7

O boneco de neve1

Ana Calzavara

A insônia, ao contrário da depressão, vem sempre de surpresa. E não é tão frequente. É aí que está a sua força e o seu fascínio.

Era uma noite comum no inverno japonês: a escuridão úmida por trás das janelas deslizantes, o grasnar sonolento dos corvos sobre os galhos de acácia, o riso de duas mocinhas atrasadas indo para casa numa bicicleta enferrujada e rangente, o barulho do último elektritchka, um confortável bairro de Tóquio chamado Kichijoji, com pequenas casinhas. Eu morava em uma delas: um escritor russo que, nas segundas e quartas-feiras, falava aos calados estudantes japoneses a respeito de uma coisa bela, mas tremendamente insana, chamada Literatura Russa.

Acendi a luz e olhei o relógio: eram três horas e dois minutos.

— Boa noite — eu disse roucamente a mim mesmo.

Levantei, vesti um yukata preto, desci do quarto pela escada em espiral e acendi a luz da sala de estar. Peguei uma garrafa de plástico com chá verde em cima de uma mesa baixa, servi-me e bebi. Esfreguei as têmporas com a ponta dos dedos. Não há necessidade de debater com a insônia (e nem com a depressão). Diferente de um anjo estranho, que ocasionalmente desce do céu, ela se transformará em um monstruoso vizinho-débil que irá arrombar a sua porta todas as noites com um buquê de pesadelos em mãos. Por isso, não se pode combater a insônia com o trabalho. Isso pode ofendê-la. Beber com ela é uma coisa sagrada.

Entrei em minha minúscula cozinha japonesa e abri a geladeira. Puxei meia garrafa de “Moskóvakaia”, um sashimi de atum e um pote de repolho alemão azedo (o russo, infelizmente, não é vendido em Tóquio). Levei tudo para a sala, sentei-me, servi a vodca, peguei as varas de madeira e liguei a televisão. À noite, a tevê no Japão é muito mais calma que durante o dia. Naquela noite, mostravam o mundo subaquático. A apresentadora falava com um entusiasmo quase sexual a respeito do processo de reprodução dos camarões. Despejei vodca em um copo facetado chinês, adquirido por mim na Chinatown de Yokohama, e bebi em homenagem ao camarão recém-nascido. Comecei a beliscar o sashimi e o repolho, imaginando que os camarões têm, em geral, os mesmos direitos dos habitantes da Terra, como nós, mas, por alguma razão, o politicamente correto não se estende a eles. Ou melhor, se estende, mas com padrão duplo de julgamento.

Nesse momento, do lado de fora da janela, surgiu o clarão de um relâmpago e o som de uma trovoada.

Tempestade em janeiro?

Abri a cortina e arrastei a folha da janela. Neve!, exclamei. Flocos densos, grandes e úmidos. Neve em Tóquio –um presente raro. Especialmente para mim, um russo.

Parei na entrada da porta, admirando como o branco absorve rapidamente os arbustos aparados, a grama, cobrindo os galhos das árvores. Para mim, a neve é sempre uma alegria. Ela esconde a desgraça terrena. E lembra a eternidade. Escreve-se maravilhosamente quando há neve caindo lá fora.

Mas a neve de Tóquio não durou muito tempo. O dia se foi — e já não havia mais nada. Eu queria guardar esse pedaço da distante Rússia — país da Neve, da Vodca e do Sangue.

— Esculpir um boneco de neve! — decidi em voz alta. E então tudo começou: saí para o quintal e comecei a enrolar bolas de neve. A neve estava macia, úmida e leve, como se fosse algodão. Mas era NEVE!

Ana Calzavara

Um escritor russo trajando uma yukata e montando um boneco de neve à noite em Tóquio — o que poderia ser mais estranho? Só um poeta japonês metido num casaco de pele de lobo enquanto treina com uma espada sobre o Volga congelado. Bem, eu esculpi, como nos tempos de infância, e beirei a epifania.

A neve cessou, dando lugar a uma grande e branca lua japonesa. Uma paisagem iluminada pelos pontinhos de neve. Era indescritivelmente lindo.

O boneco de neve foi concluído rapidamente. Cravei nele um nariz de cenoura, depositei em sua cabeça o meu panamá japonês de veraneio, dei-lhe o nome Vássia e voltei para dentro de casa.

— É preciso beber com Vássia. E então o sono russo virá imediatamente — decidi.

Encontrei um segundo copo. Peguei uma garrafa. Virei-me em direção à porta.

E então, de repente, algo começou. O chão tremeu: uma primeira vez, duas, três. Os vidros chacoalhavam nas janelas, a louça tilintava no armário.

Terremoto. E bastante perceptível. Mais forte que os tremores regulares que ocorrem em Tóquio duas vezes por mês.

Na verdade, eu já me acostumei aos tremidos. Aos mais fraquinhos. Mas é difícil se acostumar aos terremotos sensíveis: o temor, infelizmente, é o sentimento que prevalece.

Minhas pernas me carregaram por si mesmas até o quintal. Lá balançavam árvores, postes e estalavam as casinhas adormecidas. Quando voltei a mim, eu estava sentado na neve, perto de Vássia. Eu o abracei enquanto olhava para a minha casa trêmula.

Mais alguns segundos — e o terremoto noturno cessou.

Voltei para casa.

Praguejando em russo, com as mãos levemente trêmulas, enchi um copo com vodca. Saí para o quintal em direção a Vássia. Tendo brindado com o seu nariz vegetariano, esvaziei o copo. Sentei-me de cócoras.

Era tudo tão belo e silencioso ao redor que lágrimas vieram-me aos olhos. Uma lua cheia em meio às estrelas dispersas pairava solene sobre uma Tóquio adormecida.

Vássia ficou por perto, escutando com a sabedoria de Buda tudo o que estava acontecendo. A vodca fez efeito rapidamente, e eu quis dizer muitas coisas a Vássia: a respeito das incertezas do mundo sobre o qual andamos, sobre a solidão, sobre a esquizofrenia dos escritores, sobre a Rússia, que daqui do Japão tornou-se de súbito claramente visível, sobre a lua, sobre o fato de que nós, as pessoas, não somos essencialmente tão diferentes assim dos camarões.

Ana Calzavara

E Vássia pôde me entender sem qualquer palavra.

Foi então que pedi a ele que me contasse algo importante, algum segredo. Aproximei o meu ouvido da boca gelada de Vássia. E ouvi:

A LITERATURA RUSSA ESTÁ MORTA!

Fiquei catatônico. Para mim, um escritor russo, isso soou como uma condenação à pena de morte. Sendo assim, deitei a minha cabeça em uma guilhotina invisível.

Mas Vássia, de repente, acrescentou:

VIVA A LITERATURA!

E então a pena de morte foi substituída por uma prisão perpétua.

Naquela noite nevada de Tóquio, eu compreendi tudo. De um escritor russo, me tornei apenas um escritor. E me acalmei.

E então imediatamente o sono veio. Subi para o meu quarto, caí na cama e adormeci. Como uma pedra.

Durante o dia, o sol japonês derreteu a neve. E à noite, as únicas coisas de Vássia que permaneceram foram o panamá e a cenoura.

E foi assim que um boneco de neve russo em solo japonês me revelou um importante segredo.

2001