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Morreu Gorbatchov, que realmente acreditava

Autorretrato, Cris Ambrosio

Quando entrei no ITA, na década de 1990, o trote era uma realidade que se apresentava como incontornável e imutável. Podia ser debatido quando violento, mas a sua existência mesma era um bem fora de debate. Passando por ele, particularmente pelo evento do “batismo”, quando o bicho recebia um segundo nome, ele deixava de ser apenas um aluno do ITA para tornar-se um iteano. O apelido recebido na ocasião solene virava o seu nome propriamente iteano, pelo que dali por diante será chamado pelos outros bichos e veteranos. Por meio desse rito, o sujeito passava a integrar de fato e de direito uma comunidade espiritual transgeracional. É verdade que vários alunos do primeiro ano passam pelo calendário do trote de modo aborrecido, irritado ou até mesmo exasperado. Alguns outros o consideram ultrapassado e cafona. Mas nenhum, aluno ou veterano, colocaria em xeque a relevância da função estrutural do trote. Passar por ele qualifica o aluno do ITA, já no primeiro ano, a uma rede valiosa de relacionamentos que incluía não só os contemporâneos de faculdade, como também ex-alunos espalhados em posições de destaque por direções de grandes empresas, bancos e órgãos públicos. Mesmo que nunca tenham ouvido falar um do outro, dois iteanos se tratam ao menos como conhecidos, identificando-se por meio de trocas simbólicas e pressupondo no outro qualidades e capacidades específicas. Tais senhas de pertencimento são marteladas no percurso das várias datas fixas de trote.

Uma das senhas é a canção “A cova”. Durante os trotes, os bichos são obrigados a repeti-la, como uma litania, sempre que demandados pelos veteranos. A musiquinha fica no ouvido para o resto da vida. O referente denotado na letra faz menção a uma história envolvendo pisar na cova de um velho amor. Mas ninguém mais, aplicando ou sofrendo o trote, atenta para o sentido literal dos versos da música. Importa saber como e quando performá-la, pois haverá ocasiões adequadas. Um evento em que isso acontece é o Sábado das Origens, o encontro anual iteano em que ex-alunos retornam ao campus do ITA para contar causos. Muitas das histórias recontadas envolvem o trote, sempre defendido apaixonadamente como uma tradição dorsal da comunidade iteana. Outro momento propício para cantá-la é durante uma entrevista de emprego, caso o entrevistador seja ele próprio membro da comunidade, o que aumenta as chances do candidato.


Em Everything Was Forever, Until It Was no More (Princeton Press, 2005), Alexei Yurchak introduz o conceito de socialismo tardio, referindo-se ao período da União Soviética entre a morte de Stálin e o colapso em 1991. Stálin morreu duas vezes. Primeiro, quando da desaparição física, em 1953. Três anos depois, na sessão secreta do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Stálin morreu pela segunda vez, desta vez no plano simbólico. A segunda morte foi, na verdade, um assassinato. O novo secretário-geral reformista, Nikita Khrushchov, denunciou não somente os crimes de Stálin, como também o culto da personalidade montado ao redor dele. Denunciou o seu lugar estrutural. A nação soviética deveria livrar-se do personalismo com ressonâncias imperiais, que terminava por subordinar a revolução socialista à figura do Grande Pai. O líder supremo era vivenciado na sociedade soviética de maneira ambígua, ao mesmo tempo terrorista e benevolente. Sem significante-mestre, a linguagem oficial da União Soviética, presente em todas as esferas da vida, passou por um deslocamento. Stálin existia como doador de sentido, copresente a histórias, textos e propagandas, um excesso homologador dos significados.

Para explicar a transformação do estatuto da linguagem no socialismo tardio, Yurchak recorre ao Paradoxo de Lefort: se toda linguagem é ideológica, o único jeito de distinguir a ideologia “boa” da “ruim” é lançando mão de uma instância externa. Na URSS, até 1956, o lugar estrutural de Stálin exercia precisamente a função metaideológica. Porque Stálin era o único que poderia, imune e alheio ao alcance dos efeitos ideológicos, corrigir rumos da revolução, até invertê-los, ou então determinar mudanças no escopo, finalidade e metas quinquenais. Foi assim que a revolução mundial internacionalista programada por Lênin se transformou, no período de Stálin, no programa da industrialização acelerada e da coletivização total da agricultura. Com a neutralização do despotismo imperial simbólico, a partir da denúncia de 1956, o lugar do significante-mestre no funcionamento da linguagem socialista se esvaziou, não sendo mais reocupado. O socialismo tardio exprime a consequente mudança do estatuto da linguagem, momento em que, paradoxalmente, a desestalinização do partido conduz à estalinização da linguagem do partido. Sem Stálin, os textos, as propagandas e os pronunciamentos oficiais devem ser reproduzidos ipsis litteris, não se admitindo mais a variação de conteúdos. O sentido literal do marxismo-leninista deve ser mantido sem reparos, indefinidamente. Contrariar ou questionar os conteúdos se torna especialmente perigoso, uma vez que não há mais instância metaideológica que pudesse acolher reformulações ou legitimar posteriormente uma mudança de rumos. A política se torna essencialmente polícia.

Antes da dupla morte, a presença de Stálin estava pressuposta no fundo dos textos e das propagandas do partido, à maneira de uma instância persuasiva adjacente ao discurso. Já no socialismo tardio que lhe seguiu o desaparecimento estrutural, esse local estrutural é substituído pelo discurso de pura cientificidade, que emergiu no período de Khrushchov. É o predomínio de uma lógica tecnocrática para a estruturação dos projetos socialistas. O timoneiro pessoal supremo cede o passo à suprema impessoalidade matemática do progresso técnico, levando assim à matematização do próprio fenômeno revolucionário. Em vez das hagiografias empoladas sobre Stálin e dos livros escritos por ele mesmo sobre a dialética materialista, o sentido da linguagem socialista passa a ser preenchido por planos de metas, relatos de burocratas, relatórios de resultados, tabelas estatísticas, fluxogramas de departamentos, normas de procedimento infindáveis. Na União Soviética do final dos anos 1950, o paradigma do Plano vira a matriz estruturante da novilíngua pós-Stálin — uma linguagem nem por isso menos pervasiva pelas esferas da sociedade soviética. Ao invés, são enunciados vividos como indiscutíveis, ubíquos e imutáveis: matemáticos. Aquela fora a década de ascensão da cibernética, da energia nuclear e do satélite na URSS, levando a pressentir que o futuro comunista aguardava na próxima esquina. A matéria estava sendo dobrada. O paradigma discursivo do Plano verte todas as questões humanas, políticas e econômicas aos imperativos da maximização do produto, da alocação ótima dos fatores e da consequente satisfação mais abrangente das necessidades e das vontades. Empolgado com o êxito pioneiro do Sputnik, Khrushchov até mesmo vaticinou o ano em que o comunismo plenamente automatizado aconteceria: 1980. A superabundância estava por ser engendrada pelo socialismo mediante a parametrização integral da produção social, como na linha do tempo alternativa narrada em Red Plenty (Faber & Faber, 2010), o romance tecno-utópico de Francis Spufford sobre esse período da URSS.

Para Yurchak, os atos de fala e os rituais do socialismo tardio não descreviam mais a realidade, não guardavam mais relação com algum referente, mas nem por isso deixavam de ser constitutivos da experiência da última geração de cidadãos soviéticos. Tais discursos não haviam se tornado simplesmente rituais vazios, porque faziam algo, funcionavam para algo, e eram reapropriados pelos praticantes nos mais diversos níveis, funções e dinâmicas materiais. Embora, no socialismo tardio, o PCUS se dedicasse com afinco e enorme dispêndio de energias em reproduzir os textos e as propagandas, sem espaço para flertar com mudanças de conteúdo, eles nem por isso se converteram em formas ocas ou inefetivas. Diferente de interpretações que reduzem a sociedade soviética tardia a um universo cinzento e homogêneo, a mero objeto de um totalitarismo de estado e partido, Yurchak descreve como, ao não acreditar no que os enunciados diziam e representavam, a grande maioria da população da URSS mesmo assim contava com eles, engrenando-se em seus efeitos. E mais, a maioria era capaz de inovar por dentro da linguagem estalinista, sem confrontá-la ou resistir diretamente a ela, o que seria imediatamente objeto de repressão pelo estado policial. Era um fenômeno de acoplamento não engajado de massa, meio-desligado como na música do Mutantes (cantada pelo Patu Fu, sem o verso “Ó meu Brasil”). Sem se tornarem dissidentes, das maneiras mais diversas, as massas testavam e desenvolviam novos usos e aplicações criativas apesar da rigidez implacável da linguagem protegida e vigiada pelo partido-estado. Isso não significava, aliás, que a dimensão descritiva ou denotativa do discurso oficial, quer dizer, o sentido literal dos conteúdos inquestionáveis, se tornasse com isso desimportante ou indiferente. Ao contrário, para Yurchak, a hipernormalização no socialismo tardio provocava ela própria uma tendência à desterritorialização, que não deixava de reaproveitar as técnicas e disciplinas promovidas pelo socialismo. Na verdade, não acreditar no sistema de mediações sociais era importante para a sua continuidade inercial, pois estabelecia uma base objetiva de fingimento coletivo, que gerava efeitos e era usada como linha-base para a organização da vida. É certo que a grande maioria da sociedade soviética não era marxista-leninista nem acreditava numa revolução em curso, porém, ao mesmo tempo não negava tais narrativas válidas como que por decreto semântico — em vez disso, convivia com as narrativas, dava-lhes um novo sentido na concretude das práticas. O curioso é que, caso os sujeitos passassem a coletivamente acreditar no que a linguagem descrevia e prescrevia, a exigir que os pronunciamentos e propagandas fossem levadas ao pé da letra pelas autoridades, essa crença coletiva acabaria colocando o socialismo tardio em risco de extinção.

O programa originário do partido bolchevique encabeçado por Lênin consistia em repetir a revolução em todas as esferas da vida social, fazê-la onde quer que se pudesse, na pequena e na grande escala, na fábrica e no âmbito doméstico: tudo é revolução, a qualquer custo. No final dos anos 1960, já ninguém mais acreditava que a pesada estrutura burocrática do PCUS, liderada por uma gerontocracia de notáveis, estivesse conduzindo a revolução permanente do socialismo, em qualquer esfera da vida que fosse. Na melhor das hipóteses, se acreditava que o partido defendia um legado possível, diante dos “infiltrados” e do cerco das potências imperialistas. A essa altura dos acontecimentos, fazer a revolução era encarado de maneira não literal ou, mais exatamente, fingida. O partido estava mais preocupado de elaborar parâmetros e controles para assegurar a maior extração de trabalho da população, a excelência técnica e a vigilância mais efetiva. Imaginava-se que, no final das contas, o socialismo poderia vencer o capitalismo através da maior capacidade produtiva e eficácia da economia planificada, sem um conflito armado. A vitória da URSS viria graças ao maior teor de racionalidade que se supunha residir no planejamento central, diante dos desperdícios, supérfluos e corrupções dos mercados capitalistas.


Ao conversar com colegas advindos de outras faculdades brasileiras de exatas, constatei como em nenhuma delas o trote é tão levado a sério e pedagógico quanto no ITA, a ponto de o caráter lúdico, de zoeira, ser relegado ao acessório. É como se houvesse uma dupla formação. De um lado, as aulas e os cursos formais oferecidos pela instituição, o lado “aluno do ITA”. Do outro, uma formação paralela, que não se aprendia em sala de aula nem era ensinada pelos professores, transmitida cuidadosamente durante os cinco anos, através da participação ativa na comunidade de alunos. O trote assumia um papel estruturante nessa segunda formação, a educação sentimental pela qual passava o primeiro ano. Esse segundo lado é o iteano propriamente dito. A bem da verdade, as aulas e os professores do ITA nem eram (são) tão bons assim, os laboratórios e as ementas não estão à frente de algumas outras faculdades de engenharia do país. O diferencial do iteano está nessa segunda formação, ante o que as aulas e notas são secundárias. Porque o longo percurso do trote no ITA não se resume ao ritual iniciático. Também envolve o aprendizado de truques e de práticas associadas ao estudo eficiente, a saber onde buscar saberes (know-where), com quem contar no processo (know-who) e como aplicá-los de maneira eficaz (know-how). O bicho aprende primeiro os modos de assimilação e de aplicação dos saberes, a estudar em grupo, a potencializar a pesquisa acessando materiais herdados de turmas anteriores e a expandir constantemente sua trama de contatos. Um dos elementos mais caros aprendido no trote é a chamada “disciplina consciente”, um complexo código de condutas cobrindo desde a ética do compartilhamento de conhecimentos e de tecnologias, até o dever de não trapacear entre iteanos ou no âmbito do instituto — falta gravíssima penalizada com imediata excomunhão.

Tudo isso tem razão histórica de ser. O ITA foi fundado em 1950, no alvor da década nacional-desenvolvimentista no Brasil. O binômio de modernização e democratização do nacional-desenvolvimentismo repercutia na matriz organizativa do ITA, que havia sido projetado para se tornar o “MIT brasileiro”. Quanto ao polo da modernização, copiavam-se alguns elementos da vida do campus das universidades de elite americanas, com a reprodução das tradições quase maçônicas, cultivadas turma após turma para dotar o alunado de um capital cultural confiável e duradouro. De fato, ao abrasileirar-se, a diretriz modernizadora consistia em formar uma aristocracia técnico-científica coesa, nacionalista, para guiar a marcha do Brasil ao progresso e melhor posicioná-lo no concerto das nações, conforme as oportunidades que se entreabriam naquele período prospectivo. Quanto ao aspecto da democratização, desde que o ITA foi fundado, o governo não só garante o caráter gratuito e público do ensino, com também um vestibular nacionalizado, voltado a captar estudantes de todas as regiões do país. Além disso, o governo subsidia um robusto programa de assistência estudantil, que engloba alimentação, saúde, moradia e uma pequena renda (porém significativa para um jovem de dezoito anos), em troca da exigência da devoção aos estudos.

Nas décadas seguintes à da fundação do ITA, emergentes contextos nacionais e internacionais rasgaram o pano de fundo nacional-desenvolvimentista existente na fundação do instituto, de modo que as ideias-guias passaram a pairar sobre outras realidades em movimento. Nem por isso, o conjunto de atos de fala e de rituais embutidos na formação do iteano veio a ser alterados. Pelo contrário, agarrou-se a eles como fiadores da substância da instituição diante das transformações do entorno, a fim de sustentar o principal, pois o segredo do ITA sempre fora a formação diferenciada do iteano. Por isso, os itinerários do trote mantiveram-se intocados, atravessando as décadas até, pelo menos, o período em que lá estive, no final dos anos 1990. Percebia um empenho grande, e até orgulho da comunidade em preservar as tradições em sua literalidade, sem reparos a fazer nos conteúdos do trote (apesar das punições sazonais por “excessos” ou quando “violento”). A situação aqui relatada, quanto à relação entre as dimensões constativa e performativa do discurso,corresponde à manutenção da estrutura de ritos e de práticas do socialismo tardio, como analisado por Yurchak. Enquanto repertório de performatividades, o trote continuou servindo para propósitos eficazes, continuou gerando efeitos determinados, ainda que deslocados em relação aos da origem, na década de 1950, uma vez que foram impactados no novo cenário englobante. A dimensão constativa, o sentido literal de textos, códigos e ritos seguia importante, porque precisavam ser cultivados, preservados e afinal repetidos, sem reparos, ainda que as transformações tivessem impactado o efeito performativo desses mesmos atos de fala.

Em Um departamento francês de ultramar (Paz & Terra, 1994), Paulo Arantes descreve os mecanismos de formação da geração de filosofia e letras da USP à época da FFCL, situada na rua Maria Antônia. Na minha intepretação, Paulo descreve duas formações articuladas do uspiano naquele contexto. De um lado, o percurso institucional, com aulas, provas e regramentos acadêmicos formais. Do outro lado, a educação sentimental, uma experiência menos cerimoniosa — nem por isso menos formalizada — associada a mesas de bar, a seminários dedicados e a uma rede de relacionamentos que punha rápido o aluno da USP em contato com as elites intelectuais da comunidade, que se estende para outras gerações e épocas. Além disso, no mesmo livro, Paulo confere uma importância ímpar ao ensino da explicação de texto à francesa, tal qual praticada por próceres do método, como um Martial Gueroult. Ao ser adestrado no rigor disciplinar da academia filosófica francesa, o estudante angariava um conjunto de ferramentas que o tornava capacitado para filosofar sobre o que quer que quisesse. No fundo, os conteúdos específicos não importavam senão na medida em que a partir da sua lenta digestão conceitual, em matutação paciente, se depreendia um método que terminava por elevar o estudioso ao patamar transcendental ou maturidade autorreflexiva — como no arco psicológico de um Bildungsroman. Em suma, aprendia-se a aprender, ensinava-se a filosofar — intransitivamente. Ao ler essas passagens pela primeira vez, , fui acometido por um dejà vu, pois ressoava com a dupla formação do iteano que eu havia vivenciado alguns anos antes. Analogamente, só que para o campo das ciências aplicadas, o principal aprendizado do iteano também não é um conteúdo específico (técnico-científico), um conteúdo curricular sintetizado pelas ementas das matérias e cursos, mas a tornar-se uma máquina capaz de processar quaisquer conteúdos aplicativos que sejam, para extrair-lhes a rotinas de otimização e de modulação da eficiência. Assim como o uspiano da Maria Antônia se tornava capaz de deduzir de qualquer sistema filosófico a sua gênese, o conceito; o iteano acedia ao nível do engendramento dos problemas técnicos e prático-científicos. No decurso do trote do ITA, por sinal, se costuma pontificar que a fórmula — digamos, de cálculo, aerodinâmica ou estatística — não importa. O que deve interessar ao iteano é como se chegou à fórmula, porque aí se poderá alterá-la, se poderá compreendê-la no meandro genético. O caso para o iteano não é decorar a fórmula e saber aplicá-la, como “qualquer outro engenheiro” poderia fazê-lo, mas aprender de onde ela surgiu e por que,quais são as equações, axiomas e premissas embutidas. Eis o surplus metodológico que eleva o iteano ao estatuto de senhor do processo como um todo, e não mero operador do já constituído.


Para Yurchak, no socialismo tardio, a sociedade soviética se tornou ainda mais heterogênea, ainda mais diversificada e populosa de tendências e de desejos. Em The Gorbachev Phenomenon (Berkeley Press, 1991), Moshe Lewin descreve como, depois de Stálin, a industrialização e a urbanização resultantes engrossaram o caldo social de novas demandas, necessidades e desejos. O historiador judeu-polonês contesta interpretações reducionistas da URSS, que a classificam como uma sociedade totalitária, em que os cidadãos não teriam agência e o país fosse despojado de sociedade civil ativa. Na realidade, processos endógenos pressionavam as estruturas de governo do partido desde dentro, proliferando uma rede microfísica de tensões e atritos, mesmo que a linguagem estalinista se mantivesse irretocada. Não é que os cidadãos soviéticos vivessem uma vida dupla, à semelhança dos marranos para escapar das perseguições:, a face pública rigidamente alinhada aos ditames do regime, ainda que cínica, e a face privada praticante de “religiões proibidas”, lugar das crenças autênticas. Não era isso. Os cidadãos soviéticos viviam uma única vida estruturada pelos mesmos rituais e discursos socialistas em que não acreditavam. Buscavam mesmo assim desempenhar suas performatividades, inclusive abrindo brechas e espaços alternativos. Não acreditavam no socialismo enquanto enunciado ideológico, no que tinha de literal, mas contavam com os efeitos concretos que podiam extrair e desenvolver a partir dele. Para Yurchak, a maioria da população adotava essa linha de ação, em massa, por dois motivos: tanto porque era mais eficaz porque assim conseguiam realizar projetos e “fazer as coisas”, quanto porque não viam na política dissidente, de enfrentamento direto ao regime, uma alternativa existencial viável. A impressão que se tinha era da inutilidade em questionar algo tão colossalmente aparelhado, uma relação custo/benefício desinteressante, considerando que, no fundo, já não se interessavam pelo que o enunciado prometia e não viam sentido assim em se arriscar e lutar por algo em que não acreditavam.

Tornar-se um dissidente, digamos, ao se recusar a cantar a “Internacional” nos momentos exigidos e recusar participar dos ritos, significava a imediata exclusão da comunidade, possivelmente a prisão, internação em hospício ou, quiçá, a condenação à morte. Dissidentes como o tcheco Václav Havel, que escreveu Vivendo na verdade (1986), ou então Alexander Soljenítsin, capa da revista Time de 1974, autor no mesmo ano de Não viver por mentiras, sustentavam que a linguagem na URSS estava morta e a sua relação com as formas sociais não passava de um engodo monumental. Afirmar isso é o mesmo que afirmar que milhões e milhões se engajavam na vida prática no socialismo tardio pela força combinada da sedução e da repressão, sem limiares de agência ou nuances dos tipos de engajamento com a linguagem e seu funcionamento por vezes paradoxal. Atitude diversa, entretanto, foi a assumida por Brodsky. O poeta decidiu tirar outras consequências da não crença coletiva na mensagem socialista contida na profusão de cartazes, pronunciamentos e programas de rádio. Em vez de negar ou contrariar o discurso ubíquo, ou simplesmente ficar indiferente, Brodsky o aceitava inteiro, mas não o aceitava pelo valor de face. Em vez disso, assimilava-o como uma floresta de signos a ser deglutida e recomposta em sua própria catálise poética, para os fins de sua obra pessoal, seu projeto poético-literário. Dessa maneira, Brodsky acionava a potência semiótica, a criatividade que podia ser construída de dentro da dimensão constativa, numa subversão por meio do uso que era conferido aos signos. Diante dessa subversão por assim dizer “lateral”, o regime não sabia muito bem o que fazer com Brodsky, que não agia como outros dissidentes políticos e objetores de consciência, até decidir interná-lo em um hospital psiquiátrico e, eventualmente, prendê-lo por crime de vagabundagem.

Segundo Yurchak, o caso de Brodsky é apenas a extremidade de um espectro de posturas cada vez mais difundidas entre a população soviética, a partir dos anos 1960. À territorialização estrita e dura das formas sociais à linguagem autorizada, muitas pessoas respondiam por meio de “milieux desterriotorializados” — subculturas do rock, do punk, grupos praticantes de hobbies, redutos de meditação e orientalismo, círculos literários ou poéticos, diletantes de ficção científica, produtores de zine, amantes de música experimental e uma cauda longa de publicações caseiras e informais, em todo caso extraoficiais, que viriam a ser conhecidas como samizdat. O efervescente imaginário sobre o que acontecia do outro lado do muro de Berlim, no “Ocidente”, era um território afetivo que deslizava da ancoragem socialista, nos poros da linguagem estalinista. Ainda que o partido tachasse os fãs soviéticos de bandas e de filmes ocidentais de fantoches dos imperialistas, a grande maioria dos interessados não vestia a carapuça, não se sentia atingida, visto que eram pessoas comuns, com poucas posses e pretensões de carreira, e que não se enxergavam na caricatura do pequeno-burguês alienado e egoísta apresentada pela propaganda do partido.

Depois do tremendo susto causado pela Primavera de Praga, em 1968, o PCUS decidiu desacoplar das estruturas dirigentes os intelectuais estatais ainda remanescentes, pondo fim à última intelligentsia soviética (ver: Vladislav Zubov, Zhivago’s Children, Harvard Press, 2009). Desse ponto em diante, não existia mais nenhum elemento produtor de discurso que atuasse internamente aos aparatos, que pudesse assumir a iniciativa moral de reformas. Os significantes se fecharam por completo. Em paralelo, pelas franjas da linguagem estalinista, se disseminavam constelações de desterritorialização social, que não ostentava um estatuto de intelectual público, dissidente ou resistência. Um modo mais preciso de defini-las é por entropia afirmativa. Yurchak comenta como os dissidentes e os opositores vocais do regime terminavam presos, executados ou exilados, sem galgar um grau de agência ou articulação interna no país. No final, sempre segundo o nosso autor, não teriam contribuído assim para o colapso do regime. Enquanto isso, um mundo de transformações se dava na sociedade sem uma feição explicitamente política, nos entremeios da linguagem, que proliferava sem com isso passar pela enunciação do enfrentamento. O próprio Yurchak descreve tais “milieux desterritorializados” na União Soviética como despolitizados, espaços não políticos, já que não formulavam uma posição nem a favor nem contra o socialismo tardio, sem cisão amigo/inimigo explícita ou implícita. Para seus participantes, quem estaria ocupando o cargo A ou B, qual seria o conteúdo do plano X ou Y, era tão relevante para seus interesses e projetos pessoais quanto quem ganhou o último jogo de críquete na Escócia. No entanto, tais espaços não deixavam de ser incubadoras do que, nos anos finais da perestroika, seria decisivo para o colapso da União Soviética. Tais experimentos de desterritorialização interligados continham desde o início uma teia de relações micropolíticas em constante mudança, operando por debaixo da superfície visível da política velada pelo partido e policiada — o que virá a contribuir, anos mais tarde, para derrubar a linguagem de uma só vez, em bloco.

Na década de 1980, os cenários nacional e internacional passaram por uma transformação em profundidade, que a tradição crítica ao capitalismo convencionou chamar de “neoliberalismo”. Nessa grande transformação epocal, a confraria iteana não mudou uma vírgula de seus enunciados formativos. Mesmo assim, tudo mudou para ela, quanto à dimensão performativa dos enunciados. A rede de relacionamentos, por exemplo, mudou de sentido. Se hoje inquirimos onde estão os ex-alunos do ITA mais bem posicionados, vamos encontrá-los distribuídos em multinacionais, mercado financeiro ou consultorias empresariais — tais como aquela do filme Toni Erdmann (Maren Ade, 2016), sobre as ansiedades e os dilemas de uma executiva especializada em downsizing. Um iteano nacionalista, comprometido em dar um retorno ao futuro do Brasil, hoje, seria visto como uma ave bizarra, provavelmente ridicularizado como “policarpo” ou “sem noção”. Que o programa de subsídio ao estudo no ITA tenha permanecido essencialmente o mesmo desde as origens não mudou essa apreensão. Atualmente, não existe mais nenhuma pretensão de formar uma aristocracia técnico-científica à frente do desenvolvimento nacional, pois ao sair da faculdade, os iteanos batem em revoada por outras áreas e outros países, atrás da melhor oportunidade e remuneração. Mesmo que a instituição formasse a originalmente planejada aristocracia, as decisões verdadeiramente relevantes não são mais tomadas por seus diretores técnicos, mas por fundos de investimento e boards de acionistas, em função de parâmetros outros. Além disso, a rede colaborativa, fomentada na segunda formação do iteano, não serve mais ao objetivo primevo de fortalecer a produção conjunta — isto é, nacional — das pesquisas, projetos e patentes. Hoje, o mesmo aparato formativo serve para alavancar a competitividade dos iteanos frente a outros profissionais com pedigree, tão preparados e qualificados quanto o graduado do ITA, no mercado globalizado de trabalho. Para completar o quadro, na década de 1990, a febre das empresas júniores chegou até a instituição. As empresas júniores são empresas integrantes do terceiro setor, em regime de isenção fiscal, ou seja, com subsídio do governo que, em troca, espera incentivar empreendedores e promover a gestação de start ups dinâmicas. Fundada em 1992, a ITA Jr. rapidamente se integrou à vida da coletividade iteana, passando a reforçar o preparo do iteano para o novo mercado neoliberal que, na época, se descortinava no Brasil. De qualquer modo, todos os rituais e narrativas fundantes do iteano permaneciam intocadas, ainda assim, enquanto o regime das performatividades se deslocava, já funcionavam de maneira diversa. O aluno buscava se acoplar já no primeiro ano com a formação permanente ao mercado, inclusive por meio da diversificação do curriculum vitae, agregando à carteira atividades universitárias de “viés social”.

Na perestroika, Gorbatchov conferiu ao Komsomol — a juventude partidária da União Soviética — um papel de vanguarda para as transformações induzidas pelas reformas. O Komsomol funcionava como o primeiro ano do ITA, provendo um percurso formativo ao aspirante a apparatchik, que deveria ser escolarizado numa variedade maleável de métodos de discussão e de disciplinas de ação, organização, pensamento estratégico, agitprop e coletivização de esforços e projetos — quaisquer que sejam eles, em função do que fosse solicitado pela cadeia de comando do partido. Ao assumir a secretaria-geral em 1985, Gorbatchóv encontrou o Komsomol com unidades se espalhando por todo o território da URSS, profundamente enraizadas nas escolas secundárias e primárias, com cerca de 90% da juventude soviética até 26 anos filiada a ele (Yurchak). O Komsomol passa então por uma virada, ao ser escolhido para aparelhar as reformas no tecido social. Deveriam agora funcionar como catalisadoras das reformas de introdução de elementos de mercado na economia planejada soviética, com um formato vizinho às empresas júniores existentes no lado capitalista desde a década de 1970. A escolha pelo núcleo gorbatchovita do Komsomol como ponta-de-lança da perestroika foi apenas lógica, pois a juventude socialista — assim como, analogamente, a comunidade iteana — era dotada de uma caixa de ferramentas completa para organizar o coletivo e dotá-lo de eficácia. O plano era aproveitar a filiação massiva ao Komsomol e sua força formativa, para recrutar jovens mais dinâmicos, mais vigorosos, para colocar a pesada estrutura partidária a serviço da perestroika, mobilizá-la, renová-la, modernizá-la. Pouco tempo depois da virada, a juventude partidária passou a ser pejorativamente chamada de “escola de capitalismo”. Não estava de todo incorreto. A essa altura da reestruturação em larga escala do capitalismo, “leninista” havia se tornado o capital neoliberal: ao repetir a revolução em todas as esferas da vida da sociedade, fazê-la onde quer que se pudesse, na pequena e na grande escala, na fábrica e no âmbito doméstico, a qualquer custo, tudo é revolução… do capital. Nada mais coerente, nesse contexto em surgimento, do que atualizar a juventude do partido marxista-leninista aos contextos emergentes: o agitprop se converte assim em branding, o vanguardismo em marketing criativo, enquanto os líderes e dirigentes do Komsomol se repaginam como empreendedores e executivos da economia reformada. Não é por acidente que alguns milionários surgidos na década seguinte, logo depois do fim da URSS, foram membros destacados do Komsomol, a exemplo do Mikhail Khodorkovski.

No plano simbólico, Gorbatchov empacotou o programa progressivo de reformas não como superação do socialismo realmente existente por algo novo, ainda sem nome. Em vez disso, Gorbatchov o apresentou como reinjeção de encanto nas velhas estruturas, que deveriam ser recuperadas mediante a incorporação do poder popular e, portanto, ainda “mais socialismo”. O slogan de 1985, primeiro ano de Gorbatchov à frente da URSS, foi “Aceleração”. Não era mudança de rumos, mas aumento da taxa de velocidades. Nos primeiros anos da perestroika, a dita “fase econômica” da sequência de reformas, Gorbatchov teve o cuidado de manter-se adstrito aos enunciados do socialismo tardio, não contestar seus sentidos literais, não desafiar seus dogmas e tabus. Por isso, Gorbatchov reivindicou até mesmo o último Lênin e seu realismo político desencantado. Evitava-se com isso adentrar na seara da linguagem propriamente política, campo da persistência do estalinismo sem Stálin, pois os reformistas sabiam o risto que os espreitava: uma muralha simbólica que a maioria acreditava ser intransponível, e que servia de instrumento de poder aos aparelhos. Além de reclamar o testamento de Lênin, Gorbatchov anunciou um pacote concomitante de medidas de transparência, a Glasnost. Era manejada como um instrumento de luta política contra a casta dirigente fincada por todo lado do pesado aparato de estado e partido. O objetivo de Gorbatchóv era vencer as resistências da nomenklatura e desbloquear a política das travas simbólicas. A gradual abertura dos registros, o paulatino aumento da publicidade dos atos e dos ritos da administração soviética passou a lançar luz sobre diversos gargalos produtivos existentes, falhas de integração das cadeias logísticas, falta de estrutura de incentivo profissional e interiores setores econômicos que funcionavam sem racionalidade, mergulhados num mesmo atoleiro de ineficiência e de desperdício que, noutros tempos, era atribuído ao capitalismo. Ademais, por trás das redes colaborativas e de compartilhamento promovidas pelo espírito pioneiro da Komsomol, alguns militantes-modelo foram desmascarados como nada mais do que apropriadores privados de bens e serviços do estado. Revelava-se como eram oportunistas a serviço exclusivo da própria carreira no partido, escolados em troca de favores e, em alguns casos, em enriquecimento ilícito.

Em 1987, inicia-se a segunda fase da perestroika, o dito estágio político-social, que abriu frentes de transformação das estruturas produtivas. Enquanto isso, a liberalização econômica se aprofundou. São introduzidos mecanismos de preços e de espaços para a iniciativa econômica privada. Em 1988, o espanto foi geral quando retorna à União Soviética o regime de propriedade privada coletiva, na forma das cooperativas, ressoando com antigas concessões leninistas à época da NEP. Além da empresarialização do Komsomol, Gorbatchov tentou importar o modelo de autogestão das empresas iugoslavas, porém, no fundo, eram empresas privadas disfarçadas. Para superar a cultura de engessamento, o governo facilitou a criação as empresas júniores/cooperativas e dirigiu-lhes políticas de financiamento. Gorbatchov buscou ainda atrair capital estrangeiro, ao autorizar joint-ventures internacionais em diversas áreas da economia, mesmo estratégicas, inicialmente até o limite de 49% de participação acionária. Apesar da casca legal e da retórica em apresentar as cooperativas e/ou empresas conjuntas como projetos socialistas modernizados, não enganavam ninguém. Tais iniciativas traziam no bojo um dispositivo de incentivo baseado na participação nos lucros. Esse conjunto de medidas — empresas júniores, parcerias público-privadas, joint-ventures e “cooperativas” — terminou desagradando a gregos e troianos. Por um lado, a nomenklatura e seus cachos de burocratas clientes reagiram à erosão de poder diretivo e ao horizonte de obsolescência, arreganhando os dentes à perda dos “direitos” conquistados pela vida diligente no partido. Por outro lado, a reação também veio de frações das camadas populares, por parte de grupos organizados de trabalhadores, que acusaram as cooperativas de pagar bônus acima dos salários tabelados. Estaria assim privatizando um lucro subsidiado pelo estado, que deveria estar sendo reinvestido em prol do bem comum. As camadas de trabalhadoras reclamavam o óbvio: as reformas beneficiavam uma delgada camada de setores mais dinâmicos, que souberam aproveitar — lícita, mas também ilicitamente — as oportunidades criadas pelas transformações e reformas, enquanto um externo rol de retardatários só via seus salários reais caírem e bens públicos serem discretamente privatizados.

Para Yurchak, contudo, o golpe mais violento veio da derrocada da ordem simbólica. Veio quando, já na segunda fase, Gorbatchov evidenciou a todos o fato que ninguém mais acreditava. O conjunto da obra da perestroika embutiu o gesto decisivo, performativo dos performativos, de declarar em alto e bom tom que o rei está nu. Era como se a linguagem estalinista predominante desde a morte de Stálin — isto é, o inteiro sistema de mediações das formas sociais em vigor, que se autorreplicava em moto perpétuo — fosse atingida em seu âmago: não, ninguém acreditava, mas agora ninguém mais podia fingir que acreditava, que era o que gerava os efeitos. O fingimento generalizado, combinado em massa, doravante se torna inviável. O modo de não acreditar mudou. Nunca mais poderia voltar a ser o mesmo. Depois da perestroika, a maneira como os soviéticos não acreditavam no socialismo se tornou destituinte, inviabilizando qualquer ambivalência produtiva inerente ao agenciamento dos enunciados. Retomemos nosso termo comparativo. É como se, no interior da maçonaria iteana, um iteano em posição de destaque evidenciasse para todos os demais como o trote não significava nada. Que, na realidade histórica em que se engrenavam, estavam sendo treinados para servirem de máquinas ultraeficientes (ainda que bem remuneradas) de um imenso Automaten moedor de gente. Não que no fundo nós, iteanos, não o saibamos. Claro que sim. Mas o fingimento é coletivo e objetivo, e como tal gera efeitos se é contente em não acreditar et pour cause, agimos como se houvesse uma crença coletiva. Para a mágica operar na realidade, é preciso fingir que que somos uma comunidade de formação à parte do mercado globalizado competitivo que é o sistema real em que estamos maquinados. Para garantir as molas do fingimento objetivo, o trote continua se repetindo, turma após turma, como um bloco autorreplicante de enunciados, vivenciado por bichos e por veteranos como algo imutável e ubíquo e, ao mesmo tempo, forma de inclusão.

A estrutura simbólica do socialismo tardio desmoronou em pouco tempo. Devido às exigências das lutas políticas contra o exército interminável de dirigentes conservadores, que detinham o aparelho intermediário e o poder executivo nas mãos, os gorbatchovitas concitaram os cidadãos comuns, “apolíticos”, que participassem eles próprios da esfera propriamente política. Pretendiam, assim, granjear bases para o enfrentamento com os aparelhos reativos. Desse ponto em diante, em 1989, já não havia mais entraves maiores, se podendo opinar sobre os governos, abrir discussões em bares, ruas e mercados, criticar suas estruturas, denunciar as autoridades, reclamar publicamente das prateleiras e filas, e até votar! Nesse período tumultuado, Ieltsin, então membro do Politburgo, entrou em choque explícito com Gorbatchov, o que provocou uma sensação de irrealidade na população. Era inimaginável que um membro do Politburgo pudesse confrontar um secretário-geral do Partido Comunista em público. No máximo, os políticos soviéticos caíam por golpes palacianos e a luta acontecia na surdina. Em um primeiro momento, Gorbatchov aceitou o embate como fato resultante de suas próprias reformas, sinal dos novos tempos que ele mesmo havia pretendido inaugurar por ocasião do anúncio da perestroika. Mas Ieltsin era irascível e vazou “discursos secretos” fazendo-os publicar por meio das redes de samizdat. Por causa disso, foi demitido depois de um julgamento em formato estalinista. Logo depois, em 1989, nas primeiras eleições diretas para deputado na república da Rússia, Ieltsin voltou à ribalta com um programa ainda mais reformista, sendo eleito como presidente do parlamento russo. O Ieltsin, que encampou a oposição programática e pessoal direta a Gorbatchov durante a perestroika será o mesmo que tomará a frente da resistência, com tanques rebeldes e povo na rua, centenas de milhares de pessoas em Moscou, quando da tentativa desastrada de golpe de estado pelos linhas-duras, antiperestroika, do PCUS. A virtù ieltsiana no episódio golpista de agosto de 1991 — associada à reabertura do dossiê flamejante das nacionalidades — terminou por empurrar a URSS ao colapso final.


Não é que Gorbatchov, na verdade, fosse um capitalista travestido de socialista. Para o biógrafo William Taubman (Gorbachev: His Life and Times, W. W. Norton & Company, 2017), ao sopesar a trajetória de vida e suas escolhas, Gorbatchov é o retrato de um otimista incorrigível, um idealista na hora e lugar errados e, enfim, um herói trágico. O último presidente da URSS teria conjurado forças poderosas esperando que, ao fim e ao cabo, as coisas se encaminhariam a um bom termo. Acreditava não só na possibilidade de reformar o socialismo, como apostava que a larga base científica, educacional e tecnológica da União Soviética daria ao país uma vantagem comparativa, no momento em que se ligasse aos fluxos da globalização — outro processo que Gorbatchov reduzia a complexidade a um telos convergente e internacionalista.

Gorbatchov não imaginava que, uma vez reintroduzidos os mecanismos gerais de preço e a lógica da lucratividade das empresas privados, o alien escaparia da caixa, continuando a “revolucionar” as relações produtivas por todo lado, em dínamo contínuo, tal qual o esfregão do aprendiz de feiticeiro do poema de Goethe. A perestroika e a glasnost fulminaram a atmosfera objetiva de fingimento geral e, ao mesmo tempo, não forjaram um novo significante-mestre nem eram desenhadas para esse propósito. Gorbatchov não tinha, e nunca quis apresentar, o perfil de novo Grande Líder ou Pai da Nação. Os traços de sua personalidade, conforme Taubman, o situam na galeria dos líderes de tradição reformista, como o predecessor Khrushchov, mas também Alexandre II ou Kerensky, personagens maltratados na memorabilia do Estado russo; em vez dos diversos derzhavniki tão glorificados da história imperial russa/soviética: Nevski, Iván, Pedro, Catarina, Stálin.

A perestroika poderia ter dado certo? pergunta Taubman. Ou será que, como na obra de Tolstói, o indivíduo termina escravo das forças anônimas e cegas da história, numa espécie de mito simétrico ao da história dos feitos dos grandes homens? É sempre fácil demais tecer hipóteses contrafactuais, mas talvez Gorbatchov teria ganhado uma sobrevida se tivesse convocado eleições para presidente da URSS e nela concorrido com um programa explícito, para além do marco simbólico do socialismo. De preferência, um programa de reformas e de transformações que não propusesse quadrar o círculo, isto é, propor “mais socialismo” exatamente num país em que a grande maioria, que já não acreditava nos rituais e nos enunciados, estava disposta a experimentar diferente.

A perestroika foi o experimentum crucis do socialismo tardio e, por sinédoque, da mais grandiosa e duradoura revolução proletária no Ocidente. Gorbatchov e os gorbatchovitas sempre terão como legado humanista a defender a decisão pela não intervenção nas lutas contra os governos ditatoriais de regimes satélites do Pacto de Varsóvia, pela reunificação da Alemanha e pela retirada das tropas que puseram fim a guerras por procuração pelo Terceiro Mundo: Camboja, Namíbia, Angola e, sobretudo, no Afeganistão.

No plano interno, as reformas de Gorbatchov desencadearam uma cascata de desmantelamentos tão viscerais que os cidadãos pós-soviéticos ficaram com o pior dos mundos. Para retomar a comparação aparalela deste artigo: o trote foi extinto, os membros mais vibrantes da comunidade viraram novos-ricos ou magnatas oligárquicos, enquanto o robusto programa de assistência foi desmantelado. No colapso da URSS, no plano interno, não sobrou nada de bom, só herança maldita para sufocar o futuro próximo: oportunismo, trapaça, lei da sobrevivência, cada um por si, privataria. Nem mesmo o mínimo existencial de educação, saúde e moradia para todos — ainda que de qualidade em franca deterioração — resistiu ao colapso prolongado pelos anos 1990. O choque de socialismo intencionado por Gorbatchov, em terrível astúcia da história, se resolveu em capitalismo de shock.