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O pensamento radical e a tarefa da crítica

Resenha de O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética (2022), de Fernando Haddad

O pensamento radical

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O terceiro excluído é uma obra singular, por seu conteúdo e por seu autor. Não, não digo isso pelo fato de Fernando Haddad ser um homem público de enorme capacidade e prestígio, atual ministro da Fazenda, que já foi ministro da educação e prefeito da maior cidade brasileira (ela própria um país, de 12 milhões de pessoas), além de candidato à presidência da República com direito a presença no segundo turno das eleições de 2018. Essa sua faceta só deixa tudo ainda mais singular. Digo isso principalmente porque se trata de alguém que, formado originalmente em direito, com mestrado em economia, doutorado em filosofia e tendo se tornado professor de ciência política, resolve escrever um livro sobre desenvolvimento e acaba fazendo um trabalho de scholar nas áreas da biologia, antropologia e linguística. Viagem? Sim, uma ousada (e saborosa) viagem intelectiva, com consequências fortes e que demandarão muita reflexão e igualmente muitas respostas a algumas provocações, sobretudo aquelas endereçadas à tradição intelectual à qual pertence o próprio autor.

Apesar da aparência de novidade, quem conhece a trajetória de Haddad não terá dificuldade em reconhecer pontos de contato importantes, em termos de conteúdo, entre este último livro e seus primeiros trabalhos, discussão que retomaremos à frente. Mas há duas outras similitudes que também se destacam. A primeira é, por assim dizer, de forma. Aqui como lá (falo de seu doutorado e do livro a que deu origem, Trabalho e linguagem1), Haddad tem uma questão e uma tese, e é procurando encontrar respostas à primeira e, assim, indícios que fortaleçam a segunda, que ele devora milhares de páginas de teoria, das mais diferentes áreas, obras no mais das vezes densas e com enorme grau de abstração. O perigo de se perder numa via dessas e não mais encontrar o caminho de volta é imenso, principalmente considerando-se o enorme volume de estudos que ele sempre mobiliza. Mas Haddad não corre esse risco. Qual Ulisses em meio à sedução do canto das sereias, ele se amarra à sua problemática e vai retirando, do imenso cabedal de reflexões que investiga, aquilo que lhe interessa.

Nesse processo vai promovendo conversas interessantíssimas entre várias vertentes teóricas, seja de uma mesma perspectiva, seja de paradigmas concorrentes. Em O terceiro excluído, por exemplo, temos o ganha e perde da cultura entre a teoria da coevolução, a sociobiologia, e a memética2 — todas essas, como ele indica, vertentes contemporâneas da perspectiva reducionista (que vai encontrar na biologia as explicações para os fenômenos sociais). Mas os diálogos também atravessam o tempo. Depois de passar pela moderníssima teoria da construção de nichos, mais uma corrente reducionista, Haddad introduz nessa conversa Herbert Spencer, biólogo e antropólogo inglês do século XIX.

Essa capacidade enciclopédica (no bom sentido) de nosso autor relaciona-se à segunda similitude que emerge da leitura deste novo livro, e ela é de vocação. Haddad é incapaz de pensar as coisas de modo recortado. Sua visão holista, forjada em décadas de estudo de paradigmas que têm a totalidade por pressuposto, combinada a uma predisposição natural de seu espírito investigativo, o leva inexoravelmente à busca das causas primordiais, à raiz dos problemas, às perguntas primeiras e isto não está dissociado, antes o contrário, da questão do conteúdo de O terceiro excluído, que agora retomamos.

No livro que se originou de sua tese de doutorado, comentando a passagem da magia ao mito discutida por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento, Haddad afirma que o problema a que se referem os frankfurtianos (e também Habermas) relaciona-se à questão de saber “por que não se pode cogitar a hipótese de que o progressivo domínio dos homens sobre a natureza, uma vez iniciado, pudesse ocorrer sem que eles precisassem dominar-se uns aos outros”.3E imediatamente na sequência, para que não haja dúvidas reafirma: “devemos explicar a razão pela qual esse caminho mostrou-se historicamente impossível”.4

Eu diria que a questão/tese de Haddad nesse último livro não está muito longe dessa sua preocupação de quase três décadas atrás,5 ainda que formulada em outros termos. A insistência na necessidade de responder a citada pergunta, que tem caráter radical, se dá porque uma resposta a ela parece condição sine qua non para que se possa pensar a emancipação humana. E na apresentação de O terceiro excluído ele diz: “trata-se de uma obra que dialoga com seu tempo e cujo tema subjacente, a princípio o desenvolvimento nacional (…) passou a ser a emancipação humana, uma proposta de resgate da dimensão utópica, da capacidade humana de projetar o futuro”.6 Não é por acaso, pois, que ao longo de seu caminho investigativo em O terceiro excluído ele relembra uma inquietação do antropólogo australiano Gordon Childe e que inspiraria os trabalhos de antropologia cultural e histórica de Marshall Sahlins: “por que o homem não partiu diretamente da miséria de uma sociedade ‘pré-classes’7 para as glórias de um paraíso sem classes ainda não realizado em parte alguma?”.8

Notemos, a partir dessas duas perguntas, que tanto no trabalho anterior, em que pretende defender o materialismo histórico dos ataques sofridos a partir do linguistic turn que emergiu em meados dos anos 1970, quanto neste, em que, visando o resgate da capacidade humana de pensar o futuro, prega uma dialetização da antropologia e uma antropologização do materialismo, Haddad, se nos é permitida uma expressão coloquial, “vai aos finalmente”, ou, dialeticamente, aos pressupostos dos fenômenos.

E já que tocamos no materialismo — a tradição intelectual à qual nosso autor sempre se filiou —, vale notar que, apesar de sua indicação de que esta sua recente interpretação “se mantém no campo do materialismo histórico”,9 este sai um tanto abalroado da jornada empreendida por Haddad. Vamos ver por que, mas, para tanto, será necessário, que façamos um breve sumário dessa nova interpretação. A operação é arriscada não só porque o livro, apesar da leitura fluida, é bastante denso, tem enorme complexidade e, como já mencionado, trabalha com um sem-número de paradigmas, escolas e correntes em várias áreas, como também porque é quase impossível empreendê-la sem imprimir-lhe um tanto de interpretação pessoal, o que pode desautorizá-la aos olhos de seu autor. Mas há que enfrentar o risco.

A tarefa da crítica: a biologia

A primeira tese que se destaca em O terceiro excluído é que as humanidades estão sendo duramente golpeadas pelas visões reducionistas que partem da biologia. Como Haddad relata na apresentação, quando ele começou a se atualizar sobre teoria do desenvolvimento, notou “a presença de biólogos, junto a antropólogos, psicólogos e economistas, trabalhando lateralmente o tema do desenvolvimento econômico sob a roupagem da seleção de grupo”.10 Tratava-se, porém, de um discurso sofisticado, longe do primarismo do darwinismo social em seus inícios. Segundo ele, foi a partir da chamada “síntese moderna” — que faz a conexão entre as unidades da evolução (genes) e o mecanismo da evolução (seleção natural) — que os biólogos voltaram a se sentir à vontade para falar da “evolução” da sociedade humana.

Desnecessário dizer que, se esse tipo de teoria ganha o protagonismo, a possibilidade de se encontrar respostas alvissareiras à questão da emancipação humana (ou da possibilidade de um mundo efetivamente socialista11) fica seriamente comprometida. A primeira tarefa que se impõe, portanto, é o resgate das humanidades. E para tanto será preciso fazer a crítica não só das correntes reducionistas no âmbito estrito da biologia (psicologia evolutiva incluída), mas, igualmente, do mainstream da antropologia e da linguística, todos eles impregnados, é o que se deduz das investidas de Haddad, de um certo biologismo (desde seu encontro com Noam Chomsky em 2018, ele se deu conta da presença de uma sorte de discurso evolucionário também nos novos approaches sobre o funcionamento da economia e da sociedade).

Ele divide portanto sua investigação em três partes, começando de imediato a investigar as correntes reducionistas no âmbito da biologia (capítulo 1), seguindo para a antropologia (capítulo 2) e a linguística (capítulo 3). Inicia o primeiro capítulo com a sociobiologia, popularizada por Edward Wilson em livro de 1975. Defende-se aí o princípio de que o comportamento e a ação humanos são consequência também da genética e não apenas das culturas em que são adquiridos, de modo que a cultura não teria um dinamismo próprio. Um mote desse autor resume a tese: “os genes mantêm a cultura na coleira”.12

Surge então a teoria da coevolução que, digamos assim, matiza um pouco o peso da hereditariedade nos fenômenos sociais/culturais. Nessa vertente, é a cultura que molda o comportamento humano, ou seja, ela deve ser entendida, sim, como sua causa, mas sem que se perca de vista sua conexão com a biologia. Existiria uma interdependência gene-cultura segundo a qual a evolução cultural, mais rápida que a genética, altera o ambiente, e é nesse ambiente afetado pela cultura que os genes são selecionados. Mais uma vez, uma metáfora ajuda a esclarecer: “sim, a cultura está na coleira dos genes, mas o cachorro é grande, esperto e independente. Na hora do passeio é difícil dizer quem guia quem”.13

Ainda nesse mesmo caminho, a teoria dos nichos busca completar a vertente da coevolução. Para seus seguidores, à ideia de que há uma evolução conjunta biológica e cultural é preciso agregar a ideia de uma construção permanente de “nichos” por meio de atividades, escolhas e processos metabólicos. Cada nova geração, portanto, não herda apenas os genes de seus antepassados, mas também um legado ecológico, transmitido por meio dos nichos. Na visão desses pensadores, sem a incorporação dos nichos, a teoria da coevolução não estaria completa.

Segundo Haddad, a teoria dos nichos é tributária de uma ideia de Richard Dawkins,14 o polêmico autor de O gene egoísta e Deus um delírio, e que vem a ser, por seu lado, o criador de mais uma vertente reducionista, mas que difere substantivamente das três vertentes até agora consideradas. Segundo Dawkins, são os princípios da biologia e não propriamente os genes que imperam em outras dimensões. No caso da cultura, esses princípios, através da comunicação, agiriam a partir de outros replicadores: os memes (unidade de transmissão cultural que concorre com outras unidades). A seleção biológica teria produzido o cérebro humano, que viria a fornecer o caldo de cultura de onde surgiram os memes. A evolução memética, segundo Dawkins, é mais veloz que a genética e não se submete a esta.

Para nosso autor, a memética de Dawkins tem uma vantagem em relação às vertentes anteriores: ela reconhece que a evolução cultural é irredutível à evolução biológica, mas ela acaba num beco sem saída, deixando de responder muitas das questões levantadas pela analogia entre esses dois processos evolutivos. Mas sua crítica vai muito além disso e abrange todas as versões reducionistas. Inspirado no bioquímico francês Jacques Monod, que identificara processos biológicos em que o organismo, ainda que observando as leis da física e da química, encontra uma forma de transcendê-las em proveito de sua conservação, Haddad vai afirmar que também a passagem da biologia à cultura é um movimento transcendente. Para ele, essa passagem, graças ao caráter disruptivo do surgimento da linguagem, deve ser caracterizada como uma verdadeira mudança de dimensão (assim como o surgimento da vida, processo igualmente disruptivo, está na raiz da passagem da dimensão físico-química para a dimensão biológica).

Daí que as leis da cultura não podem ser reduzidas às leis biológicas (ou aos princípios que governam as leis biológicas). O que está por trás dessa irredutibilidade é a contradição. É ela que deve ser invocada pelas humanidades para afirmar sua especificidade; é ela o elemento próprio da cultura em relação à vida. Por isso, não se trata apenas de negar qualquer tipo de vinculação da cultura ao andamento biológico. Trata-se de negar que haja uma “evolução cultural”. Para Haddad, as culturas não evoluem, elas revoluem. O bem achado neologismo é utilizado precisamente para indicar que as mudanças culturais se dão no processo contraditório, dialético, da relação das culturas entre si. Por detrás disso, há outro processo, que também ganhou um neologismo: alienização. Mas antes de nos determos nele será mais profícuo seguir com a crítica de Haddad, que trará elementos adicionais para sua compreensão.

Depois de discutidas as vertentes biológicas associadas ao binômio cérebro-mente, a investigação de nosso autor vai enfrentar a discussão ensejada pela psicologia evolutiva, envolvendo o binômio psique-cultura. Para seus adeptos, é preciso acabar com o velho dualismo da tradição ocidental, que desmembra o ser humano em aspectos biológicos e não biológicos. Na interpretação clássica que eles querem superar, a cultura pouco tem que ver com a biologia ou a natureza humana ou com qualquer desenho psicológico geneticamente herdado, e sim com a educação e o processo de aprendizagem. Para eles, a ideia de uma maleabilidade quase infinita da mente humana, que vai respondendo ao ambiente e enfraquecendo a importância das forças biológicas, é um erro, pois o ambiente também é produto da evolução. Assim, em sua visão o cérebro humano não é mais flexível porque se libertou dos instintos; antes ele é mais flexível porque justamente, no processo de evolução, incorporou mais instintos.

Para Haddad, se queremos elucidar a questão de se a cultura humana é mera expressão fenotípica da psicologia humana ou se a evolução biológica lançou o homem para uma dimensão que transcende a própria biologia, é preciso investigar três “instintos” específicos: o instinto tribal, o instinto religioso e o instinto da linguagem. Como é evidente que os dois primeiros dependem do último, o debate sobre o estatuto da linguagem, que ele fará no capítulo 3, aparece-lhe como incontornável. Sobre os dois primeiros, o autor diz que é preciso compreender se eles são inatos ou frutos do desenvolvimento histórico, e isso requer a investigação do estado das artes na antropologia. Seu objetivo no capítulo 2 será demonstrar a necessidade da defesa de uma antropologia dialética, para ele uma necessidade para afastar leituras biologizantes.

A tarefa da crítica: a antropologia

Logo de início, Haddad recupera o pai da antropologia americana, Franz Boas. Segundo nosso autor, para Boas, ainda que em outras espécies animais se vejam também hábitos sociais e práticas materiais — com a utilização de artefatos, por exemplo —, o termo “cultura” deve ser reservado àquela espécie cujo comportamento não estereotipado não pode ser caracterizado como instinto, mas que é, ao contrário, dependente de uma tradição transmitida que pressupõe o uso da linguagem. Haddad acredita que uma interpretação possível de Boas é que os seres humanos podem ser vistos como uma grande superespécie cultural, composta de semiespécies separadas por barreiras culturais, regra geral transponíveis, mas nem sempre. Isso implica a possibilidade de uma especiação cultural completa, que parece ter sido considerada por Boas, mas da qual, segundo nosso autor, ele não tira todas as consequências.

Haddad vai chamar essa especiação cultural completa de alienização, neologismo criado para diferenciar de “alienação” o novo conceito. Para ele, a alienização completa faz surgir uma figura nova, o terceiro excluído, gerando uma relação contraditória entre ego, alter e alien. É só no capítulo 3 que vamos descobrir que a inspiração de Haddad para tal formulação vem de Wilhelm von Humboldt, pensador da linguística que trabalhou na passagem do século XVIII para o XIX e que muito influenciou Chomsky. Humboldt dedica especial atenção aos pronomes pessoais, por ele considerados elementos universais da comunicação humana. Quando alguém pensa, não está só. “Tu” é uma necessidade para a própria posição do “eu” pensante. Já eu e ele são realmente entidades diferentes e só com este último todas as possibilidades da fala se esgotam.

Do ponto de vista da compreensão sobre a natureza da cultura, isso significa que aos olhos da primeira e da segunda pessoas, o terceiro é e não é um ser humano. Haddad traz aqui, para elucidar melhor a questão, o termo DasUnheimliche, oriundo da psicologia freudiana. Carregado de ambiguidades, ele significa o infamiliar, o estrangeiro, o estranho, em poucas palavras, o ser humano que não é. A alienização, ou especiação completa, portanto, não produz diferença, mas contradição, o que torna impossível tratar os fenômenos interculturais de uma perspectiva biológica ou ecológica.

Haddad retoma Lévi-Strauss para assinalar que ele parece sentir falta de um terceiro elemento. Para o conhecido antropólogo francês, as relações diádicas são o resíduo de uma estrutura preexistente, de modo que é essa estrutura que funciona como esse terceiro elemento. Haddad lembra também de Gregory Bateson, antropólogo e linguista inglês que se situa além das relações diádicas, mas que acredita que apenas três resultados são possíveis quando dois grupos de indivíduos de culturas completamente diferentes entram em contato: a completa fusão, a eliminação de um ou de ambos os grupos, e a persistência de ambos em equilíbrio dinâmico. A lista, observa Haddad, não contempla a subjugação de um grupo por outro e a subjugação é o resultado necessário da incorporação do terceiro excluído por uma dada sociedade. Para ele, a história das sociedades tem sido justamente a história da luta em torno da alienização (seu motor externo) e da despessoalização (seu motor interno).15

Também a antropologia cultural de Marshall Sahlins é trazida a escrutínio por Haddad, o que lhe permitirá adentrar a discussão sobre economia. Inspirado por Karl Polanyi e sua taxonomia de tipos puros de reciprocidade, o antropólogo americano vai propor um continuum de relações de reciprocidade: um extremo solidário (envolvendo parentes), um ponto intermédio, marcado por equilíbrio (envolvendo amigos) e um ponto extremo, insociável, em que os participantes confrontam-se com interesses opostos. Mas, retruca Haddad, a não reciprocidade não é um polo extremo da reciprocidade, é sua negação. Há aqui uma diferença de qualidade, não de grau, há contradição (o próprio Sahlins algumas vezes se refere aos participantes desse último caso como “não pessoas”, como observa Haddad).

E com isso temos os elementos necessários para desenvolver um pouco mais a tese de Haddad. Para ele, um dos méritos da antropologia foi ter desvelado o caráter datado historicamente da relação sujeito/objeto. No paleolítico, cultura e natureza não estavam em oposição. Segundo antropólogos como David Graeber, a vida nessa era (que abarca 90% da história humana) não era uma luta pela sobrevivência. Se o critério para medir a afluência de uma sociedade for não a quantidade, mas a proporção de desejos satisfeitos, uma horda de caçadores pode ser mais afluente que a moderna sociedade industrial (o que implica questionar a ideia de “miséria paleolítica”, que está implícita na provocação de Childe anteriormente citada). Os pares espírito e corpo, altruísmo e egoísmo, subjetivo e objetivo, cultura e natureza ainda não se constituíram. A revolução neolítica representaria, assim, a passagem do homem de um plano ecológico para um plano econômico por meio de um processo gradual de desnaturalização. O homem toma distância da natureza, objetifica-a. Os mitos seriam, nesse sentido, a um só tempo, a expressão da unidade entre homem e natureza e a narrativa de sua dissolução.

Mas Haddad vai mais longe. Para ele, o corolário das observações anteriores é que a economia é uma relação entre pessoas e “não pessoas”, pois o primeiro objeto do ser humano não foi a natureza, mas outro ser humano, dessubjetivado, desumanizado. Assim, por trás do gregarismo, do surgimento da agricultura e da domesticação da natureza — eventos sempre citados ao se mencionar a revolução neolítica —, o que há é o surgimento da “economia” no sentido aqui indicado. A economia, portanto, seria, desde seu início, tribal e nacional. Mais ainda, carência religiosa (que os mitos já denunciam) e carência material seriam as duas faces de uma mesma moeda cunhada pelo terceiro excluído.

Não é difícil perceber que já há aqui uma razoável quantidade de provocações ao materialismo. Se a história não é a história da luta de classes, mas sim a história em torno da alienização e da despessoalização; e, sobretudo, se a economia não é algo que tenha surgido naturalmente da inadequação da natureza às necessidades humanas, obrigando o homem ao trabalho, mas sim o resultado da posição da relação entre sujeito e objeto em que o objeto é outro ser humano, então há muito que ser repensado quanto aos fundamentos desse paradigma.

Numa crítica a Marx, o mesmo Marshall Sahlins vai dizer que o aspecto dessa teoria que se tornou dominante é que a mediação entre homem e natureza não é feita pela cultura. Esta aparece como uma consequência de como se estrutura a atividade produtiva, de modo que o materialismo torna-se o reverso do cultural: a cultura fica subsumida ao paradigma da produção, o qual fica embasado exclusivamente no trabalho. Para Haddad não está aí o problema, uma vez que para Marx o trabalho não é puramente instrumental; ele possui uma dimensão intersubjetiva porque exige a cooperação. O problema maior é que a linguagem, vista pelo próprio Marx como pressuposto da consciência e do trabalho, aparece como instrumental e parece cumprir um papel funcionalista, pois o status de motor e gerador ativo e criativo do desenvolvimento histórico é reservado ao trabalho.

Em outras palavras, para nosso autor, “o materialismo histórico não parte da evidência de que aquilo que distingue os homens de outros animais, sua qualidade única, é justamente o fato de os homens experimentarem o mundo simbolicamente de forma imediata”.16 Daí a necessidade não só de dialetizar a antropologia como de antropologizar o materialismo. Mas a abordagem marxista ainda ocupa um papel fundamental na interpretação construída em O terceiro excluído.

Como vimos, para Haddad, é a revolução neolítica que estabelece a relação sujeito/objeto, e o processo de alienização das culturas é o processo de objetificação da natureza. As carências econômicas e religiosas nascem desse estranhamento. Assim, a escravidão ocorre pela subjugação de uma comunidade por outra, que reduz os dominados a parte das condições inorgânicas da reprodução de seus senhores, de modo que a alienização internalizada se converte em despessoalização. Para nosso autor, o surgimento do trabalho livre, ou seja, a transformação do trabalho em mercadoria, muda a forma como se dá a despessoalização, mas o advento da revolução industrial vai alterar igualmente a forma como se dá a própria relação dos senhores entre si. Enquanto o trabalho vai sendo reduzido continuamente a uma pura abstração, a concorrência, acirrada pela revolução industrial, transforma os senhores em suporte do processo de acumulação, o qual se torna um sujeito automático, invertendo a relação sujeito/objeto. No dizer de Haddad, se a revolução neolítica inaugura a economia, a revolução industrial põe a economia de pernas para o ar.

A partir dessa inversão, Haddad vê consequências que certamente deverão ser questionadas por algumas correntes marxistas. Para ele, nesse contexto, parece não mais se aplicar a ideia de uma contradição entre as relações de produção e as forças produtivas que, em determinado estágio, levaria à transformação do modo de produção. Como é a assim chamada segunda natureza que está agora no comando, frente a seres humanos reificados e a uma primeira natureza nulificada, uma transformação dessa ordem não mais parece provável. Daí adviria inclusive a dificuldade de se pensar em um capitalismo verde ou ecológico.

Mas isso não quer dizer que a presença do capital tenha tomado o espaço do terceiro excluído, já que tudo estaria subsumido à lógica diádica da acumulação. Se fosse assim, os indivíduos que estabelecem suas relações de troca no âmbito da sociedade civil (relações diádicas) constituiriam a totalidade da moderna sociedade, e isto bastaria, portanto, para sua plena efetivação como indivíduos. Desde Hegel, no entanto, se sabe que isto não procede. Para o conhecido filósofo alemão, sem a presença do Estado, o indivíduo não pode ser indivíduo. O fim racional do homem é a vida no Estado. Por razões estratégicas Haddad não vai a Hegel. Prefere trazer como evidência de sua percepção de que o capital não dá conta de tudo outro pensador alemão, Max Weber, fazendo questão de observar que, mesmo sendo este um autor pouco afeito à dialética (ao contrário de Hegel), percebeu que é o Estado nacional que garante ao capitalismo as possibilidades de sua sobrevivência.

No mesmo sentido se situaria, para nosso autor, o tratamento dado ao nacionalismo por Benedict Anderson em Comunidades imaginadas. Ao considerá-lo como produto cultural, Anderson estaria harmonizando a transição antropológica relativa à inversão sujeito/objeto com a perspectiva de uma relação triádica contraditória que sustentaria essa relação. O trabalho de Anderson teria mostrado que sem o advento do nacionalismo e da comunidade imaginada que ele pressupõe, o capitalismo não se efetivaria, pois a relação triádica estaria incompleta. Isso implica endossar a tese weberiana de que o capitalismo não sobreviveria sem uma pluralidade de estados-nação concorrentes. A diferença, segundo Haddad, é que, em sua própria interpretação, o estado-nação não é considerado, como em Weber, na acepção instrumental, mas a partir de um substrato espiritual, equivalente àquilo que os psicólogos evolucionistas chamariam de “instinto tribal”.

A tarefa da crítica: a linguística

E é com observações sobre o advento do nacionalismo que Haddad inicia sua investigação e sua tarefa crítica no campo da linguística. Ele traz ao debate o antropólogo e linguista Edward Sapir que, no início do século XX, já havia assinalado uma importante alteração na relação entre linguagem, raça e cultura por conta do surgimento do nacionalismo. A antropologia mostra que não há nenhuma relação necessária entre esses elementos, mas o nacionalismo muda isso. Esses três elementos passaram a ser vistos como facetas de uma unidade social singular.

Ainda antes de Sapir, o filósofo alemão Johann von Herder, trabalhando no final do século XVIII, vai considerar a nação como a associação dos usuários de uma linguagem, que compartilham tradições e uma determinada forma de estar no mundo. Trazendo-o para o debate, Haddad abre caminho para a discussão das questões fundamentais envolvendo a linguagem. Segundo Herder, o homem é um ser em atividade que pensa livremente e por isso é uma criatura da linguagem. Assim, embora a razão seja um potencial humano universal, ela se realiza pela aquisição da linguagem, o que abre a possibilidade de separar a razão universal de um lado e suas manifestações culturais nacionais, de outro. Para ele, o primeiro momento da consciência foi também o momento do nascimento interior da linguagem, um dom especificamente humano (que não pode ser confundido com a linguagem mecânica dos animais).

Segundo Haddad, muito influenciado por Herder foi Arnold Gehlen, pensador do século XX que vai estabelecer um contraponto decisivo com a psicologia evolutiva, para quem a linguagem é um instinto. Para esse antropólogo, o especificamente humano reside numa totalidade de várias características que se pressupõem mutuamente (a razão, o polegar opositor, a vida social, a posição ereta, a linguagem). Isso implica prescindir da ideia de que apenas “passos” separam a inteligência ou a linguagem animal da humana. Segundo informa Haddad, o ser humano é, para Gehlen, um animal práxico. Como não é especializado, isto é, como foi perdendo os instintos e tornou-se um ser, digamos assim, genericamente sabido, ele precisa de um meio ambiente que vem a ser “a natureza transformada por ele próprio em algo útil para a vida”, e isso se chama cultura.

Para além da necessária demarcação de campo com a psicologia evolutiva que as observações de Gehlen permitem, elas também introduzem uma outra questão crucial. Se considerarmos que existe uma enorme diversidade nas formas que assumem as manifestações culturais, como já adiantara Herder, isso pode levar a um relativismo cultural e linguístico, tal como o do linguista americano Benjamin Whorf. Nessa perspectiva, as mesmas evidências físicas podem levar a diferentes retratos do universo, se os observadores tiverem diferentes origens linguísticas, que, por definição, não podem ser calibradas entre si.

Na literatura sobre o tema, encontra-se com alguma frequência a expressão “hipótese de Sapir-Whorf” sobre essa questão, o que colocaria o linguista polonês-americano do lado do relativismo cultural. Todavia, como lembra Haddad e como já vimos aqui, é do mesmo Sapir a afirmação de que não há relação necessária entre cultura e linguagem, ou seja, povos que falam línguas diferentes podem compartilhar a mesma cultura e vice-versa. Para Sapir, qualquer língua tem aquilo que ele chama de completude formal, ou seja, o falante de qualquer língua, não importa o que ele queira comunicar, pode servir-se dela sem precisar criar novas formas ou forçar novas orientações das formas constantes de sua estrutura. Segundo o linguista polonês-americano, não há, por isso, nada que impeça a Crítica da razão pura de Kant de ser traduzida para a língua esquimó ou hotentote.

Segundo Haddad, diferentemente de Whorf, o relativismo de Sapir foi matizado pela influência que tinha de Franz Boas, que havia sido seu mestre. Para este último, não são os traços morfológicos da língua que moldam a cultura. Ao contrário, é o estado da cultura que vai moldando a língua. Para nosso autor, uma tomada de posição nesse sentido não implica a negação de que a língua formate cenários e promova experiências de difícil tradução, mas parece um exagero supor que a diversidade de línguas possa ser um obstáculo à compreensão mútua sobre qualquer aspecto do mundo. Para quem tem no foco a emancipação humana, essa é uma conclusão absolutamente fundamental. Como o próprio Haddad observa, a linha traçada por Whorf — a estrutura da linguagem determina a cultura — nos leva a um beco sem saída, pois uma compreensão e um diálogo humanos universais seriam, por definição, impossíveis.

Uma alternativa mais adequada a esse relativismo cultural exacerbado, segundo Haddad, seria seguir o segundo Wittgenstein e os autores por ele influenciados. A ideia do “jogo de linguagem” como sendo o conjunto da língua e das práticas com as quais ela se interliga vai assumir assim um lugar central (e não está distante da ideia de Boas segundo a qual é o estado da cultura que vai moldando a língua). Para Wittgenstein, a gramática profunda relevante não é a das línguas (como quer Whorf), mas a das formas de vida (culturas). Assim, para Haddad, ele abre espaço para um conceito culturalista da linguagem (que se aproxima de sua própria perspectiva), enquanto Whorf propõe algo como um conceito linguístico da cultura. Ademais, Wittgenstein sugere que as racionalidades das sociedades paleolíticas, neolíticas e modernas são diferentes e incomparáveis em seus próprios termos. Para Haddad, isso significa que, enquanto nas sociedades paleolíticas a razão entre sujeito e objeto não está sequer estruturada, nas sociedades neolíticas e modernas numerador e denominador estão em posições invertidas.

Para a antropologia interpretativa de Clifford Geertz, um dos seguidores do segundo Wittgenstein, as capacidades humanas genéricas são inatas; a cultura é quem as guia. Segundo Haddad, nessa visão, a cultura é considerada como um conjunto de mecanismos de controle utilizados para governar o comportamento humano, sendo, nessa medida, condição essencial da natureza humana e a base de sua singularidade (não existe natureza humana sem cultura). Como o homem é um ser inacabado, aprender é menos uma faculdade do que uma necessidade.

Como é fácil perceber, essas perspectivas todas em conjunto (Herder, Sapir, Gehlen, o segundo Wittgenstein, Geertz) colidem frontalmente com a perspectiva evolucionária e jogam muita água no moinho de Haddad. Ainda assim, porém, ele considera que a alienização, como processo estruturador de relações triádicas contraditórias, aparece com timidez também no universo da linguística (como já aparecera do mesmo modo acanhado no universo da antropologia). Entre os biólogos, observa ele, a situação é compreensível, porque não há contradição na natureza, já que não há aí dimensão simbólica nem temporalidade histórica. No campo da antropologia e da linguística, no entanto, a história poderia ter sido outra, mas, para tanto, o problema da contradição não poderia ter sido contornado.

Como nos informa Haddad, ele deixou para o final a análise do “instinto da linguagem” porque este é, segundo sua visão, o que pode ensejar os maiores equívocos. Para ele, o erro da psicologia evolutiva foi ter recorrido a uma proposição do filósofo e psicólogo americano William James, que, da premissa razoável “todo instinto é um impulso”, chega à conclusão errônea “todo impulso é um instinto”. Para James, apesar de os impulsos serem cegos, a memória do ser humano e sua capacidade de reflexão e inferência vão reforçando determinados instintos à medida que seus resultados vão sendo experimentados. Assim, não existiria antagonismo entre razão e instinto. Seríamos simultaneamente mais instintivos e mais racionais que os demais animais.

O equívoco de James tem consequências até hoje. Para Haddad, ele aparece claramente, por exemplo, no trabalho contemporâneo do psicólogo e linguista americano Steven Pinker, que considera a linguagem uma adaptação evolutiva, instintiva e produto da seleção natural. Na defesa de suas posições, Pinker recorre também à gramatica gerativa de Noam Chomsky. Para o famoso linguista e humanista americano, a capacidade da linguagem de fato é inata. Numa proposição sua bastante conhecida, a linguagem não é um repertório finito de respostas; antes ela funciona como uma gramática mental, que produz um ilimitado conjunto de sentenças a partir de uma lista finita de palavras — o que abre as portas para um uso criativo da linguagem, que também a define. Mas uma coisa é defender o caráter inato da linguagem; outra bem diferente é defender seu caráter instintivo.

Segundo Haddad, depois de flertar com a perspectiva darwinista determinística da teoria da evolução, Chomsky abandona de vez esse paradigma. Passa então a admitir um processo estocástico de contingência e acaso, de modo que as engrenagens do motor evolutivo estariam sujeitas a “golpes de sorte biológicos”.17 Para ele, o registro paleoarqueológico para a linhagem homo corrobora a visão não gradualista do surgimento da linguagem humana. Para Chomsky, este “curioso objeto biológico”,18 este “artefato”,19 apareceu na terra muito recentemente e, da perspectiva biolinguística, deve ser pensado como “um órgão do corpo”,20 comum a todos os indivíduos da espécie humana.

Segundo Haddad, na perspectiva de Chomsky, foi o elemento universal da linguagem, ou seja, o procedimento gerativo que fornece seus princípios, que emergiu de repente do ponto de vista evolucionário (num golpe de sorte biológico). A diversidade adviria do fato de os princípios não determinarem todas as respostas para todas as perguntas sobre a linguagem, mas deixarem algumas perguntas como parâmetros. Assim, para Chomsky foi a capacidade da linguagem que evoluiu e permanece a mesma desde que nossos antepassados deixaram a África. Já as línguas não evoluem, elas mudam, pois não têm existência fora de sua representação mental. Suas propriedades são dadas pelos processos mentais dos seres humanos e estão associadas a seu uso.

Segundo Haddad, Chomsky ecoa aqui Wilhelm von Humboldt, que teria enfatizado muito fortemente o caráter criativo da língua caracterizando-a como energeia (atividade). Inspirado nele, o linguista americano vai afirmar que há uma distinção entre a forma da língua, fixa e invariável, e o caráter da língua, que pode ser modificado e enriquecido pelos indivíduos como meio de expressão de suas culturas específicas. Nesse sentido, segundo Haddad, os trabalhos recentes de Michael Tomasello e Svante Pääbo parecem estar respaldando a hipótese de que a aquisição de uma determinada língua afeta o modo como os seres humanos conceituam o mundo. A ideia desses dois pesquisadores é que nós desenvolvemos e herdamos uma capacidade biológica de viver culturalmente, o que significa que os seres humanos adquiriram a capacidade de compreender uns aos outros como seres intencionais.

Apesar de sua identificação com muitas das abordagens e correntes aqui sumariadas, segundo Haddad elas ainda seriam prisioneiras de duas noções diferentes de temporalidade: a newtoniana, física, mecânica e eterna, ou seja, da física (mundo inorgânico), e a bergsoniana, vital, criativa e cumulativa, ou seja, da biologia (mundo orgânico). Para ele, é preciso introduzir uma terceira, a temporalidade da cultura, tal como formulada pelo biólogo francês François Jacob. Nessa temporalidade, existe a capacidade do ser humano de projetar o futuro, de criar mundos possíveis (o que lembra a ideia de Gehlen de que a cultura é continuamente transformada segundo um projeto, o que não se verifica na zoologia). Para Haddad, considerada a temporalidade de Jacob, a linguagem não seria nem um instinto, nem um artefato, mas o resultado de uma mudança biológica que conferiu a um determinado ser vivo a capacidade de se projetar no tempo.

O aparecimento da linguagem simbólica, portanto, seria mais do que uma mera transição “por dentro” da dimensão biológica. Seu advento teria lançado o homem em uma outra dimensão de temporalidade, evidência adicional de que uma ciência que estuda o ser humano não pode ser reduzida à biologia. Aqui, mais uma vez, uma tese fundamental para nosso autor. Sem a capacidade de se projetar no tempo e inventar um futuro, não estaríamos falando de natureza humana, tampouco de emancipação. Não haveria, resgate da dimensão utópica a ser efetuado, como reza a proposta do livro, que ele expõe em sua apresentação.

Tarefa da crítica e pensamento radical

Dimensão simbólica e temporalidade histórica implicam contradição e, segundo Haddad, ao expulsarem a contradição de seu repertório, as humanidades estão deixando-se biologizar. A tarefa da crítica da qual nosso autor se encarrega em O terceiro excluído é justamente a de contribuir para o resgate das humanidades e de seu potencial para enfrentar os problemas experimentados hoje pela espécie humana. Para ele, como vimos, esse resgate passa pela dialetização da antropologia e pela antropologização do materialismo histórico.

Situando a contradição naquilo que para ele se mostra como o lugar certo, ou seja, na relação entre as diferentes culturas, a economia e a religião passam a ser vistas como duas de suas expressões, mediadas pela linguagem. Parece claro que uma concepção como essa coloca em xeque o conceito de modo de produção, que constitui o conceito central do materialismo histórico, o que questionaria igualmente a afirmação de Haddad de que sua interpretação se mantém nesse campo.

Nesse sentido, arrisco aqui um termo de conciliação. Se é verdade que a linguagem tem caráter disruptivo e produz uma outra natureza, não é menos verdade que a generalização da forma mercadoria, capturando a própria substância do valor (a força de trabalho) e pondo o capital, tem igualmente caráter disruptivo, pois produz uma outra economia, ou nos termos do próprio Haddad, uma economia “de pernas para o ar”.21

Essa nova dimensão da vida cultural, que a posição do capital gera, constitui efetivamente um “modo de produção”, pois só aí a produção (e não o ser humano) é a finalidade da instância material da vida social. Quando olhamos para trás na história, vemos “modos de produção” em operação, mas eles de fato não estão lá. Ainda que possamos mapeá-los com os conceitos que nossa posição na história nos permitiu criar, em sua realidade eles não operam como modos de produção efetivos. Trata-se, antes, de modos de produção da vida social, mas não de vida social comandada pela produção. Em outras palavras, o conceito em sua Wirklichkeit (em sua realidade efetiva) só existe pelo capitalismo e é inaugurado por ele. Nas etapas anteriores, é uma pressuposição (está e não está posto), pois ainda que haja economia, seu motor não é a produção pela produção.

Assim, ainda que admitamos que não foi a luta pela sobrevivência que provocourelações contraditórias, mas sim o processo de alienização, o qual produziu a economia (e a religião), isso não nos impede de admitir que, a partir do capitalismo, com a segunda natureza no comando, como observa o próprio Haddad, é a luta por “ganhar a vida” que assume de fato o proscênio. Quais as consequências disso para o processo de alienização em si mesmo é algo que um programa de pesquisa na linha estabelecida por Haddad poderá investigar.

Mas, seja como for, com ou sem a conciliação aqui proposta, não se pode deixar de notar que as consequências fortes da interpretação de Haddad por meio da tarefa crítica que se impôs são tributárias de seu pensamento radical. A tarefa da crítica não é confortável e ele não fez concessões.