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A dialética de Marx e Darwin contra a de Adorno

Resenha de O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética (2022), de Fernando Haddad

Um peso latino, Gabriel Castillo

O desafiador livro de Fernando Haddad poderá ser um ótimo sopro para a renovação das ideias antropológicas, pois tende a estimular a superação de algumas cruciais inconsistências do campo. O que demandará muito estudo, escrutínio e auditoria, pois a obra aborda ideias de 161 pensadores, em maioria das biociências (45), da antropologia (39), da filosofia (30), assim como de muitos economistas (15), linguistas (12) e psicólogos (9). Diante de tamanha envergadura, que suscita inúmeras questões a merecerem reflexões mais profundas, este artigo se concentra tão somente na crítica dos conceitos que podem ser os mais cruciais para o avanço do pensamento dialético. Eles são apresentados e discutidos em três tópicos: evolução, metabolismo e “binômio”.

Evolução

Haddad rejeita o termo evolução para o estudo da sociedade e da cultura, reservando-o somente à vida, como se evolução pudesse ser objeto exclusivo das biociências.

Porém, como todas as áreas do conhecimento se perguntam como se dá a mudança do menos ao mais variado, a ideia geral de evolução se mostra imprescindível para várias outras ciências naturais, como a química, a mineralogia ou a astrofísica. Nesta última — que tem a evolução estelar como disciplina fundamental —, uma das três principais perguntas sobre a evolução das galáxias é: como se produziu um universo tão heterogêneo a partir de um universo homogêneo? Na química, há muita pesquisa sobre a evolução do oxigênio e do hidrogênio. E a evolução mineral tem sido uma das áreas mais produtivas das geociências.

Ao mesmo tempo, não há dúvida de que a civilização — ou processo civilizador — é um fenômeno muito diferente de outras grandes dimensões da história da Terra, sejam orgânicas ou inorgânicas. Mas tal diferença não permite imaginar que poderia ser absolutamente completa a separação entre elas. Não há fronteira impermeável ou estanque entre a cultura humana e a biosfera, assim como não há entre a biosfera e tudo que a precedeu no intervalo de quase um bilhão de anos de formação do planeta.

Por mais que haja cortes, falhas, fissuras, fraturas, quebras, rachaduras, rompimentos ou revoluções nos transcursos entre as grandes dimensões da história da Terra, é muito mais razoável e apropriado tê-las como integrantes de dinâmicas marcadas pela dialética de continuidades e descontinuidades.

Assim, em vez de proclamar que a cultura não evolui, pretendendo que a evolução seja tão somente biológica, o que realmente se impõe é tentar entender como se dá a relação entre ela — a cultura — e tudo o que a cerca. Em especial, tudo o que se refere ao passado pré-cultural dos próprios humanos, assim como ao imenso conjunto de inovações dos duzentos mil anos de ascensão do Homo sapiens.

Entre as muitas rupturas que precisam ser entendidas como pontos decisivos de mudança — mas que não anulam continuidades —, destaca-se, é claro, a que é intrínseca à relação dos humanos com todo o restante do que se convencionou chamar de natureza. Mas, como ainda é ínfimo o conhecimento, validado pela arqueologia, sobre o que pode ter ocorrido antes e no início da longa transição ao Neolítico, é, no mínimo, arbitrário estipular que, no Paleolítico, “cultura e natureza não estavam em oposição como polos de uma relação”.1

Primeiro, porque nos 20 mil anos finais do Paleolítico, quando a população humana cresceu cerca de 12 vezes, houve imensas matanças de megafauna, que transformaram as paisagens e aceleraram a frequência de incêndios. Calcula-se que, ao fim da era glacial, há bem mais de dez mil anos, 2/3 da megafauna já havia sido extinta. Ínfimos impactos, talvez, se comparados aos que viriam depois, mas suficientes para realçar continuidades que acompanham mudanças.

Segundo, porque, por muitos milênios, o sucesso dos agrupamentos humanos tendia a aumentar demais sua densidade demográfica, obrigando-os a se dividirem e migrarem em direções divergentes. Por serem onívoros, ecléticos e bem adaptáveis, os humanos sempre foram potentes predadores de muitas espécies vegetais e animais.

Terceiro, por ter demorado à farta para que o fogo começasse a ser controlado e domesticado. Não se tem ideia do tamanho dos estragos que tais barbeiragens possam ter causado. E é forte a hipótese de que os coletivos humanos que foram conseguindo regular o emprego de brasas e labaredas passaram a dominar parte dos que não tinham adquirido tal competência.

É, portanto, implausível a conjectura de que, no Paleolítico, não tenha havido contradição entre natureza e cultura. Em vez disto, o que se pode afirmar é que, por muito tempo, pode ter sido irrisório o aumento da entropia, pois os humanos certamente custaram muito a adquirir os meios necessários para acelerá-lo e, simultaneamente, exacerbar a devastação ecossistêmica.

A visão de Haddad parece decorrer de indevida extrapolação de evidências sobre culturas de alguns dos sobreviventes povos autóctones, muito integradas e reverentes ao restante da natureza. No entanto, nada permite supor que sejam razoáveis testemunhos do que prevaleceu na humanidade pré-histórica. As evidências arqueológicas mostram que houve de tudo.2

É similar o que se pode dizer sobre o início de escravagismo, também atribuído, no livro, a período posterior à assim chamada “revolução neolítica”.3 Mesmo que isso até possa parecer provável para o Oriente Médio — o que já é extremamente duvidoso —, como supor que também assim teria sido nas “revoluções neolíticas” da China, dos Andes, do México, da Nova Guiné e da África? Muito pouco se sabe sobre elas, ressalta o grande especialista Jean-Paul Demoule.4

Talvez, até seja plausível que, antes das primeiras sociedades agrícolas estratificadas, práticas escravistas não tenham sido muito frequentes ou representativas. Mas, de novo, por mais radical que tenha sido a mudança, nada permite afirmar que, também, não tenha havido algum grau de prosseguimento. Repetindo: nada é tão dialético quanto o sentido “da continuidade na descontinuidade”.5

Estes são motivos suficientes para que sejam considerados altamente suspeitos os neologismos “revoluir” e “alienização”, aventados em O terceiro excluído. Ambos incompatíveis com o intento de se promover uma antropologia dialética.

É inevitável que se pergunte, então, por que a intensa e profunda pesquisa do querido colega e atual ministro Fernando Haddad teria gerado tais proposições. A hipótese desta crítica é que decorram de confusões criadas por mal-entendidos dos intérpretes das obras de Marx e de Darwin ao longo dos últimos 150 anos.

No justo embate dos marxistas ocidentais contra o dogmatismo soviético, foram sacrificadas lúcidas contribuições de muitos pesquisadores que poderiam ter promovido avanços do materialismo histórico em vez de sua decadência. Paralelamente, foi aviltado e tripudiado o cerne da teoria darwiniana, tanto pelos darwinistas de primeira hora, quanto ao longo das quatro reciclagens promovidas por neodarwinistas.

Para começar a entender as razões de tais calamidades, são extremamente oportunas duas recentes sínteses: uma feita pelo editor da Monthly Review, o marxista John Bellamy Foster,6 e outra pelo diretor do Institut Charles Darwin International e editor das Oeuvres complètes de Darwin, Patrick Tort.

Metabolismo

Por duas décadas, o que mais caracterizou os investimentos intelectuais de John Bellamy Foster foi estudar o pensamento de Marx sobre as relações entre a humanidade e o restante da natureza. Os resultados têm sido explicações minuciosas sobre o que seria chave para uma ecologia marxista: o “metabolismo entre sociedade e natureza”.

Porém, para Haddad,7 nada tem de dialética a interação metabólica do organismo e seu meio ambiente. Diz que o inverso só pode ter inspirado Foster por ele ter estado “desatento” ao livro “quase definitivo” de Alfred Schmidt,8assim como a um diálogo entre o economista Abba Lerner9 e o geneticista J. B. S. Haldane10 no periódico marxista Science & Society.

Ora, nos três livros de O capital, há 27 passagens nas quais Marx usou o conceito de metabolismo, sendo a maioria — 16 — no primeiro, publicado em vida, em 1867. Também há mais 15 menções nos Grundrisse, de dez anos antes. E incontáveis outras vêm sendo garimpadas por Kohei Saito11 nos 250 cadernos de anotações que foram integrando o segundo projeto Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA²).

É patente o uso analógico, feito por Marx, ao se referir à “condição universal do metabolismo entre homem e natureza”. Mas, também, à mediação entre homem e natureza, à metamorfose das mercadorias, que permeia o metabolismo social, o metabolismo do trabalho humano, o metabolismo do trabalho social ou o metabolismo dos produtos do trabalho.

Durante a vida de Marx, metabolismo tornou-se a ideia básica de uma disciplina das ciências naturais que apenas engatinhava, a bioquímica. Um conceito que surgira em 1815 e começara a se consolidar na década de 1840, principalmente graças à obra de Justus Von Liebig (1803–1873). Trata-se, essencialmente, do conjunto de reações químicas que, no interior das células, garantem a vida. Resulta de duas “vias”, a biossintética (anabolismo) e a degradativa (catabolismo), ambas irreversíveis, distintas, mas interligadas.

A teoria celular, também estabelecida a partir de 1839, já propunha que todos os organismos são compostos por uma ou mais células, que as células são a unidade fundamental da estrutura e função de todos os seres vivos e que todas as células vêm de células preexistentes.

Então, teria sido indispensável que Haddad fornecesse alguma pista que permitisse a seus leitores aceitar que nada teria havido de dialético em tanta admiração de Marx por interações metabólicas, fruto de incontáveis leituras em ciência naturais, especialmente em seus derradeiros anos de vida. Em vez disso, os leitores são apenas remetidos às duas referidas leituras que o teriam induzido a condenar, como antidialética, a paixão de Marx pelo conceito de metabolismo.

Para começar, simplesmente não é verdade que Foster tenha sido “desatento” ao célebre livro de Alfred Schmidt, que Haddad acredita ser “quase definitivo”. Justamente por considerá-lo o mais influente estudo até então escrito sobre a visão de Marx a respeito da natureza, Foster consagrou à obra de Schmidt quase todo o oitavo capítulo de seu livro, de 2020, com Brett Clark: The Robbery of Nature — Capitalism and the Ecological Rift, assim como muitas passagens da mais recente síntese de seus trabalhos.12

Foster considera que a mais original contribuição do livro de Alfred Schmidt foi precisamente sobre o conceito de metabolismo. Para tanto, apoia-se em várias passagens em que Schmidt concorda enfaticamente com tão brilhante síntese da relação entre os humanos e o restante da natureza (“‘higher synthesis’ in the human-nature relation ”, p. 183).13

No entanto, Foster também observa que o apego de Marx ao metabolismo acabou por ser desprezado na parte final do livro de Schmidt, certamente a mais influenciada pelas ideias de seu mestre, Theodor W. Adorno (1903–1969).

Então, o problema nada tem a ver com uma suposta falta de atenção de Foster à análise de Schmidt, mas, sim, a certo empenho deste último na defesa de um posicionamento que nem era da Escola de Frankfurt — como muito se acredita —, mas, especialmente, de Adorno. Concepção que, aliás, não parece ter sido mantida em sua obra mais madura, até hoje objeto de intrincadíssimas investigações filosóficas, como bem assinala Marcos Nobre.14

Trata-se da tese segundo a qual, nas palavras de Haddad,15 Marx teria situado a contradição fora de seu lugar, posto que a contradição entre “homem e natureza” (sic) não seria originária. Pois é integral a concordância de Haddad com a ideia de Adorno/Schmidt de que a dialética só seria aplicável ao âmbito reflexivo da sociedade e da história humana. Já as ciências naturais, por se dirigirem a algo exterior, um mundo objetivo, separado dos seres humanos, seriam inerentemente positivistas.

Entretanto, o desenvolvimento de tais ciências tem mostrado exatamente o inverso. Fica até difícil escolher as referências bibliográficas que seriam mais aconselháveis aos que ainda não se deram conta disso. Parecem incontornáveis duas coletâneas coordenadas pelo filósofo francês Lucien Sève.16 Mas, para a atual utilidade da analogia metabólica, podem ser ainda mais pertinentes os trabalhos da equipe liderada pela austríaca Marina Fisher-Kowalski.17

Tudo leva a pensar que John Bellamy Foster não se enganou, portanto, ao recuperar o arguto uso, por Marx, do conceito de metabolismo. É lamentável, contudo, que o mesmo não possa ser dito sobre sua ênfase numa suposta antevisão da atual crise ecológica só porque Marx teria feito referência a um “metabolic rift”.

Rift”, tradução de “Riss”, que tem o sentido de rachadura, falha ou brecha, só aparece em uma única passagem no terceiro livro de O capital, que, por sinal, faz explícita menção a Liebig.18 Passagem esta que traz a ideia de que a aglomeração de crescente população industrial em grandes cidades, decorrente do êxodo rural, provocado pelas grandes fazendas, estava gerando as condições para um “irreparable rift” no metabolismo social, prescrito pelas leis naturais da vida.

Na melhor tradução da obra, tal expressão aparece como “ruptura irremediável”.19 Um completo contrassenso, pois, a rigor, uma ruptura irremediável de metabolismo equivaleria a um término, fim ou extinção, neste caso, da sociedade. Já a tradução por “falha”, como em Foster,20 em vez de “ruptura”, combina mais com uma debilitação ou desestabilização da dinâmica metabólica.

Mesmo assim, é excessiva a interpretação de que Marx estaria predizendo a crise ecológica contemporânea ao se referir, uma única vez, à avaliação de Liebig sobre a acelerada urbanização causada pela expulsão de trabalhadores da agricultura.

Também parece exorbitante a proposição de que uma ecologia estaria presente nos escritos de Marx, por mais que preciosas investigações no âmbito da MEGA² tenham levado Kohei Saito21 a contrapor, ao capitalismo, um eventual “decrescimento comunista”. Suas mais recentes descobertas, que só serão publicadas em abril de 2023, não distinguem o Marx cientista do Marx utópico.22

Para tentar entender por que Foster foi levado à mesma distorção, pode valer a pena uma consulta ao seu artigo de 1999 no American Journal of Sociology, estranhamente omitido na bibliografia de sua própria retrospectiva de 2022. Em 1999, toda a argumentação esteve voltada a destacar os erros cometidos pelos melhores sociólogos ambientais do século XX ao minimizarem ou rejeitarem os insights de Marx apoiados no conhecimento científico então disponível.

Porém, por mais que Marx tenha dado atenção às ciências naturais de seu tempo, é altamente deplorável que ele nem tenha chegado a entender a contribuição de Darwin, o que o teria conectado ao que estava surgindo de mais avançado no âmbito científico.

É duvidoso que Marx tenha realmente lido, com atenção, a primeira grande obra — A origem das espécies23 —, mesmo que a tenha elogiado por reforçar o materialismo. O fato é que, já a partir de 1862, passou a ver como meramente ideológica sua conjectura medular: a seleção natural. E nem leu a segunda grande obra — The Descent of Man24 —, lançada em 1871.25

Infelizmente, Marx não se deu conta da maior inovação histórica das ciências, tanto naturais quanto humanas, composta pelo vínculo entre as duas revoluções darwinianas: a lógica26 e a antropológica. 27 Algo até bem compreensível, tendo em vista as disparatadas polêmicas “darwinistas” da década de 1860. Mas muito frustrante que perdure — 150 anos depois — no livro O terceiro excluído.

Binômio?

Na álgebra, binômio é uma expressão de dois termos ligados por um sinal de mais ou de menos. Na biologia, costuma designar, em latim, um gênero (substantivo) e uma espécie (adjetivo). Arroz, por exemplo, é Oryza sativa.

Então, usá-lo para se referir à dinâmica da seleção natural, como faz Haddad,28 é uma demonstração inequívoca de integral desconhecimento da teoria darwiniana. Mais: nem fica em pé a tentativa de justificar o deslize atribuindo-o ao já referido diálogo — de 85 anos atrás — entre o geneticista J. B. S. Haldane e o economista Abba Lerner.

Por incrível que pareça, toda a discussão entre os dois se deu em torno do que Haldane29 (1937) chamou de “tríades hegelianas”: “hereditariedade, mutação, variação” ou “variação, seleção, evolução”, por exemplo. E o principal argumento crítico de Lerner30 foi o de que várias de tais tríades não se encaixariam no célebre epítome sobre “tese, antítese e síntese”. Com o qual concordava integralmente, embora hoje soe como um dogmático e obsoleto simplismo.

Desde então, houve razoável avanço na forma de se entender o cerne da teoria darwiniana, que é, sim, dialética, mas por outra razão. Na dinâmica chamada de “seleção natural”, os responsáveis pela reprodução, ditos replicadores, resultam da superação da contradição entre espontâneas variações aleatórias/estocásticas e pressões de persistentes e contínuas circunstâncias ambientais/territoriais.

Então, os replicadores talvez até possam ser entendidos como alguma suposta “síntese”, que superaria a referida contradição. Mas seria inteiramente descabido designar qual de seus dois termos poderia ser “tese” ou “antítese”.

Também é muito importante ressaltar que o termo “seleção” foi adotado por Darwin em decorrência do conhecimento acumulado a respeito da milenar seleção artificial. No entanto, a dinâmica é muito mais parecida com uma triagem, ou um peneiramento, do que com uma verdadeira seleção, termo que costuma designar procedimento de busca de algo predeterminado. Aliás, o próprio Darwin chegou a admitir a ambiguidade do termo “seleção”.31

Tão ou mais importante do que essas considerações sobre o âmago da teoria darwiniana é notar como, doze anos depois de sua fundamentação por escrito, em A origem das espécies, do final de 1859, Darwin tratou sua manifestação no âmbito dos humanos, em The Descent of Man, de fevereiro de 1871 (mal traduzido por A origem do homem, em vez de algo como “filiação” do homem).

Em completa ruptura com a teologia providencialista, a base da teoria da descendência modificada por “seleção natural” foi a conjectura de que a tendência à multiplicação infinita de cada espécie sofre oposição da existência universal de fatos naturais, que impõem dimensões relativamente estáveis para cada população específica. Ou seja, uma dinâmica simultaneamente demográfica e biogeográfica.

Dada a coexistência de várias espécies concorrentes num mesmo território, limitado por sua dimensão e por seus recursos, é necessário, para permitir a composição multiespécies, que seja imposta limitação à tendência de cada espécie à proliferação indefinida. E que seja eliminada, a cada geração, uma grande proporção de indivíduos de cada espécie. É tautológico dizer que, em tal situação de luta pela existência, os organismos que perduram são os mais compatíveis às condições da luta.

A primeira revolução darwiniana — contida em A origem das espécies — tornou cientificamente inteligível toda a história natural transformista, ao iluminar a necessidade lógica de um fenômeno “seletivo” a operar em uma natureza exposta ao conflito entre os limites materiais dos ambientes (por dimensões e recursos) e as capacidades reprodutivas dos seres vivos.

Porém, aproveitando o "silêncio antropológico" de Darwin, entre 1860 e 1871, e decretando que A origem das espécies continha, definitivamente, a verdade do devir universal, darwinistas que pretendiam fazer do princípio “seletivo” a chave doutrinária das ciências humanas introduziram um absurdo sem precedentes na história da interpretação das teorias científicas. Um erro que o conhecimento da antropologia darwiniana só pode condenar, mas que o poder dissimulador do liberalismo vitoriano impulsionou como uma lei implacável da natureza por entre os dramas mais devastadores do século XX.

A segunda grande obra de Darwin, só publicada em 1871, é sobre a passagem à civilização. Por meio dos instintos sociais, a seleção natural escolhe a civilização, que se opõe à seleção natural.

Três afirmações conclusivas desta obra,32 que já assoprou suas 150 velinhas, realçam o quanto a história da espécie humana levou Darwin muito além da teoria exposta em 1859:

  1. No que diz respeito à natureza humana, outros fatores superaram a “luta pela existência”, por mais que ela tenha sido importante e ainda o seja.
  2. As qualidades morais avançaram muito mais devido às consequências, sobretudo dos hábitos, dos poderes do raciocínio, da instrução e da religião, do que de ‘efeitos da seleção natural’.
  3. Foram instintos sociais que proporcionaram o desenvolvimento moral.

É este “efeito reverso” da evolução que Patrick Tort, pedagogicamente, associa à metáfora topológica da fita de Möbius.

Tal fita ajuda muito a entender a segunda revolução operada pelo Darwin antropólogo: uma reversão sem ruptura, permitindo, enfim, uma visão não reducionista da relação entre as ciências naturais e as ciências sociais.

Porém, deu-se o contrário. Os darwinistas contemporâneos de Darwin reagiram como se a segunda grande obra fosse um reles “anexo” à primeira. E foram muito ajudados por aqueles que já haviam pretendido antecipar o que ela iria trazer, inventando duas antagônicas cruzadas: o "darwinismo social" hiperliberal (anti-intervencionista) de Spencer e a "eugenia" autoritária de Galton (intervencionista).

O maior problema é que persiste a força desses dois “enganos”, bem coerentes com a dinâmica autojustificativa e triunfalista da Inglaterra vitoriana.

Ao mesmo tempo, o pensamento antropológico mais convencional sempre tomou a relação entre “natureza” e “cultura” como sucessão de dois universos separados por um operador de ruptura. De acordo com tal representação delimitadora, o operador varia muito. Muitos, como Haddad,33 ressaltam a posse da linguagem. Outros preferem a invenção do fogo, a proibição do incesto, o registro externo da memória em suportes permanentes, a existência de rituais funerários ou a fabricação de ferramentas.

Em todos esses casos, a “cultura” sucede à “natureza” no modo de uma mudança qualitativa, possuindo o caráter irruptivo de um evento singular que introduz a novidade. É também assim que a mesma forma de pensar representa a história como algo que viria depois da evolução, numa relação de exterioridade mútua ou articulação de duas realidades heterogêneas.

Tal representação não existe em Darwin. Na antropologia darwiniana, a passagem não é simples, mas reversa. O movimento natureza-cultura não produz ruptura. O interesse da fita de Möbius para representar tal reversão está justamente em indicar a cultura como o reverso da natureza e vice-versa. Mas, também, que o anterior subsiste em todos os pontos: a natureza como antecedente e oposto da cultura.

A continuidade tátil da fita de Möbius simboliza o desenvolvimento real da civilização a partir da natureza e a impossível ruptura com ela. É nesse sentido fundamental que a Ecologia — como ciência dos meandros, interações e compatibilidades — é constitutiva do pensamento darwiniano e inclui todos os componentes e tendências evolutivas das sociedades humanas, reagindo às pressões da realidade biogeofísica e da história.

A interferência permanente — ou a relação de habitação mútua — entre “natureza” e “cultura” é, no texto darwiniano e o que ele inspira, o cadinho da compreensão das complexas dinâmicas que hoje devem constituir o programa da ecologia como ciência.

Síntese

O que foi dito até aqui, em oposição ao livro O terceiro excluído, pode ser sintetizado em poucas palavras. Ao contrário do que pretende Haddad, são, sim, dos mais dialéticos, tanto o uso feito por Marx do conceito de metabolismo,34 quanto as duas teorias de Darwin: sobre a própria lógica evolutiva35 e sobre sua consequência antropológica.36

Porém, hoje, qualquer referência à dialética exige que seja destacada a necessidade do múltiplo. Afinal, há muito deixou de ser razoável referir-se à dialética no singular. Nem tanto por se tratar de ideia que mudou da água para o vinho, ao longo de 2.500 anos. Muito mais devido à proliferação, nos dois últimos séculos, de inúmeras modalidades, versões e interpretações. Pior, engendrando discussões filosóficas tão babélicas, que até grandes pensadores a veem como discurso inválido e ilegítimo.

Só que existem poucas noções tão relevantes no âmbito do que se pode entender por ‘lógicas’. Por mais que tenha sofrido forte erosão imposta por soviéticos, maoístas e simpatizantes, o que sobrou permanece essencial em todas as áreas do conhecimento.

O núcleo duro e a força propulsora dos movimentos dialéticos estão na “contradição”, a ideia de que contrários podem se nutrir um do outro, completando-se enquanto se opõem. Conceito que manteve sua força, vencendo a tentativa de substituí-lo pelo eufemismo “tensão”.

No âmbito evolucionário, é a relação entre continuidade e descontinuidade. São coisas simétricas, mas é muito raro (se houver) algum fenômeno dinâmico em que elas não sejam simultâneas. Em geral, não há como entender os movimentos e suas transições ao se supor que “isto não pode ser aquilo”. Quase sempre, só se pode entendê-los por preferência ao “também”, ao “do mesmo modo” ou ao “ao mesmo tempo”.

Essa questão é das mais decisivas para a compreensão das grandes dinâmicas históricas da Terra. O mais comum é considerar que elas sejam três: a inorgânica (físico-química), a da vida (biológica) e a humana (sociocultural). Não tem cabimento a ideia de que sejam três compartimentos estanques, sem transições, com suas continuidades e descontinuidades. Porém, há quem troque tais dialéticas pelo obscuro fetiche da “transcendência”, ao se referir à passagem de uma dinâmica a outra.

Também é discutível a tradicional visão de que só sejam três as grandes dinâmicas históricas da Terra. Principalmente, porque o “processo civilizador” é tão diferente da “natureza humana”, quanto a biologia o é da física ou a cultura o é da biologia. Então, mesmo que a melhor teoria evolucionária tenha sido proposta para uma delas — a da vida —, também pode ser verdadeira, mesmo que de outras maneiras, para as demais: a inorgânica, a natureza humana e o processo civilizador.

Ainda vão persistir, por muito tempo, os desentendimentos sobre o nexo entre evolução e dialéticas. Pois sempre haverá filósofos a rejeitarem a ideia de que alguma contradição possa existir fora da mente humana, por mais que isso escandalize pesquisadores atentos à filosofia da ciência que praticam.

Então, o epílogo desta crítica só pode ser um: o livro O terceiro excluído dará decisiva “contribuição a uma antropologia dialética” — como proclama o subtítulo — caso venha a estimular reflexões coletivas que tomem direção bem diversa, se não oposta.