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Justiça argentina e verdade sul-africana: caminhos para uma transição democrática

Branco de chumbo, Marcos Kaiser Mori

Instituída em 1964, ainda hoje a ditadura militar deixa seus rastros na história brasileira, como um período ainda não totalmente superado. Não é à toa que, de tempos em tempos, alguns temas e marcos importantes a ela relacionados voltam ao debate; é o caso da Lei da Anistia, e também da Comissão da Verdade, as quais, segundo análises do Google Trends, conheceram uma ascensão na quantidade de buscas no Google desde o final de 2021. Exemplo da importância dos termos é a retomada de frases como “Sem Anistia” em falas políticas no contexto dos atos antidemocráticos de invasão do Congresso e do STF em janeiro de 2023.

Apesar de toda a sua importância histórica, a Lei da Anistia e a Comissão Nacional da Verdade não conseguiram cicatrizar as feridas deixadas pelo regime militar. Elaborada em 1979, ainda sob o regime, no contexto de uma transição “lenta, gradual e segura” para o período democrático, a Lei da Anistia tinha o objetivo de conceder perdão aos crimes praticados por motivações políticas, o que permitiu interpretações que beneficiaram e anistiaram os militares envolvidos em crimes de violação dos direitos humanos. Ou seja, foi responsável por perdoar os crimes cometidos na ditadura, ao invés de promover justiça para as vítimas.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV), por sua vez, comemorou, em 2022, dez anos de sua criação, e seu objetivo era o de reconstruir a verdade histórica dos períodos entre 1948 e 1988, com foco a partir de 1964. Sua criação serviria para recuperar a memória dos atos cometidos naquele período de constantes violações dos direitos humanos, expondo-os à sociedade (Canabarro, 2014). Como resultado, a Comissão produziu um extenso relatório (4.300 páginas) com descrições dos fatos ocorridos e recomendações às autoridades, apontando colaboradores civis da ditadura e suspeitos, assim como fazendo o reconhecimento da ocorrência de crimes contra a humanidade (Weichert, 2014).

Mesmo com importantes avanços, um dos principais aspectos negativos apontados nos trabalhos da CNV foi o da distância temporal entre o período analisado e o início de suas atividades, o que dificultou a coleta de provas e a busca dos corpos dos desaparecidos. Ademais, a Comissão não teve êxito em expor a completa verdade, já que, por exemplo, não contou com a necessária colaboração das Forças Armadas, que sistematicamente se negaram a esclarecer fatos ou indicar responsáveis.

O sintoma mais concreto dessas limitações está no fato de que ainda hoje muitos segmentos da sociedade não reconhecem os crimes da ditadura, como é o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos seus seguidores.1

Para Paulo Abrão, especialista em direitos humanos, o processo de justiça de transição a partir de experiências autoritárias passa por quatro dimensões: 1. Reparação; 2. Verdade e memória; 3. Regularização da justiça e igualdade legal; 4. Reforma das instituições (Abrão, 2011). O processo ainda envolveria a questão de como as sociedades vão lidar com esse passado (Pereira, 2016). Entretanto, o que resultou no Brasil, tanto do “perdão” concedido aos torturadores pela Lei da Anistia quanto da tardia ação da CNV, foi uma memória fraca e insuficientemente reconstituída, além da falta de punição, culminando ainda em situações de exaltação de personagens como o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, chamado de “herói nacional” por Jair Bolsonaro.2

Países da América Latina e de outras partes do mundo tiveram suas histórias manchadas por períodos ditatoriais, para não falar dos traumas legados pela colonização. As transições para o Estado democrático aconteceram de diversas formas, mas aqui destacando-se as que focalizaram a busca pela justiça e pela verdade. Nesse texto, serão apresentados dois caminhos — o da Argentina, com o julgamento das Juntas Militares, e o da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul pós-apartheid (Hilb, 2014) —, experiências importantes de aprendizado dessas quatro dimensões, e cujos procedimentos poderiam ter sido seguidos pelo Brasil.

Nunca Más: o julgamento das juntas militares e a busca pela justiça na Argentina

A ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983, é considerada uma das mais sanguinárias da América do Sul, deixando mais de 30 mil mortos.3 Como define Capelato, instalou-se:

o chamado Estado Terrorista, responsável por uma violência extrema […]. A existência de campos clandestinos de detenção e extermínio e o número elevado de desaparecidos, estimados em 30 mil pelas organizações de direitos humanos, confere um caráter de excepcionalidade a essa ditadura argentina (Capelato, 2006, p. 66).

Findo o regime militar, o presidente eleito Raúl Alfonsín, que assumira em dezembro de 1983, tentou condenar os líderes das juntas militares em conjunto com os líderes de movimentos de esquerda. Contudo, principalmente entre os familiares das vítimas, essa proposta encontrou resistências; o governo acabou por fazer um julgamento apenas dos militares (Capelato, 2006). Assim, o presidente formou a Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas (Conadep), que, em menos de um ano, colheria testemunhos acerca de nove mil delas (Hilb, 2014).

A partir do trabalho da Conadep, foi realizado o relatório Nunca Más, principal pilar para o julgamento das juntas (Hilb, 2014). Iniciaram-se então os processos contra os comandantes das Forças Armadas, trazendo justiça para as vítimas, com cinco militares condenados à prisão perpétua.

O relatório Nunca Más “definiu o lugar das vítimas e o julgamento das juntas instalou a cena da lei” (Capelato, 2006, p. 71), contando com relatos de sobreviventes dos campos de concentração e a “presença ausente” dos desaparecidos. Como escreve Hilb (2014), o julgamento estabeleceu uma “verdade” suficiente para a condenação, resultando daí uma associação muito forte, e indiscutível até hoje, entre o período e a violação dos direitos humanos.

Embora essa primeira etapa da Argentina democrática tenha sido marcada por julgamentos contra os militares, ainda sob o comando de Alfonsín, foram promulgadas as leis Punto Final (1986) e Obediencia Devida (1987), que colocou fim a novos julgamentos. Entretanto, em 2003 e 2005, o Parlamento e a Suprema Corte declararam a inconstitucionalidade dessas leis, reiniciando ações judiciais que haviam sido arquivadas (Gallo, 2014).

É também importante trazer algumas críticas ao mecanismo implementado na Argentina. Mesmo tendo sido eficaz em julgar e punir os líderes das juntas militares — um feito histórico exemplar —, esse mecanismo não agiu tanto quanto necessário na busca pelas descrições e esclarecimentos dos fatos, para que as famílias pudessem reconstruir as histórias das vítimas: “na Argentina, a opção escolhida pela justiça teve como correlato, se observada 25 anos mais tarde, certo sacrifício ou perda da verdade” (Hilb, 2014, p. 108). Segundo a autora, o julgamento a partir do relatório Nunca Más por um lado estabeleceu nacionalmente o reconhecimento incontestável do horror que foi o período ditatorial, mas, por outro, não “permitiu” espaço para esclarecimentos do que de fato aconteceu nos anos de terror e os destinos das vítimas.

Na Argentina, cabe pontuar que ainda hoje a busca pela verdade e pela memória, em especial a busca pelas vítimas, é muito presente. Por exemplo, um movimento importante que acontece na capital é o liderado pela Asociación Madres de la Plaza de Mayo, que semanalmente se reúne em frente à Casa Rosada, sede do governo, para protestarem contra as violações da ditadura e por seus filhos desaparecidos. Outro movimento nesse sentido, também em Buenos Aires, é o das Avós da Praça de Maio, que no final de dezembro de 2022 “identificou” o 131º neto desaparecido.4

A Comissão da Verdade e Reconciliação e a busca pela verdade na África do Sul

Em contraste com o caso argentino, a África do Sul caminhou no sentido de expor a completa e complexa verdade sobre o período do apartheid. O país africano passou por um longo período de segregação, entre 1948 e 1994, que adquiriu diferentes dinâmicas sociais, a exemplo da primeira lei do regime, em 1949 — o Immorality Act, que criminalizava casamentos inter-raciais (Pimenta; Moutinho, 2021).

Com o fim do regime de segregação, a África do Sul se viu diante de um desafio: como agir para ser considerado um país democrático? Dois nomes são essenciais para entender o processo de transição: os de Nelson Mandela e de Desmond Tutu, que era contra os modelos de punição adotados após a Segunda Guerra Mundial:

Essa opção [punição] não era viável para um país que precisava conviver na democracia, argumenta Tutu. Era preciso enfrentar as dores do passado para promover a reconciliação. […] Desmond Tutu reforçava ainda que a reconciliação e a anistia só poderiam ocorrer a partir do relato de toda a verdade, que devia ser publicizada para que a nação e o mundo pudessem tomar conhecimento

(Pimenta; Moutinho, 2021, p. 278)

Nesse cenário, a Comissão da Verdade e Reconciliação teve como objetivo ouvir as vítimas e os culpados, os quais, ao expor seus crimes, podiam solicitar anistia caso fornecessem um testemunho completo, ou seja, caso expusessem toda a verdade. Como resultado, a Comissão reconheceu mais de 19 mil vítimas e identificou mais cerca de 3 mil ao longo do trabalho; para além, foram mais de 7 mil pessoas que testemunharam e pediram anistia, tendo sido aceitos 1312 pedidos.

Para avaliar com mais clareza o resultado obtido pela Comissão, cabe destacar o descrito por Hilb:

a sociedade branca sul-africana teve de ouvir daqueles que, em boa medida, havia considerado guardiãs de seu modo de vida, o relato das maiores atrocidades […] os criminosos tiveram de relatar de forma exaustiva as histórias de seus crimes diante das vítimas ou de suas famílias.

(Hilb, 2014, p. 110)

A partir do mecanismo e do incentivo da anistia, então, a Comissão conseguiu seu objetivo de expor toda a verdade, conseguindo em muitos casos identificar o que havia acontecido com cada vítima (Hilb, 2014). Ou seja, conseguiu reconstruir o passado e a memória do país. Entretanto, da mesma forma como no caso argentino, o caminho seguido pela África do Sul também deixou marcas na população, criando o que muitos chamam de uma convivência entre negros e brancos marcada pela injustiça, além de ter deixado indelével marca de ressentimento na sociedade e a impressão de um processo de transição que foi “leve” para os culpados e cruel para as vítimas (Blaser et al., 2010).

Anistia no Brasil: uma memória mal reconstruída e nenhuma justiça

Conforme evidenciado anteriormente, ambos caminhos trouxeram consequências e marcaram a forma como a sociedade enxerga e lida com o passado. Sem entrar no mérito de qual seria a melhor opção, e de que forma cada uma delas resultou em cicatrizes profundas nos seus respectivos países até os dias atuais, o fato é que o Brasil possuía outros caminhos a serem seguidos para dar respostas à sociedade sobre o que ocorreu no período da ditadura.

Entretanto, mesmo com relatos e reconhecimento de graves violações contra os Direitos Humanos (Weichert, 2014), a Comissão enfrentou desafios e nem ela nem a legislação brasileira conduziu à justiça — tal qual a Argentina — nem a uma ampla verdade — como na África do Sul.

Isso porque, apesar das tentativas de buscar justiça, a Lei da Anistia permitiu interpretações capazes de conceder perdão a todos os crimes cometidos no regime militar, impedindo uma investigação da violência do Estado. Já a busca pela verdade também sofreu obstáculos em especial pela distância temporal entre os acontecimentos, pois, apesar da Comissão Nacional da Verdade ter ser histórica ao Direito à Memória e ter concluído a existência de crimes contra a humanidade, perseguições e práticas de tortura para além de atos isolados, gerou também frustrações em encontrar os desaparecidos e teve que lidar com cenário de silêncio de atores importantes: “Infelizmente, a Comissão da Verdade não conseguiu reunir todas as informações sobre os desaparecidos. Infelizmente, não teve a colaboração daqueles que têm as respostas” (Togo Meirelles Neto).5

Branco de chumbo, Marcos Kaiser Mori

Ou seja, a Comissão Nacional representou contribuição importante para a construção da verdade no país, todavia, e como aponta Weichert (2014), houve algumas lacunas — tanto causadas por questões temporais e exógenas quanto por endógenas, como o conflito com as Forças Armadas em fornecer documentos. Dentre esses borrões destacados pelo autor que geraram frustrações na sociedade civil, evidencia-se que o Relatório não apresentou números de vítimas de tortura e prisões ilícitas e dados sobre mortes e desaparecidos entre povos indígenas e de repressões no campo. Ademais, e por não ter sido de responsabilidade atribuída à CNV, não houve trabalho de busca e identificação dos restos mortais das vítimas.

O resultado para o Brasil? Um crime sem culpado e uma história com memórias nebulosas e conflitos de narrativas: cenário este que ainda é reforçado tanto nos pedidos de civis por nova intervenção militar quanto pelos depoimentos de familiares vítimas do regime, a exemplo do pronunciamento de Maria Eliana de Castro: “a grande frustração das famílias é não saber ao certo o que aconteceu com os desaparecidos e nem saber a localização exata dos restos mortais”.6