desenvolvimento tecnológico não apenas mostrando a importância de um forte compromisso com a diversidade, mas mostrando como as necessidades e especificidades locais das comunidades rurais podem ser ofuscadas pela ambição universalista de uma compreensão cosmopolita da tecnologia e do progresso.

Ao enquadrar esses exemplos sob o tema abrangente do antagonismo algorítmico, talvez estejamos estendendo os limites conceituais tanto do algoritmo quanto do antagonismo. Os algoritmos são, evidentemente, parte integrante das tecnologias digitais contemporâneas, mas aqui, por meio dos casos que discutimos, buscamos enfatizar um movimento de descentralização pelo qual a especificidade das tecnologias digitais é colocada entre parênteses. Isso permite focar nos emaranhados culturais e sociopolíticos mais amplos em que algoritmos estão inseridos. Embora o caso de Waldemar Cordeiro possa de fato envolver a criação de algoritmos antagônicos per se, os outros casos que apresentamos — a história da gambiarra, a apropriação das redes de informação pelos artistas do correio e a expansão contemporânea da produção e uso da tecnologia pelos idosos, desenvolvedores negros, ou mesmo comunidades rurais — são todos baseados em uma postura tática e ativista mais ampla na produção e uso de algoritmos e tecnologias de rede. Ao sugerir ampliar o debate sobre a resistência algorítmica não estamos negando a relevância dos algoritmos propriamente ditos, mas, sim, destacando uma abordagem relacional que nos afasta de uma perspectiva essencialista que desconecta os algoritmos do contexto em que são produzidos e aplicados. O antagonismo, nesse sentido, não é apenas ir contra um sistema de poder, mas uma disposição geradora de pensar alternativas — por meio de redes e solidariedade, diversidade e localização.

Conclusão: sempre fomos antagonistas

Para Kissinger, nada de importante pode vir do Sul — já que a noção de “importante” para ele está intrinsecamente relacionada à ideia de “História” (com H maiúsculo de Hegemonia). Nesse sentido ele está certo: a “história” foi apropriada e extraída do Sul, invisibilisada na forma como a arte e o ativismo computacional foram apresentados e discutidos. Nossa proposta sugere que as formas contemporâneas de antagonismo algorítmico não são inteiramente novas — elas são, na verdade, derivações contemporâneas de uma longa história de abordagens da tecnologia por artistas e ativistas.

Por meio deste artigo, nosso objetivo foi apontar como a relação entre ativismo e arte com a prática tecnológica no Brasil se formaram em torno de diferentes noções de antagonismo. A noção de gambiarra ajuda a amarrar algumas dessas práticas ao nomear as múltiplas formas de conhecimento tecnológico insubordinadas à prática tecnológica hegemônica (Messias e Mussa, 2020). Assim, olhando para esse passado, podemos perceber o antagonismo não apenas como oposição direta, mas também como formas alternativas de pensar e fazer tecnologia visando superar as condições de opressão e precariedade que continuam existindo nos tempos atuais.

Ao unir perspectivas históricas e contemporâneas sobre computação e redes, buscamos oferecer um enquadramento alternativo, rompendo com o cânone dominante do Norte global. Reconhecer essa genealogia mais longa de dissidências e rupturas tecnológicas pode fortalecer as práticas atuais contra as opressões tecnológicas. Ou seja, uma vez que ampliamos o escopo da resistência algorítmica a todas essas diferentes formas de resistência através (e com) a tecnologia, nos tornamos sensíveis a como poderíamos construir os sistemas tecnológicos atuais de outras formas.

O objetivo aqui não é romantizar a marginalização ou seus consequentes apagamentos, mas entender que há muitas possibilidades escondidas (ou pelo menos apagadas por) essas condições. Reconhecer que sempre fomos antagonistas significa recuperar possibilidades mais amplas de fazer e pensar tecnologia, especialmente considerando os nivelamentos produzidos pelo desenvolvimento e implementação de tecnologias digitais (ver, por exemplo, o conceito de “colonialismo de dados” proposto por Couldry e Mejias [2019]). Se, como diz o ditado, “aqueles que formulam a pergunta determinam a resposta”, é hora de nossas perguntas nos levarem, assim como nossa história, a sério quando pensamos em futuros de resistência. Esta análise é, portanto, apenas um começo: há muitos aspectos pouco discutidos da história da arte, ativismo e tecnologia no Sul global que merecem ser explorados. Nossa sugestão é de que recuperar essas histórias antagônicas mais profundas, por meio de um conjunto mais amplo de localidades e contextos, ajudará a produzir uma imagem muito mais radical e inclusiva de uma noção alternativa de computação.