Aquilo que vem de fora — sobre trauma e guerra1
A vida transformou-se numa sucessão intemporal de choques, entre os quais se rasgam lacunas, intervalos paralisados. Contudo, talvez nada seja mais funesto para o futuro do que o fato de que breve, literalmente, ninguém mais será capaz de pensar nisso, pois cada trauma, cada choque não superado daqueles que retornam da guerra, é o fermento da futura destruição.
I — Um congresso e a Guerra

No começo de setembro de 1918, o fim da Grande Guerra se avizinhava. Devido a derrotas frequentes no front e, internamente, a greves, motins e fome, o Império Austro-húngaro ofereceu aos Aliados uma proposta de paz em separado. A iniciativa foi rejeitada, e o Império Alemão também não tardou a capitular. Enquanto abrandavam os ânimos entre as nações, no interior do núcleo psicanalítico iniciava-se uma disputa muito particular. O último Congresso de Psicanálise ocorrera em Munique, em 1913, havia cinco anos, portanto, no início da Guerra. Freud e seus companheiros ansiavam pela interlocução que essas reuniões propiciavam, e os preparativos então não tardaram. Abraham propôs a realização em Berlim, Ferenczi ofereceu Budapeste. Jones, britânico, buscando aproximar a psicanálise dos Aliados, apoia este último com a justificativa de que a psicanálise não poderia ser identificada com uma criação germânica, uma “ciência boche”.2 A iminência da separação da Hungria em relação à Áustria falava em favor da opção por Budapeste, pois isso aparentaria mais neutralidade.
Com a concordância de Freud, ainda no mesmo mês, em 28 e 29, mesmo sem a certeza de um armistício oficializado, ocorreu o V Congresso de Psicanálise. Sediado na Academia Húngara de Ciências, contou com a presença de representantes dos governos e exércitos húngaro, alemão, austríaco. Teve a participação reduzida, de apenas quarenta e dois membros — sendo quase todos austro-húngaros, três alemães e três holandeses —, mas o evento aconteceu e com marcos relevantes. O programa científico teve duas partes. Freud apresentou na segunda sessão uma conferência formal conhecida pelo título de “Caminhos da terapia psicanalítica”. A ele se seguiram Otto Rank, Geza Róheim e Viktor Tausk, entre os mais conhecidos.3 A primeira sessão foi dedicada ao tema candente das neuroses de guerra e contou com as palestras de Ferenczi, Abraham e Simmel. Esse é o núcleo deste livro que recebeu o título de Sobre a psicanálise das neuroses de guerra [Zur Psychoanalyse der Kriegsneurosen].
Apesar do contexto sociopolítico, ou justamente devido à maneira como a psicanálise nele se inseriu, o evento ocorreu com toda a pompa e circunstância. Roudinesco enfatiza que, “à exceção de Freud, todos os homens ostentavam seus uniformes”;4 o Relatório do Congresso nos informa que até o prefeito de Budapeste, Stefan Bárczi, esteve presente nas recepções e na abertura do evento, afinal, a cidade disponibilizara aos participantes as acomodações no luxuoso Hotel termal Gellert, bem como um banquete no Hotel Bristol na noite de abertura. Não surpreende então que “um mês depois Freud ainda saboreava a lembrança, com indisfarçada satisfação recordava a Abraham ‘os belos dias de Budapeste’”.5
Esse entusiasmo, aliado ao fato de que Anton von Freund fizera uma doação que possibilitaria a fundação da Editora Internacional de Psicanálise, impulsionou a publicação tanto da edição vernácula, em 1919, quanto da edição em inglês, publicada pouco tempo depois, em 1921. Por conta do esforço da Sociedade de Psicanálise para a publicação desse livro, pode-se inferir, a aposta era de que ele transcendia o caráter da mera ata das apresentações de um congresso, mas que registrava o olhar psicanalítico na contribuição do esforço de guerra, ou seja, demonstrava a eficácia e utilidade pública da psicanálise, assim como certa capitulação da abordagem médica organicista diante da consolidação do psíquico. Pressupunha-se então, desde o início, um interesse histórico nessa publicação, expresso tanto na dedicação editorial como também no registro da consolidação pública da psicanálise como teoria e tratamento.
Com mais de um século, portanto, sai em português a primeira tradução integral e feita diretamente dos idiomas originais. Esta publicação mais do que tardia talvez se deva ao vezo, compreensível e até certo ponto inevitável, de, sobre tudo que concerne à psicanálise, centrar a atenção na figura de Freud. É preciso então destacar o caráter coletivo dessa publicação na qual, na verdade, o texto do fundador da psicanálise indiscutivelmente não ocupa o lugar de maior destaque. A julgar pela estrutura do livro, que reproduz a do evento, seria de Ferenczi o texto centro das atenções, tendo sido objeto da discussão das palestras de Simmel e Abraham. O de Jones — que, na verdade, nem compareceu ao evento, sendo uma palestra proferida anteriormente —, por sua vez, confere um caráter conclusivo. Isso pode parecer apenas um detalhe, mas convida a uma reflexão mais ampla acerca da necessidade de encarar a psicanálise como um campo de saber no qual as discussões tiveram um papel decisivo. Se frequentemente se compreendem as muitas polêmicas (evoquemos os nomes que marcam cisões ou expulsões: Adler, Stekel, Jung, Rank, Reich, querela M. Klein × A. Freud, Lacan) que permeiam a história da psicanálise como um problema contra o qual Freud e os diretores da IPA se debatiam para manter um núcleo estável, elas podem e precisam ser lidas também como um marco da vivacidade das interlocuções, em suma, do caráter constitutivamente dialógico do saber psicanalítico. Em sendo assim, a importância histórica do livro não se deve apenas ao âmbito do registro editorial que visa ampliar o acesso para o público brasileiro de um material que marca a história da psicanálise e esteve até hoje indisponível. Mas se deve, sobretudo, pela possibilidade que o livro enseja de melhor compreender os debates internos ao campo psicanalítico e os de seu entorno mais próximo, os saberes médico e psicológico, que oferecem vias concorrentes de abordagem da questão. Caso se queira aprofundar os estudos sobre Freud, a leitura desse livro possibilita a compreensão de como certos movimentos conceituais em sua obra se beneficiaram de tais interlocuções. Acerca também da questão do trauma a literatura psicanalítica, que frequentemente conduz os pesquisadores ao texto de introdução de Freud, a publicação integral desse livro pode ajudar a compreender de forma muito mais efetiva no que consistiam os tratamentos, qual referencial conceitual era mobilizado e os debates relativos a esses e outros aspectos.
Além desses dois aspectos da relevância histórica do livro, pode-se refletir também sobre o fato de que talvez se tenha a impressão de que, na literatura psicanalítica acerca do tema das neuroses de guerra, as publicações mais famosas, as palestras de Sándor Ferenczi de 1916 e de 1919 (já vertidas para português, mas em tradução do francês), resumiriam o essencial. A despeito da importância inegável desses textos para a bibliografia psicanalítica das neuroses de guerra, pois sintetizam um momento importante do percurso da formação ferencziana do conceito de trauma, deve-se considerar que a sua palestra no Congresso de 1918 se concentrou principalmente na tarefa árdua de um recenseamento bibliográfico. O trabalho culminou na provocativa observação de que a experiência de guerra não só forçou os médicos a reconhecerem o psiquismo, mas também, malgrado seus próprios interesses político-teóricos, praticamente os conduziu a concordar com a psicanálise.
As considerações clínicas aparecem com ênfase apenas nos textos de Abraham e Simmel, de modo que sem o conjunto completo aqui disposto, ficaríamos sem o acesso a reflexões clínicas relevantes sobre o tema. Mesmo que nos textos de Simmel a proximidade com teoria psicanalítica fosse indisfarçavelmente frágil (a julgar pela presença de técnicas de hipnose e catárticas, conforme registra até a resenha da época que também consta nesta edição), a sensibilidade de uma escuta clínica psicanaliticamente inspirada é algo marcante e ainda hoje faz pensar. Ao enfatizar que são os combatentes mais dedicados aqueles que apresentam maior predisposição para desenvolver os sintomas que caracterizam a neurose de guerra, contrariava-se frontalmente o consenso médico então vigente, que supunha nesses doentes falta de vontade, falta de patriotismo ou empenho no esforço de guerra. Tudo isso pode ser sintetizado na suspeita de simulação que se beneficiava de uma apropriação enviesada da compreensão freudiana das neuroses como um “refúgio ou fuga na doença”.
Simmel, por sua vez, identifica na dita histeria de demanda pensionista, cujo núcleo é uma série de representações de cobiça, também uma demanda, uma exigência da ordem do valor, mas na qual a pensão não era o objetivo principal, ou seja, identificava uma demanda de valor, mas não no sentido financeiro. O complexo neurótico em questão é compreendido como uma “espécie de neurose de inferioridade” cuja origem seria precisamente uma dedicação ao serviço militar que não obteve a devida valorização, o esperado reconhecimento da entrega ou mesmo submissão às ordens dos superiores; o esforço, por assim dizer, “não valeu a pena”. O exemplo não poderia ser mais eloquente. O soldado serve-se de sua doença literalmente como “distintivo” — e termo deve ser entendido aqui em toda sua gama de significação — a medalha de condecoração que distingue o soldado de seus colegas e o honra pelos seus feitos. Assim sendo, pode-se dizer que se trata de uma demanda por reconhecimento. Disso há decorrências que poderiam, sem muito esforço, ser extraídas quando se coloca tal formulação em contato com o debate contemporâneo que compreende as lutas sociais como expressão de reivindicações justamente por reconhecimento.6 Nesse sentido, curiosamente, a publicação do livro em 1919 marca um momento da própria psicanálise em sua luta por reconhecimento enquanto instituição legítima para a compreensão e tratamento de sofrimento psíquico.
O texto de Abraham apresenta algumas vinhetas clínicas para legitimar uma questão que permanecia um tanto vacilante no texto de Simmel, a saber, a da etiologia sexual dessas enfermidades. Esse não era um ponto de menor relevância, pois as neuroses de guerra, que apareciam como um bom exemplo da possibilidade de uma etiologia psíquica, manifestavam-se igualmente como um contra-argumento para a tese freudiana da centralidade da sexualidade para a formação das neuroses. Afinal, se se admitia facilmente que a vivência de guerra pudesse produzir um grande abalo, podia-se também conceder que, pela repetição ou pela força, um abalo disparasse um desequilíbrio psíquico sem uma origem orgânica. Mas, seja como for, era a vivência de guerra que parecia ser a origem dos sintomas. A observação clínica de Abraham, porém, se detinha na questão da predisposição. Afinal, nem todos que passaram por essa situação adoeceram. Ao contrário, as pessoas mais suscetíveis seriam aquelas cuja sexualidade se caracterizava por uma “labilidade” — ou seja, um certo bloqueio, inibição ou inabilidade nesse âmbito. Tudo se passa como se a vida em tempos de paz já trouxesse dificuldades suficientes para tais indivíduos e que situação de guerra teria transbordado as suas capacidades, de maneira que “aqueles que têm predisposição para a neurose ficam para trás em relação aos saudáveis”.7 Sendo assim, tais pessoas estariam mais propensas a formar um trauma a partir do abalo vivido no front, que funciona então como “um impulso para uma mudança regressiva que tende ao narcisismo”.8 O recurso a esse conceito é outro aspecto a ser destacado não só neste texto, mas também no de Ferenczi. Esse conceito, que aparecia em Freud de forma incipiente — como marca de uma escolha objetal e como uma etapa intermediária da evolução da libido entre o autoerotismo e o amor de objeto, respectivamente em Totem e tabu e no Caso Schreber —, recebe uma formulação mais sólida em Introdução ao narcisismo, que data de 1914, o ano do início da Guerra. Tratava-se então de uma inovação teórica recente, de modo que os textos de neuroses de guerra podem ser lidos como sendo parte de um primeiro esforço de reflexão e utilização dessa contribuição freudiana.
Do texto de Jones pode-se destacar igualmente essa interlocução com a mais recente produção psicanalítica da época ao conceder especial atenção à noção freudiana de angústia [Angst]. Nesse sentido, encontramos como base teórica principal a 25ª palestra de Freud das Conferências introdutórias à psicanálise, “A angústia” (1917), pois, segundo Jones — e elege esse argumento como fio condutor — todos os sintomas psíquicos podem ser considerados uma tentativa de evitar a angústia9. O ponto central foi mostrar como as diferenças entre a situação dos tempos de paz e a dos tempos de guerra convocava a capacidade do sujeito de lidar com tais vivências que causam ansiedade, medo, pavor e angústia. Jones argumenta que há um certo despreparo ou falta de “elasticidade” para o indivíduo achar um equilíbrio, um “reajuste” entre o Eu-de-tempos-de-paz e o novo Eu que atua no front, um reajuste de dificuldade apenas comparável à de certos impasses gerados pela sexualidade.
O diagnóstico desse despreparo, mesmo que Jones não o faça, nos remete novamente à ideia de regressão que seria imposta por uma experiência traumática. A capacidade para esse tipo de reajuste a novas situações tão novas e exigentes, a qual podemos denominar também de adaptação, depende precisamente do sucesso alcançado no processo de desenvolvimento do indivíduo em fases anteriores. A extrema dificuldade ou mesmo fracasso em sustentar “formas de reação” e “dispositivos de proteção” contra um objeto que cause medo, ansiedade e angústia gerando um conflito atual, sempre retoma conflitos anteriores “enterrados”.
Essa imagem tão comum na literatura psicanalítica de algo que foi “enterrado” e continua operando como fator etiológico ganha tonalidade especial nesse contexto, pois frequentemente os pacientes adoeciam justamente depois de serem soterrados devido ao dasabamento da estrutura das trincheiras, causado pelo abalo de explosivos. Pode-se dizer então também ser isso que ocorre ao soldado: um desmoronamento das suas estruturas físicas e psíquicas. É por isso que Ferenczi chama a atenção para a regressão pressuposta nos “traços da personalidade” dos que sofrem de neurose de guerra — a infantilização e o caráter imperativo e “caprichoso”10 das demandas de cuidados particularmente com a alimentação. Nesse sentido, Abraham relata um caso que se destaca por exemplificar um tipo particular de regressão. Até mesmo a capacidade da fala retrocede ao comportamento de uma “criancinha angustiada” de dois anos: “durante semanas, a todas as perguntas sobre seus sofrimentos, ele só pôde responder com apenas duas palavras ‘mina bum’”.11 Essa desarticulação da sintaxe e da capacidade de expressão é consequência direta do fracasso do processo de adaptação à situação da guerra, de uma incapacidade ou impossibilidade de transformar uma vivência em experiência. Mas essa dificuldade, é verdade que em outro grau, não é uma exclusividade dos neuróticos de guerra.
II — Vivências da guerra, experiência da modernidade
Vimos até aqui alguns elementos que justificam a relevância histórica do livro. Detenhamo-nos agora em aspectos que podem ajudar a caracterizar a atmosfera histórica desse período. Walter Benjamin, em Experiência e pobreza, texto de 1933, nos oferece, por meio de um balanço de seu tempo, um guia para que não nos percamos nessa época de grandes e bruscas transformações.
Uma coisa é clara, a cotação da experiência baixou, e isso aconteceu com uma geração que fez, em 1914-18, uma das experiências mais monstruosas da história universal. Talvez isso não seja tão estranho quanto parece. Não se tinha, naquela época, a experiência de que os homens voltavam mudos do campo de batalha? Não voltavam mais ricos, mas mais pobres de experiências partilháveis.12
Esse mutismo alude à dificuldade de criar significações transmissíveis para narrar as vivências enfrentadas. Esse silêncio aparece como sintoma a denunciar a queda da “cotação da experiência”. Nessa formulação, Benjamin descreve a tendencial obsolescência dos vínculos tradicionais que transmitem valores socioculturais. Nessa dissolução do tradicional há algo de uma obstrução, um bloqueio cuja origem é o caráter “monstruoso” da vivência, ou seja, a desproporção descomunal e disforme desse evento que rompia com aquilo que se tinha por natural excedendo, por isso, as capacidades psíquicas de elaboração. Para esse excesso do novo e perigoso faltam palavras. A falta da mediação delas explicita a perda da capacidade de tecer conexões entre as vivências aleatórias, estabelecer um ponto de vista e narrar, pois sem isso não há experiência e o indivíduo não tem nada o que contar.
Seria necessário um processo ainda mais lento de maturação para a assimilação do novo, mas o mundo, pelo contrário, impõe uma resposta imediata, que, portanto, fica sempre aquém do necessário ou sequer é possível de ser produzida. Diante dessa insuficiência, um cansaço enorme se abate sobre o indivíduo, sobrecarregando ainda mais suas forças e dificultando as possibilidades de suportar aquilo que o atinge. Ele agora já não é visto com a potência — lugar de constituição da experiência subjetiva — que a Modernidade (Descartes etc.) lhe creditara; transforma-se então num ponto frágil e instável, no qual, apenas eventualmente e com muita dificuldade, constitui-se a ligação de vivências desconexas em alguma unidade de experiência.
Uma geração que ainda foi à escola nos carros puxados a cavalo, viu-se de repente num descampado, numa paisagem em que nada se manteve inalterado a não ser as nuvens, e no meio dela, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, o corpo humano, minúsculo e frágil.13
Era uma época na qual as experiências dos mais diversos campos foram “desmentidas”. As experiências de formas da economia se esgarçam pela inflação, argumenta Benjamin, os legados morais têem as suas bases abaladas pelos desmandos dos poderosos, e até a experiência do próprio corpo é modificada pela fome e pelos choques da guerra. Sublinhemos também que a arte da guerra cultivada por uma casta social particular já não mais era possível como se entendia, pois as experiências que se poderiam transmitir acerca das estratégias de guerras não tinham mais eco. Elas foram superadas pelas diversas inovações técnicas (como metralhadoras automáticas, o uso de gás clorídrico e a dita “guerra mecanizada”, o uso extensivo de blindados) que enterravam as concepções subitamente tornadas antigas de batalha campal (as artimanhas de movimentos territoriais das tropas, ataques maciços de cavalaria etc.) e impunham aquilo que permaneceu como a síntese máxima dessa era, a trincheira — técnica última de defesa de território que permitia poupar a vida de soldados de uma carnificina generalizada inevitável devido a tais tecnologias.
A relação com a técnica, contudo, não foi vivida apenas como nostalgia de uma época pré-industrial ou melancolia. O humor da excitação estava também muito disseminado. Talvez a melhor expressão disso resida na imbricada relação entre produção cultural e o culto à máquina14, de que o futurismo italiano vem a ser o exemplo mais claro. Na cultura germânica, por sua vez, destaca-se nesse mesmo sentido o registro em forma literária dos diários de guerra de Ernst Jünger, alguém que cunha justamente o mote da “mobilização total”.
Havíamos deixado salas de aula, bancos de escola e mesas de trabalho e, em curtas semanas de treinamento, estávamos fundidos em um grande e entusiasmado corpo. Criados em uma época de segurança, todos sentíamos a nostalgia do incomum, do grande perigo. E então a guerra tomou conta de nossas vidas como um desvario. Em uma chuva de flores, saímos de casa, inebriados com atmosfera de rosas e sangue. A guerra, por certo, nos proporcionaria o imenso, o forte, o solene. Ela nos parecia uma ação máscula, uma divertida peleja de atiradores em prados floridos e orvalhados de sangue. ‘Não há no mundo mais bela morte…’ Ah, só não queríamos ficar em casa, queríamos poder participar.15
Esse segundo parágrafo de Tempestade de aço ecoa a descrição de Benjamin da geração que ainda ia à escola em transporte a cavalo, uma época sem a agitação da vida moderna guiada pelo ritmo da maquinaria. Talvez haja algum grau de idealização,16 mas trata-se da transição de uma “época de segurança” em que até o perigo poderia ser desejado como maneira de nos “tirar de casa”. Os ideais de virilidade se coadunavam perfeitamente com esse ímpeto pelo “solene”, frequentemente eivado de nacionalismo e uma expectativa juvenil de divertir-se numa pradaria “florida e orvalhada de sangue”, de modo a integrar uma comunidade que concede um sentido orgânico aos seus membros: o corpo militar. Ainda que não fosse universalizável esse espírito bélico — obviamente nem todos eram voluntários — considerando essa eletrizante mobilização,17 qual não seria a decepção diante do cotidiano no front? O próprio autor, mais para o final de sua jornada, revisa sua empolgação e, ressaltando o seu lado de “desvario”, fala até da perda do sentido antes imaginado.
Estávamos cansados e habituados com o rosto da guerra (…) Não éramos mais ofuscados pela violência dos fenômenos. Também percebíamos que o sentido daquilo que nos fizera sair, abandonando casa e família, havia se esfacelado e não bastava mais. A guerra lançava ao alto seus enigmas mais profundos. Eram tempos estranhos.18
Esse “ofuscamento” causado pela violência poderia ser detalhado de maneira a ilustrar alguns dos traços da vivência nas trincheiras, demarcada sobretudo por uma alta exigência dos sentidos, que precisavam estar alerta para fornecer os materiais para o desenvolvimento do que se poderia chamar de uma arte de interpretação bélica que os soldados eram forçados a desenvolver subitamente se almejassem sobreviver. Jünger nos conta que
ainda não familiarizado com os ruídos da guerra, não tinha condições de distinguir os assobios e os sibilos, o reboar de nossas próprias peças de artilharia dos estrondos rasgantes das granadas inimigas, que explodiam em intervalos cada vez mais curtos, e assim me colocar a par do que estava acontecendo.19
Confundir um bombardeio ofensivo como fogo amigo, enganar-se quanto ao tipo de explosivo a ressoar e não buscar o abrigo adequado era, portanto, potencialmente fatal. Isso tornava o risco imanente a qualquer erro nessa hermenêutica um fator a aguçar os sentidos ao máximo, mas também um fator igualmente predisponente à produção dos sintomas psíquicos, uma vez que o psiquismo estava sempre sendo sob altíssima exigência.
Ilustra bem isso a passagem em que ele reflete sobre uma patrulha noturna. Depois de ter conseguido escapar de uma situação que se viu face a face com um inimigo inglês e sua arma não funcionou, um momento que ele caracteriza como um “sonho paralisante”,20 ele formula o que sentiu da seguinte forma:
Que a experiência me perturbara, eu só percebi quando estava deitado sobre um catre em meu abrigo subterrâneo, rangendo os dentes, e, apesar de exausto, não conseguia pegar no sono. O que eu tinha era uma sensação de estar desperto e completamente alerta, como se em algum lugar de meu corpo uma pequena campainha soasse o tempo todo.21
Difícil não ver nessa descrição uma situação que represente o que Freud tinha em mente com sua noção de preparação para a angústia.22 Uma formulação já inscrita em um momento da teorização freudiana da angústia não como apenas libido represada, mas se referindo a uma reação diante de um perigo real externo e também pulsional. Ela busca descrever precisamente o momento de uma mobilização total da atenção que produzirá o medo/angústia e, na sua ausência, isto é, quando não houve essa preparação, quando a prontidão do indivíduo não foi suficiente, nessa circunstância, disparam-se reações motoras, ações visando fuga e esquiva do objeto do perigo. Porém, na situação relatada, como se nota, houve a prontidão necessária. Estão presentes as reações adequadas de fuga, e posteriormente, a angústia que se percebe pela marca clássica do ranger dos dentes e da insônia decorrente dos ecos da excitação.
Jünger teve ferimentos à bala, foi atingindo pela tempestade de aço, ou seja, sofreu os abalos dos diversos tipos de explosivos, etc. Ele relata inclusive mais de uma passagem nos hospitais de campanha, mas não se tornou um neurótico de guerra. Talvez isso seja compreensível se retomarmos um fator predisponente ausente e tão enfatizado pelos psicanalistas no livro sobre sobre as neuroses de guerra. Jünger termina seu diário relatando justamente o reconhecimento militar que obteve: além de uma rápida ascensão na linha de comando, uma comenda do imperador, Ordre pour le Mérite.
Aqueles que não desenvolveram neurose de guerra não passaram por esses eventos sem, contudo, sofrerem algum tipo de abalo. Se tais vivências não resultaram em trauma, não significa que deixassem de ter ao menos o peso de um choque. Para caracterizar esse impacto de maneira mais ampla, mesmo já um tanto antes da Guerra, a ponto de aparecer na formação das cidades grandes, retornemos a Benjamin quando afirma que “a grande cidade despertava naqueles que a viam pela primeira vez medo, repugnância e horror”.23 Um dos eixos desse seu argumento é a análise da vida massificada, ou em multidão. O traço do “horror” fala de um estranhamento que se explicita em dois materiais literários. No comentário do conto de Poe, “O homem da multidão”, pois nele já está presente um dos signos do choque, o evento violento do encontrão, do esbarrar não intencional pela impossibilidade de desviar dos outros anônimos na aglomeração das massas. E na sua leitura de um poema de Baudelaire, “O Sol”, no qual encontramos ainda um outro elemento, a possibilidade do indivíduo resistir frente a esses choques. Benjamin salienta o esgrimista presente no poema como imagem de alguém cujos “golpes que desfere destinam-se a lhe abrir o caminho entre a multidão”,24 ou seja, o eu-lírico luta com as palavras do verso, assim como o indivíduo precisa se debater e resistir aos choques na multidão. Sublinhemos que, para Benjamin, esses elementos constituem os traços mais gerais da figura que delineia o indivíduo na Modernidade.
Mas esse transeunte no meio da multidão, exposto aos empurrões das pessoas apressadas que correm em todas as direções, é uma prefiguração do cidadão dos nossos dias, cotidianamente empurrado pelas notícias dos jornais e do rádio e exposto a uma série de choques que por vezes atingem a própria base da sua existência.25
Esse indivíduo atordoado, despreparado, que se depara a cada esbarrão com a fragilidade até mesmo do seu corpo começava, portanto, a viver aquilo que nós hoje admitimos como cotidiano. Os choques a atingir a base de nossa existência, contudo, também se intensificaram e o papel da técnica e tecnologia é nisso crucial; passamos então da tração animal para o automóvel, dos jornais ao rádio etc.
Insistamos ainda nessa transição da carroça que conduzia aos bancos escolares aqueles que depois foram à Guerra e voltavam sem conseguir transmitir sua experiência. O interesse capitalista pelo aumento de velocidade na passagem do bonde puxado a cavalo para o elétrico ou mesmo o trem, de forma mais ampla, a busca por novas e mais eficientes tecnologias, trouxe consigo igualmente uma série de problemas a serem administrados pela cidade moderna, que podem ser compreendidos como “custos ocultos do processo de modernização”,26 dentre os quais destacamos os acidentes.
A terapêutica das neuroses de guerra não foi inventada especificamente para o tratamento delas. As inovações médicas não se contrapuseram à transposição de diagnóstico, ou seja, “o debate sobre as neuroses de guerra retomou o ponto onde o debate pré-guerra sobre a ‘neurose de acidente’ tinha parado”.27 Inclusive Freud alude a isso logo no início de seu Parecer28 sobre a eletroterapia: “Mesmo em tempo de paz, houve muitos doentes que após traumas (como acidentes de trem,29 ou seja, vivências terrificantes e perigosas para vida psíquica e para atividade nervosa), apresentaram distúrbios sem que os médicos fossem unânimes na avaliação dessas condições”.30 Não havia, contudo, um consenso absoluto, a definição etiológica estava em disputa. Havia a concepção funcional — que atribuía a origem a um problema no sistema nervoso, podendo ocorrer com a integridade do órgão — e a abordagem organicista, que pressupunha a ocorrência de uma lesão. A abordagem psicanalítica é uma derivação da funcional na medida em que as “alterações psíquicas” seriam um tipo de distúrbio funcional. Ressalte-se disso, então, que o termo “neurose” não tinha inicialmente esse sentido quase sinônimo de doença psíquica — ela concernia aos “nervos”, ou seja, a uma disfunção específica no sistema nervoso. Apenas posteriormente, e a psicanálise exerceu papel decisivo nesse processo, é que esse sentido psicológico se consolidou. Mas ele só pôde ser contruído sobre esse solo pavimentado pelo “discurso sobre os nervos ou neurastenia”,31 cujo marco foi a descrição feita no final de 1860 pelo médico George Miller Beard.
Da disputa pela etiologia seguia-se necessariamente a discussão até mais polêmica acerca da terapêutica. O organicismo obviamente buscava a localização dos sintomas em uma lesão física. Quando ela não era visível, havia um problema. Muitas vezes continuava-se a pressupor a lesão, mas admitia-se uma insuficiência tecnológica para o diagnóstico, portanto, não havia muito como tratar. A hipótese funcional, por sua vez, podia pensar em oferecer um tratamento que abordasse o sistema danificado.
Segundo Freud, algo ocorreu para conduzir a querela mais para um dos lados: “a guerra que acabava de terminar produziu e possibilitou a observação de um número imenso de pacientes com tais acidentes. A controvérsia foi decidida a favor da hipótese funcional”. E, com isso, “os médicos foram, portanto, aconselhados a tratar os neuróticos de guerra de forma semelhante aos neuróticos dos tempos de paz”.32 Isso, contudo, não implicava tratá-los pela psicanálise ou técnicas catárticas. Pelo contrário, significou a reiteração dos tratamentos dados à “neurose de acidente”, que consistiam sobretudo em terapias sugestivas, das mais levas a outras mais agressivas, pois um dos sistemas que se julgava disfuncional eram justamente a capacidade da Volição e o julgamento moral. Sendo nesses sistemas a anomalia, era preciso fortalecer a autoridade do médico para que a sugestão tivesse mais efetividade, portanto, para combater a “obstrução da vontade” dos pacientes, bem como ajudar o médico a discernir os simuladores ou dissimuladores dos “verdadeiros doentes”, técnicas como a eletroterapia eram muito frequentes.
Encontramos um registro literário da perenidade dessa disputa, inclusive demarcando o traço geracional (entre os mais velhos defensores da perspectiva orgânica e os mais moços que apresentavam alguma abertura para concepções funcionais ou mesmo psicanalíticas) no romance de Alfred Döblin, Berlin Alexanderplazt, publicado originalmente em 1929, mas ambientado no ano anterior.
A narrativa se passava obviamente em Berlim no entreguerras, mas quando Franz Biberkopf, o protagonista, um tipo que poderia se enquadrar como lumpemproletariado, depois de muitas adversidades se encontra preso e doente, os médicos discutem seu caso nos mesmos termos da querela do pré-guerra. À beira de seu leito hospitalar, eles chegam ao consenso de que se trata de um “estado de estupor” e os tratamentos são aventados de acordo com a possível origem da doença. Sendo psicogênica “seu torpor tem a alma como ponto de partida, é um estado doentio de inibição e constrangimento que uma análise esclareceria, talvez como regressão a estágio primitivos da alma”,33 e como terapêutica técnicas catárticas são aventadas. Os médicos mais jovens se esforçam para que ele falasse e fosse possível tratá-lo por essa via. Depois do fracasso das tentativas de entrevistas costumeiras, “optam pelo método de ignorar: conversam com ele como se ouvisse tudo, e isto está certo, como se pudessem convencê-lo, desse modo, a sair do isolamento e romper a barreira”. Com isso também não produz resultados, um dele insiste para que se traga um aparelho de eletroterapia do manicômico. A finalidade, contudo, ainda era estimular a fala, pretende-se aplicar a corrente farádica na região da mandíbula, pescoço e boca.
Mas logo o médico-chefe intervém pondo fim à discussão: “vocês ainda vão acabar acreditando que a paralisia é de fundo psicológico e que as espiroquetas são eventuais piolhos do cérebro. A alma, ó moderna caixa de sentimentos! Medicina nas asas da poesia”. Fazendo então a nova geração colocar os pés no chão, ele já bufando determina e justifica o tratamento assim: “vejam, eletricidade é muito bom, bem melhor do que o palavrório. No entanto, peguem uma corrente fraca, e de nada vai adiantar. Pegue uma corrente forte e vão ver o que acontece. Foi na guerra que ficamos sabendo disso, tratamento de corrente forte, Deus do céu. Não é permitido, tortura moderna”.34 Notem bem, a voz do médico-chefe já incorpora as críticas à eletroterapia que tinham se disseminado depois da Grande Guerra. A eletricidade, porém, ainda era melhor técnica, mas já era vista, quando utilizada em excesso, como uma tortura.
Nesse caso, o médico experiente, aplica um conhecimento já consolidado em uma “sabedoria do direito à aposentadoria”. É precisamente a questão sobre a possível simulação ou dissimulação nos casos de doenças psíquicas que norteava o médico:
Sim, quando alguém fica prostrado assim em estado de torpor, com acessos de suor e vez por outra piscar os olhos, nos observa muitíssimo bem, mas não diz nada, tampouco se alimenta, isto nos parece catatonia. O senhor dissimulador ou um paciente psicogênico algum dia também irá cair em contradição. Morrer de fome, esse cara não vai chegar a esse ponto.35
A discussão do ponto de vista moderno pela boca dos médicos mais jovens prossegue. Mas importa notar que com essa referência literária, como que por acaso, somos conduzidos, novamente pela pena de Benjamin, à questão do choque da vida das grandes cidades modernas. Essa obra que explicita a “crise do romance” como forma, é sintoma também de um traço daquela mesma impossibilidade de narrar que vimos nos sobreviventes da Guerra. Benjamin comenta que o procedimento da montagem como instrumento estilístico, alude justamente às novas limitações da forma romance: “tão densa é essa montagem que o autor, esmagado por ela, mal consegue tomar a palavra”.36 Além disso, o indivíduo não está no centro da narrativa, como se esperaria num romance típico. Há um expediente épico de narração que articula os capítulos, como uma força de deus ex machina, colocando o protagonista como espécie de títere dos deuses, as forças da grande metrópole que em Berlim se formava. Por isso, no título do ensaio de Benjamin, “A crise do romance: sobre Alexanderplazt de Döblin”, ele abrevia o título do romance e destaca o local urbano da praça [Plazt]. Assim ele já indica que é a cidade a verdadeira protagonista do livro argumentando que “o livro é um monumento a Berlim, porque o narrador não se preocupou em cortejar a cidade, como sentimentalismo de quem celebra a terra natal. Ele fala a partir da cidade. Berlim é seu megafone”37. E é no uso do dialeto berlinense como procedimento estético que Benjamin apara sua leitura. Mas por que ele elege essa praça como núcleo irradiador do romance?
O que é, em Berlim, Alexanderplazt? É o lugar onde se dão, nos últimos dois anos, as transformações mais violentas, onde guindastes e escavadeiras trabalham incessantemente, onde o solo treme com o impacto dessas máquinas, como as colunas de automóveis e com o rugido dos trens subterrâneos, onde se escancaram, mais profundamente que em qualquer outro lugar, as vísceras da grande cidade.38
Centro de bruscas e “violentas transformações” na cidade, “o solo treme” na Alexanderplazt, não como consequência do impacto das bombas, mas devido ao abalo das obras que denotam o uso de novas tecnologias industriais e aos meios de transporte modernos. A praça é, em suma, um núcleo irradiador de vivências de choque.
III — Um ilustre doente imaginário
No tratamento de um neurótico de guerra particularmente significativo para o período histórico em questão temos um outro exemplo dessa controvérsia médica e de como eram os tratamentos dos neurastênicos. Para que melhor possamos ter uma imagem do que seja uma técnica sugestiva (pré-psicanalítica) e do ardil muitas vezes nela pressuposto — que apenas na figura hiperinflacionada da autoridade médica poderia fazer operar — consideremos o tratamento de um ilustre paciente.
Hitler dá entrada no hospital militar em outubro de 1918 completamente cego. Consequência de um ataque de gás, sem que as lesões físicas sustentassem outro diagnostico além de cegueira histérica, o diagnóstico39 não poderia se guiar pela hipótese orgânica. O tratamento teve como pressuposto a mencionada inibição da Vontade, mas o paciente teve a sorte ter sido submetido a técnicas particularmente violentas. O médico, ciente do empenho e dedicação do paciente nas batalhas, teria criado o seguinte expediente. Ele curiosamente começa assegurando ao paciente o exato oposto da sua hipótese diagnóstica real. Informa-lhe ter sofrido uma lesão no nervo ótico grave, mas de um tipo muito particular. Uma modalidade que ainda concedia uma fagulha de esperança. Todavia, apenas para casos muito excepcionais. Para os “grandes homens” da história, dotados de enorme força de vontade, talvez fosse possível uma reversão desse quadro de lesão. Um grande homem seria então aquele dotado de uma força de vontade tal que vence até uma lesão orgânica! Eis a sagacidade, o ardil desse médico que joga com as duas concepções etiológicas para propor uma cena terapêutica.
O drama cômico se desenrola da seguinte forma: ele então teria apagado a luz deixando apenas uma vela e saído em seguida com palavras que excitavam o nacionalismo do paciente: a Alemanha precisava de homens com esse tipo energia que torna tudo possível e que se ele fosse capaz de ver a chama, seria aquele conduziria o país à vitória.
A sugestão teria sido eficaz — até demais. Esse relato, alguns já argumentaram, explicaria então a fixação nacionalista do füher como um efeito colateral da recuperação da visão. Ocorre que, embora realmente ele tenha sido internado, não há documentos históricos que sustentem essa versão saborosa dos acontecimentos.40 O relato consta em um livro de memórias de um jornalista amigo do médico que teria tratado Hitler. Se a explicação para seu nacionalismo exacerbado não procede, o causo oferece, contudo, uma boa ambientação dos santórios para neuróticos de guerra.
Seja como for, o tratamento, ao menos parcialmente, teria a virtude de considerar a cegueira histérica como algo real, teria dado voz ao sofrimento real pressuposto nessa sintomatologia que, mesmo sem lastro fisiológico, não deixava de ter uma efetividade como disfunção. Com isso, esse causo explicita também o problema dos pacientes “simuladores”. Os médicos eram demandados justamente fazer com que esse pacientes retornassem ao front o quanto antes, portanto, discernir os desertores que fingiam sintomas era uma tarefa urgente.
Além disso, não era essa também a suspeita ou mesmo acusação feita às histéricas que ensejaram a “cura pela palavra”? Essa preocupação médica em não ser enganado já se manifestava com os que, devido a acidentes de trabalho ou nos transportes urbanos, vieram a desenvolver o que o médico alemão Herman Oppenheim denominou de “neurose traumática”.41 Os médicos eram demandados para redigir parecer para seguros de saúde ou indenização, ou mesmo para habilitar o cidadão a algum tipo de auxílio estatal por invalidez. Sublinhe-se que o termo, portanto, aludia a um sentido mecânico de trauma, quase ortopédico, que com um choque produziu uma lesão organicamente localizada com inequívocas vinculações ao acidente. Era preciso então constatar e validar o local da lesão, pois ela era a causa direta do trauma. Apenas bem posteriormente, e a passagem pelas discussões no interior da psicanálise é fundamental, ou seja, após ser incorporado ao vocabulário freudiano, é que o significado de trauma passa a ser eminentemente psíquico.
Nesses casos, assim como o Parecer de Freud também aponta acerca da medicina de guerra, a prioridade dos profissionais não era o paciente. Na guerra, o cuidado primordial foi direcionado ao esforço de guerra, ou seja, ao restabelecimento do contingente militar e também à desoneração dos custos da guerra, da responsabilização do Estado pela doença dos pacientes, afinal, eles é que inventavam ou fingiam sua condição para fugir do serviço militar. Essa compreensão, com indisfarçável viés moral, herdada dos tempos de paz, demarca bem o termo da nosografia que encontramos presente nos textos deste livro sobre as neuroses de guerra: a “histeria de demanda pensionista”, a “neurose de cobiça” com suas “representações de cobiça”. Tratava-se, afinal, de conservar um sistema incipiente de seguridade social42 que lidava com os choques e traumas dos acidentes do processo de modernização das sociedades industriais, uma rede que conectava companhias de seguro, sociedades religiosas, sanatórios e asilos, médicos especialistas para perícias e laudos, regramentos e profissionais jurídicos que funcionavam como um anteparo de manutenção da instável coesão social. Em última instância, alguns desses doentes eram vistos como aproveitadores desse sistema. Destoa disso uma tentativa de compreender teoricamente o que ocorria com o paciente que apresentasse esses sintomas tidos como uma histeria lastreada em uma demanda financeira. Um exemplo disso encontramos no texto de Abraham, que o faz por meio do conceito de narcisismo: “a pensão indeniza sempre apenas pela restrição objetivamente demonstrável da capacidade de auferir proventos, não indeniza, porém, pelo que o doente subjetivamente mais valoriza; pelo empobrecimento da sua capacidade de amor de objeto ele não pode ser indenizado.”43 Noutros termos, a demanda por indenização era, na verdade, sintoma de uma demanda mais ampla, a de ser valorizado. Uma demanda de amor que, aliás, em alguma medida é passível de ser generalizada para todos os seres humanos. É nesse sentido que também Freud afirmava já sobre a histeria, mas reiterou em seu Parecer: “todos os neuróticos são simuladores, eles simulam sem o saber e essa é sua doença.”44 Simulam, portanto, sem a deliberação consciente de fingir ou enganar, como pressupunham os médicos
Com um pouco de luz, elétrica no caso da Franz Biberkopf (protagonista de Berlin Alexanderplazt), ou luz de velas, como na cena meio bufa do nosso ilustre doente imaginário, pudemos nos ambientar melhor ao contexto histórico-social deste livro, isto é, à vida nas recém formadas cidades grandes, passando pelos inescapáveis choques em seu sentido bem literal dos encontrões nas aglomerações; pelos abalos e explosões das bombas no front ao curto-circuito45 elétrico dos que eram submetidos à eletroterapia, passando agora para o sentido já mais ampliado de um trauma psíquico.
IV — O choque e o psíquico
Examinemos agora o contexto teórico que precede e o que sucede as questões abordadas em Psicanálise das Neuroses de Guerra. Como se trata de uma obra de psicanálise, é crucial considerar o lugar ocupado pela discussão das neuroses de guerra e o impacto do próprio conflito na obra de Freud.
Se é verdade que o tratamento das neuroses de guerra concedeu mais peso à hipótese funcional, o que acabava reconhecendo também a esfera do psíquico como origem possível de distúrbios e, consequentemente, concedia igualmente à psicanálise uma maior validade científica, em especial quando se verificava que as terapêuticas por ela inspiradas tinham muito mais eficácia que os banhos, as técnicas sugestivas e a eletroterapia etc…, é verdade também que sua hipótese teórica central, assim o explicitam os esforços de Abraham e Jones, não recebe uma confirmação definitiva. A etiologia sexual das neuroses desenvolvida de acordo com uma explicação genética, referida às dinâmicas pulsionais do indivíduo ao longo do processo do desenvolvimento libidinal, se não de todo, ao menos em parte, era questionada pela via de explicação mais evidente das neuroses de guerra como sendo neuroses traumáticas, isto é, oriundas dos choques da experiência da guerra. Grosso modo, veremos que esse vocabulário das neuroses traumáticas será revisto pela psicanálise, sendo agora o trauma compreendido como um evento psíquico, não apenas um choque de algo que abala o indivíduo vindo de fora, mas um choque causado por certa equação, em cujos fatores incluem-se as capacidades de o indivíduo lidar com isso que lhe acomete de fora. Essa compreensão não era exatamente uma novidade para a psicanálise, pois fora uma lição aprendida com o tratamento da histeria. Ocorre que a guerra acaba convidando a rever os termos da equação: fica difícil não conceder mais peso à capacidade dos abalos externos impactarem o psiquismo. Isso era o oposto do que o consenso teórico na psicanálise vinha se estabelecendo. Roudinesco o afirma de forma sucinta: “eis que os freudianos, muito tempo depois de haverem abandonado a causalidade traumática na elucidação das neuroses, viam-se novamente desafiados numa escala de outra envergadura.”46
A despeito da possibilidade de argumentar que Freud nunca abandonou totalmente a causalidade traumática47, não se pode negar a existência de ao menos uma mudança significativa de ênfase quando se compara o momento inicial em que ele trabalhava com a teoria da sedução — como etiologia da histeria, com um nível de literalidade tal que o trauma era causado necessariamente por um abuso de um assediador a uma jovem — com o momento posterior que Freud passa a trabalhar como a da teoria da fantasia. O ponto central aqui é que se a causalidade é inconsciente — e no inconsciente a relação entre realidade e fantasia é, no mínimo, turva —, então o peso na equação etiológica recai sobre o sujeito na exata medida em que a fantasia funciona como espécie de mediação das possibilidades de relação com a realidade. Ficam evidentes então as sutilezas teóricas requeridas para precisar o que seja a “realidade”, bem como o que depois também será denominado como “realidade psíquica”.
Um fator complicador nesse processo é o papel da memória. Tudo se passa como se, para evocar as imagens explosivas das trincheiras, o evento inicial propiciasse um marco que funcionasse como uma mina escondida enterrada em algum recanto inaudito do inconsciente que depois seria inadvertidamente ativada. Mesmo na teoria da sedução, o trauma não se formava no momento imediato ao abuso, hipótese que havia sido fundamentada por lembranças de eventos infantis relatadas por pacientes em tratamento psicanalítico. São, portanto, dois os tempos que compõem a formação do trauma, o do evento — a cena em que ocorreria a tentativa de sedução sem a produção de excitação no indivíduo — e o da recordação — uma cena muitas vezes sem conteúdo sexual explícito, mas que reativa a excitação antes recalcada e potencializa o evento presente, carregando-o dos afetos passados que excedem as defesas do Eu. Sendo assim, mesmo que, a princípio, o evento traumático considerado seja o primeiro cronologicamente, ele o é apenas a posteriori,48 apenas depois da “bomba” ser ativada.
Quando, porém, ressaltamos o momento em que, a posteriori, a vivência é, de fato, construída, elaborada como traumática, ou seja, quando o papel da fantasia nesse processo é sublinhado, o elemento retroativo da formação do trauma salta para o primeiro plano. Dessa forma, ao invés de contar até dois (como em uma bomba-relógio: 1. momento do choque, período de incubação, 2. momento de explosão do trauma) para pensarmos a equação do trauma, passa a ser necessário contar até três49 — e como que de trás para frente: (1) o tempo posterior no presente, que deflagra o processo retroativo, o período de incubação, (2) o momento do evento do choque com aquilo que vem de fora e, (3) o “novo” evento no passado que passa a posteriori a existir como um trauma, uma reconfiguração retroativa do evento do choque externo. Há uma passagem, portanto, do choque ao traumático. Com isso, um problema que envolvia a memória e a teoria da sedução pôde ser retrabalhado. Na formulação de Renato Mezan, “como poderia ser uma recordação mais investida de energia do que a experiência da qual se origina?”.50 Noutras palavras, por que a recordação teria mais força, seria mais efetiva, do que o evento inicial? É preciso salientar a presença de um processo de mediação entre o externo e psíquico exercido pela fantasia na constituição dessa recordação. Caso contrário, por que, afinal, o trauma não seria um efeito direto do choque? Pensemos na analogia com a bomba que explode muito perto de alguém provocando o imediato rompimento da capacidade, por exemplo, do sistema auditivo. Por que o sistema psíquico não funciona da mesma forma e às vezes não se rompe imediatamente após o evento do choque? A relação entre o mundo interno e o externo não é, portanto, direta. Sendo assim, por outro lado, se formos consequentes, se dermos o efetivo peso a esse processo de mediação, o evento real perde força. Nesse sentido, não teria evento do choque chegado quase a ser teoricamente desnecessário? Nas palavras de Mezan, “se a fantasia é a produtora das cenas de sedução, o trauma real também passa a ser dispensável”.51 Ora, se é possível colocar a questão do trauma nesses termos, como pensar as vivências de guerra? Nessas ocasiões em cuja força do choque dificilmente poderia ser contestada, quando falar em fantasia poderia ser lido como uma negação da realidade efetiva, como a psicanálise se posicionou?
Em Além do princípio do prazer, texto de 1920 — dois anos depois, portanto, do V Congresso —, a questão aparece explicitamente, inclusive, na sua parte II, com uma referência direta ao livro. Freud retoma a proximidade entre os quadros da neurose traumática e da histeria no que concerne aos sintomas motores, mas ressalta uma diferença no quadro sintomático, a presença de sintomas “como numa hipocondria ou melancolia, e nas evidências de um mais amplo enfraquecimento e transtorno das funções psíquicas”.52 Ele também não tergiversa e admite que “até agora não se obteve plena compreensão nem das neuroses de guerra nem das neuroses traumáticas do período de paz”. Oferece sua contribuição à discussão via articulação com a teoria psicanalítica da angústia, caminho também traçado por Jones, como já vimos.
Pode até parecer cacoete, mas é sobre os sonhos dos neuróticos de guerra que Freud nos convida a refletir. Ele retoma a fixação que o trauma impõe ao psiquismo, tanto nas neuroses traumáticas, cujo núcleo de repetição é a cena do acidente, como também nas neuroses oriundas do front, nas quais a explicação dos sintomas motores será feita como nas histerias, pela ideia da permanência da memória traumática. É na produção onírica desses doentes que veremos a incidência do mundo externo questionando a teoria do sonho como sendo sempre a realização de um desejo inconsciente: “para que os sonhos dos neuróticos traumáticos não nos façam duvidar da tendência realizadora de desejos do sonho, resta-nos a saída de que nesse estado a função do sonho, como tantas outras coisas, também é abalada ou desviada de seus propósitos, ou teríamos que lembrar as enigmáticas tendências masoquistas do Eu.”53. No caso desses sonhos que insistem em produzir experiências desprazerosas ao reiterar as cenas traumáticas, Freud não compreende qualquer tipo de debilitação da função do sonhar. A via que ele segue é outra, a investigação do enigma dessas “tendências masoquistas” que falam de uma insistência do desprazer no psiquismo. Entre tais tendências incluem-se, além desses sonhos traumáticos, certa brincadeira infantil com um carretel, que consistia em fazê-lo desaparecer e reaparecer, puxando uma linha, produzindo, assim, deliberadamente o desprazer de afastar-se do brinquedo. Conta-se com um terceiro o enigma, agora mais do campo da clínica, consubstanciado no aparecimento das resistências: por que afinal os pacientes eventualmente se opõem a sua própria melhora? Será os desenvolvimentos teóricos dessa questão que ensejam a formulação da noção de “compulsão à repetição” de forma geral. Freud não compreende o psiquismo que opera dessa forma enigmática produzindo e reiterando experiências de desprazer esteja desfuncional. Ao reconhecer a importância desses eventos, ele se vê forçado a rever os pressupostos significativos. É a centralidade do princípio de maximização de prazer, um ponto basilar de sua primeira tópica, que está em questão. Esse sentido de desvio, de um ultrapassamento de um campo, é tão importante que já se anuncia desde o título do livro, que alude a um “além” [jenseits] do princípio do prazer.
Se, tanto no exemplo lúdico como também no clínico, a compulsão à repetição aparece sempre entremeada a alguma forma de busca por prazer, no caso dos sonhos de neuroses traumáticas o enigma seria maior. Afinal, não se trata de sonhos de castigo ou de angústia, para os quais Freud já oferecera explicação que envolvia algum tipo de realização substitutiva do desejo. Com efeito, nesses sonhos traumáticos verifica-se antes a presença de forma mais decantada de repetição. Diante disso, Freud sente-se convocado a retomar o modelo traumático: “Assim estaria reabilitada a velha e ingênua teoria do choque, em aparente contraste com uma posterior e psicologicamente mais ambiciosa, que não atribui significação etiológica ao efeito da violência mecânica, mas ao terror e à ameaça para a vida”.54 A “essência do choque” residiria em causar um “dano direto” ao aparelho psíquico, que “rompe sua proteção contra os estímulos”, impondo uma situação de terror ou pavor [Schreck], para a qual a angústia [Angst] não pôde cumprir seu papel de preparação para o perigo. Tendo esse modelo de funcionamento como base, o sonho traumático é entendido como uma forma de “lidar retrospectivamente com o estímulo, mediante o desenvolvimento da angústia, cuja omissão tornara-se a causa da neurose traumática”55 — uma maneira, portanto, de preparar-se para a possibilidade de outros eventos similares que possam atingir o psiquismo. Não se trata então de uma avaria na função do sonhar, mas de uma outra função do aparelho psíquico, independente do princípio de prazer e ainda “mais primitiva”.56 Sendo assim, talvez até se possa dizer que Freud discorre sobre algo que esteja aquém do princípio de prazer, na medida em que remete a “uma época anterior à tendência dos sonhos de realizar desejos”.57 É a essa tendência que Freud denominará pulsão de morte: “um impulso presente em todo ser vivo, tendente à restauração de um estado anterior”.58
A recepção no círculo psicanalítico desse desenvolvimento teórico não foi a mais entusiasmada. Seus colegas aguardavam um livro sobre metapsicologia e foram surpreendidos, como vimos, por essa brusca mudança de rota. A ênfase nessa tendência inercial, nessa “natureza conservadora do vivente”59 que ajuda também a compreender a agressividade, os fenômenos masoquistas e violentos, foi lida pelo primeiro biógrafo de Freud, Fritz Wittels, como um efeito da Guerra em sua obra. Segundo Peter Gay, ele não conseguiu resistir à tentação de considerar a forte presença dos temas da guerra e da agressão como reação “à sua dor daqueles anos”.60 É preciso reconhecer, de fato, foi um período muito duro na vida de Freud. Além das dificuldades econômicas impostas pela Guerra (incluindo dificuldades de prover as necessidade mais básicas de sua família), também a morte não se afastou de seu círculo íntimo. Houve a perda Sophie, sua filha mais nova, vítima de um surto de gripe que atingiu Viena no final da Guerra; o suicídio de Viktor Tausk (um ano após o V Congresso) e do amigo Anton von Freund. Era então bem verossímil pressupor esse impacto dos tempos de Guerra também em sua produção teórica. Freud, porém, fazia questão de desmentir essa leitura. Não foi a Guerra que despertou o interesse da psicanálise pela questão da agressão, visto que ela não fizera senão confirmar aquilo que os analistas sempre defenderam: que, afinal, “impulsos primitivos, selvagens e maldosos da humanidade não desapareceram em nenhum indivíduo, mas continuam a existir, embora em estado reprimido”61, apenas aguardando oportunidades, como a da Guerra, para vir à tona. Dessa forma, a reorganização conceitual das pulsões deve ser lida muito mais como desenvolvimento de questões internas à teoria. Destaca-se, nesse sentido, a necessidade de reformulação do esquema das pulsões depois de Introdução ao narcisismo (1914), que rompera com a distinção anterior entre pulsões do Eu e pulsões sexuais.
Mas isso não exclui a questão que o próprio Freud formularia retoricamente para seu público na conferência “Angústia e pulsões” de 1933. “Por que nós necessitamos de tanto tempo para nos decidirmos a reconhecer uma pulsão agressiva, por que hesitamos em incorporar à teoria fatos que saltam aos olhos e são conhecidos de todos?”62 Pensando esse “nós” como a humanidade, Freud fala em resistências contra nos concebermos como seres mais próximos aos animais. Se dirigirmos essa mesma pergunta aos desenvolvimentos teóricos da psicanálise, a resposta é um tanto mais complexa. Lembremos, por um lado, o desvio de rota já mencionado que isso implicava indo além do princípio de prazer. Por outro lado, havia outros empecilhos. Esse novo caminho poderia parecer um retorno a questões aparentemente já superadas, como o entrevero com Adler e Jung acerca do papel central da sexualidade na teoria das pulsões, bem como à apresentação, nas reuniões das Quartas, de Sabina Spielrein, a qual depois seria publicada como “A destruição como causa do vir-a-ser” (1912).
A agressividade, lembremos, seria também o aspecto sobre o qual Freud chamaria a atenção em Psicologia das massas e análise do Eu, publicado em 1921, quando evoca um dos elementos da explicação de Simmel para as neuroses de guerra e acrescenta: “é lícito afirmar que o tratamento sem amor que o homem comum recebia dos superiores estava entre os maiores motivos da doença”.63 Freud critica aqui o exército prussiano, que se organizava enfaticamente pela disciplina hierárquica e “negligenciava do fator libidinal” que pode funcionar como elemento de coesão ao grupo. Em contraposição aos exércitos organizados por grandes comandantes — os quais operavam como figuras de identificação para os soldados —, os exércitos racionalizados dos alemães ofereciam um ambiente muito mais propenso para formação das neuroses: “as neuroses de guerra, que desagregaram o Exército alemão, foram reconhecidas, em grande parte, como um protesto do indivíduo contra o papel a ele imposto no Exército”.64 Deve-se notar, então, que o exército prussiano funciona como um exemplo negativo da formação desses dois tipos de “massas artificiais”, a Igreja e o exército. Esse pode ser um exemplo significativo daquilo que se afirmou no começo, o caráter dialógico da construção teórica psicanalítica. É verdade, Freud não estabelece uma longa discussão com Simmel, mas ele é citado e o tema das neuroses de guerra aparece explicitamente. Não é evidente, contudo, o peso de Simmel na argumentação de Freud, mas fica muito mais clara a função do líder como objeto externo passível de identificação quando se considera a vivência dos soldados que vieram a desenvolver neurose de guerra.
Isso posto, podemos compreender que a consolidação do tema da agressividade foi concomitante não apenas à experiência da Guerra, mas também à retomada do modelo traumático para a etiologia das neuroses, havendo então não somente uma sobreposição temporal, mas um entrelaçamento conceitual. Diante da força inegável do choque externo direto da guerra como fator traumático, Freud reposiciona sua teoria. Assim como o “princípio de realidade” torna inescapáveis ao Eu os testes constantes com o mundo externo em processos de “interação entre as vidas psíquicas privada e pública”,65 tudo se passa como se a Guerra tivesse funcionado como a consolidação de um “princípio de realidade” que impusesse à psicanálise uma reorganização teórica em direção ao mundo exterior, ao social. Nas palavras de Louise Hoffman: “nas décadas seguintes, a psicanálise passou por uma revolução. (…) A ênfase teórica começou a mudar de um foco nos impulsos libidinais para o reconhecimento das funções adaptativas e criativas do ego, do indivíduo para os grupos sociais”.66
Retomando o processo de formação do trauma, tendo em vista particularmente sua temporalidade, tudo se passa como se a teoria do trauma também pudesse de certa forma ser compreendida em três tempos que que modificam pela Guerra. Se a Guerra operar como princípio de realidade, ela age como (1) disparador da retomada, revisão e elaboração da própria (2) teoria do choque, isto é, esse resgate da efetividade do mundo externo como potencial etiológico que tinha sido posta em segundo plano, como que em estado de latência, diante da formalização de uma realidade psíquica. E, por fim, (3) o momento de reacomodação conceitual.
Nessa nova elaboração mais aberta ao mundo exterior, agora pensando o movimento psicanalítico para além de Freud, destacam-se sobretudo Sándor Ferenczi e Otto Rank. Ambos, inclusive, escreveriam a quatro mãos Metas do desenvolvimento da psicanálise,67 cuja primeira edição data de 1924, em que discutem certa rigidez das regras da condução do tratamento. Mas, de maneira enfática, Rank se ocuparia da questão que nos concerne em O trauma do nascimento68 (1924), cujo tema é o significado simbólico desse evento que passa a ser lido como uma fonte originária de toda experiência de angústia. Para além das críticas que imediatamente este livro recebeu, inclusive do próprio Freud, é preciso reconhecer que a ênfase em aspectos pré-verbais da relação mãe-bebê antecipa muitas discussões mais contemporâneas da psicanálise (pensemos sobretudo na clínica de Winnicott, que aliás foi recrutado e serviu na Primeira Guerra como cirurgião). Sobre os desenvolvimentos dessa questão na obra de Ferenczi, percebe-se uma presença generalizada, mas, em particular, nas ideias que vieram a se consolidar em “Confusão de línguas entre os adultos e a criança” (1933), no qual se defende o trauma como oriundo de um desencontro, um desequilíbrio entre os idiomas infantil da ternura e adulto da paixão. Para Fereczi, a formação do trauma ocorreria sobretudo por não haver um adulto a legitimar a vivência infantil, reconhecendo o despreparo da criança diante daquilo que o meio lhe impôs ou até mesmo que viesse a “desmentir” esse choque.
V — A peristência do trauma
Começamos apresentando alguns aspectos da importância histórica do V Congresso e a relevância do livro como consolidação deste evento. Ampliamos o foco para buscar desenhar os contornos históricos da época e adentramos um pouco nos meandros teóricos que contextualizam o tema da neurose de guerra, em última instância, a questão do trauma. Detenhamo-nos, por fim, ainda que mais alusivamente, na tarefa de apontar alguns sentidos do que poderia ser compreendido como a questão da atualidade, e isso em diferentes sentidos. Qual seria a atualidade do tema da neurose de guerra e, por consequência, do trauma?
Antes de tudo, é preciso nos indagarmos sobre o que aconteceu com essa categoria nosográfica? À primeira vista, pode parecer que o quadro clínico tenha desaparecido, que ninguém mais adoeça de neurose de guerra. É bem verdade que, para a psiquiatria contemporânea, a própria categoria de “neurose” também caiu em desuso. Mas não significa que o complexo de sintomas descrito não tenha mais ocorrido, tanto em guerras quanto em tempos de paz.
No final da década de 1970, dois eventos se deram concomitantemente, a saber, o fim da Guerra do Vietnã (novembro de 1955 a abril 1975) e a publicação do DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders — 1977). Nesse mesmo período, as novas tecnologias psicotrópicas tiveram um grande salto de desenvolvimento — o Clonazepan, por exemplo, uma das drogas mais vendidas hoje para ansiedade, começou a ser comercializado em 1975 — e impulsionaram significativas mudanças nesse Manual de classificação de doenças psiquiátricas. A categoria de “neurose” foi retirada nessa edição, e isso foi visto como marco de uma mudança de diretrizes, um considerável afastamento da concepção psicodinâmica, que tinha alguma abertura para a psicanálise, e a adoção de uma via tida como menos subjetiva, menos permeável a variações segundo profissionais.
Para esse propósito a “shell shock” veio a ser descrita primeiro como “síndrome pós-Vietnã” e depois como síndrome do estresse pós-traumático (post-traumatic stress disorder — PTSD). Nos anos 1980 surge então uma nova concepção de trauma e representou uma grande mudança em comparação com a neurose traumática. Embora as características clínicas tivessem semelhanças, os significados políticos e sociológicos do trauma eram radicalmente diferentes. Houve muito mais uma “mutação de mentalidade” que carregava consigo uma “nova perspectiva moral nos estudos de trauma do que de uma descoberta científica”.69 Segundo Rechtamn, “pela primeira vez, um rótulo psiquiátrico não é visto como uma condição moral. Nada anterior ou durante o evento pode levantar suspeitas morais e não há como culpar as vítimas”.70 Afinal, elas sofreriam de algo com evidente causalidade externa, sendo, assim, o único diagnóstico que pacientes podem até mesmo desejar.
Ressaltemos a radical inversão que isso representa quando evocamos o estigma que a neurose de guerra ou mesmo a histeria carregavam. Como já vimos, seus portadores padeceriam de falta de fibra moral71 e, por isso, simulavam seus sintomas, buscavam fugir de afazeres domésticos ou bélicos. As mulheres histéricas eram tidas como aquelas que recusavam o papel de gênero na sociedade, o lugar de filha submissa e posteriormente o da esposa. Os neuróticos de guerra, por sua vez, eram vistos como covardes, desertores em potencial ou antinacionalistas convictos. Contra esses doentes perniciosos o médico precisava desenvolver uma muito aguda capacidade hermenêutica para discernir os simuladores, os dissimuladores dos doentes verdadeiros. Mesmo diante dos horrores da guerra de trincheira, era preciso ser forte, másculo e colocar sua virilidade a serviço da pátria. Quando não eram explicitamente identificáveis as origens fisiológicas do trauma, ou seja, quando se abriam as portas para qualquer tipo concepção psicogênica da doença, abriam-se também, aos olhos do senso comum médico de então, espaços para o arbitrário e para o engodo. Diante da ainda incipente conceitualização do psíquico, num quase vácuo teórico, estamos em um terreno livre para a disseminação do uso de categorias exclusivamente morais, como preguiça, falta de vontade ou fibra moral etc. Rechtman aponta que, mesmo na psiquiatria contemporânea, o juízo moral não está ausente. Há sempre uma moral pressuposta nas práticas científicas, ela pode aparecer forma mais explícita ou agir apenas nos subterrâneos epistemológicos. Tendo a Guerra do Vietnam como um marco histórico, ele indica que houve uma transformação dessa moral pressuposta nas práticas científicas. Nesse meio tempo, entre as guerras de trincheiras da Europa e a guerra de guerrilhas do Vientam, deu-se uma acomodação da noção do psíquico, a aceitação de ao menos alguns tipos de gênese psíquica inclusive para doenças com sintomas físicos, e de forma mais ainda mais significativa, certa disseminação da noção psicológica de um trauma.
Como consequência, as vítimas não são mais culpadas, a responsabilidade pela origem da doença é creditada aos horrores da guerra. A exigência de cuidados médicos e amparo social aos veteranos de guerra é obviamente mais antiga que a Guerra do Vietnam. A novidade é a aceitação social dos danos psíquicos que a guerra produz. A legitimidade social para esse tipo de consequência das guerras fica ainda mais evidente quando evocamos, por exemplo, a produção fílmica do período, que retrata a dificuldade do retorno e da inserção social dos ex-combatentes, e isso em filmes os mais populares como Rambo (1982, mas baseado no romance First Blood, de 1972, escrito por David Morrell), ou mais elaborados como Taxi Driver (1976). Também contribuem para a disseminação social da concepção de trauma psíquico a maneira como a sociedade lidou com as profundas cicatrizes históricas, culturais e psicológicas dos sobreviventes dos campos de concentração da Segunda Guerra, bem como o contexto da luta por direitos humanos (movimento negro, feminismo, gay, lutas anticoloniais etc) dos anos 1060, que depois muitas vezes se somavam ao pacifismo ou críticos da Guerra do Vietnam.
Diante disso, pode-se argumentar que houve inclusive uma inversão da prática da suspeita. Uma dupla inversão, aliás. Antes de tudo, não mais se duvida da condição de traumatizado. Mas há também uma expansão dessa condição. A descrição do DSM-III, apesar da sua busca por acurácia na descrição do que pode conduzir a um trauma, não discriminava, contudo, a “direção da violência”.72 O diagnóstico de PTSD pode ser conferido tanto à vítima de violência quanto ao agente. Nas categorias que a “Administração dos Veteranos do Vietnã” criou, é curioso, entre os sete tipos de traumatismos possíveis, “apenas um indica que o próprio paciente foi vítima de violência”.73 Segundo Allan Young, a vítima se torna um “agressor autotraumatizado pela violência extrema que ele mesmo infligiu de formas moralmente proibidas, tais como torturar prisioneiros, mutilar os mortos e matar civis e compatriotas americanos”.74 A situação é tal que permite o seguinte comentário irônico: tudo se passa “como se os antigos kapos dos campos de concentração pudessem pedir indenização por se terem envolvido em um sistema que os transformou em assassinos!”75
Ironia ainda maior reside na sequência da história do PTSD. Ainda segundo Rechtman, nos anos 1990, agora, portanto, já tratando das consequências da Guerra do Golfo, inovações teóricas nessa nosografia “reintroduziram ideias já presentes na antiga concepção de neurose traumática, mas com um significado moral muito distinto”.76 Nos anos 1980, a preocupação era tentar garantir ao máximo que sob as vítimas não pairassem suspeitas. Era preciso, portanto, defender que a etiologia do trauma fosse exclusivamente o acontecimento. Ocorre que os dados não sustentavam essa hipótese plenamente. Desde o argumento mais básico de que nem todos que passavam pelo mesmo evento tido como traumatizante realmente vinham a desenvolver PTSD, até o fato de haver uma especificidade muito grande na sintomatologia conforme o indivíduo. Então, nos anos 1990, ao invés de desistir dessa concepção de que o tal distúrbio ocorreria pós-trauma, entendido como um evento que ultrapassava as capacidades humanas, mantiveram essa mesma noção, mas introduziram três fatores que acabam relativizando a força da tese e recuando na definição, a saber, “fatores de risco, vulnerabilidade e resiliência”,77 os quais indicam predisposição ou capacidade de resistência. Ora, mais ou menos como vimos na argumentação de Abraham, que fala de uma labilidade na história da sexualidade do paciente atuando com fator predisponente.
Vemos com isso o quanto essa categoria pôde ser mobilizada para tentar compreender um mesmo problema com o qual a psicanálise já se deteve longamente e que pode ser sintetizado na seguinte pergunta: qual a relação entre o psiquismo e o seu exterior? Qual a causa de uma doença psíquica?
Recapitulando, a “neurose de guerra” era um subtipo da nosografia da “neurose traumática”. Antes de Freud, ela era aplicada para classificar efeitos colaterais psicológicos de um trauma entendido em um sentido mecânico,78 por exemplo, acidentes de trem ou de trabalho, eventos que sociologicamente já foram denominados de “custos ocultos do processo de modernização”.79 “Neurose”, portanto, não tinha o sentido de uma condição de origem psicológica. A obra de Freud e a discussão que encontramos no Psicanálise das neuroses de guerra contribui para a compreensão dessa condição por um enfoque psíquico. Pode-se dizer que a ideia de neurose surge como uma designação genérica para qualquer “doença dos nervos”, incluindo as de origem orgânica ou mecânica, e se transforma em uma outra noção com especificidade psicológica. Dessa forma, a própria noção de trauma se amplia e pode ser considerada não apenas como impacto de uma materialidade exterior, mas também como um evento psíquico. A psicanálise, com a noção de fantasia e o mergulho naquilo que já se chamou de “psicologia profunda”, desenvolve exatamente esse vetor psíquico da equação etiológica. As vivências das guerras, contudo, impõem a reavaliação da força do evento exterior como fator etiológico. Se as marcas dessa pressão externa, como vimos, se fazem presente na psicanálise, no caso da psiquiatria mais contemporânea, porém, a ênfase na esfera do psíquico é muito reduzida, e a “síndrome” passa a ser compreendida como uma consequência muito mais direta do “stress” decorrente do evento traumático e menos da maneira como o indivíduo pôde reagir a ele.
Seja como for, é fato que a categoria de “trauma”, ainda que com muitas nuances às vezes até contraditórias, foi sendo largamente disseminada. Fassin e Rechtman começam seu O império do trauma: investigação sobre a condição da vítima, de 2009, usando como exemplo a enorme ocorrência desse diagnóstico depois dos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos. Eles não tentam defender a inexistência do trauma ou mesmo do diagnóstico de PTSD. Também não buscam denunciar ou invalidar o saber psiquiátrico, mas antes investigam como o discurso do trauma se tornou tão central na comunicação do sofrimento, quais as consequências políticas e morais na produção de uma condição moderna de vítima. Em suma, “como a noção de trauma psicológico se impôs na sociedade de forma tal que se tornou uma realidade central da violência”80? Nesse sentido, nossa época em que o trauma impera é, como argumentam Caroline Eliacheff e Daniel Larivière, o tempo das vítimas. Um tempo que aliás parece apenas se acirrar, a julgar pela atual guerra entre Rússia e Ucrânia, que reativa inclusive o retorno do recalcado conflito nuclear.
Com esse panorama em vista, como não pensar também no estado de pandemia? Muitos já compararam as consequências desse acontecimento, visto até como o real marco81 de início do século XXI, com as de uma guerra, inclusive no que concerne a seu potencial traumático. Birman buscou pensar a pandemia precisamente como catástrofe em suas mais diversas dimensões e destacou ao final uma “cartografia sintomática”,82 em que mapeava um quadro geral do que poderia ser uma espécie de neurose de guerra pandêmica. Sete seriam os tipos mais gerais de sintomas: como manifestações antecipatórias da angústia real diante da morte; ansiedade, hipocondria, depressão; como meios de evitar esse encontro: rituais obsessivos, formas diversas de adição; exacerbação de violência e o bloqueio do trabalho do luto.
Esse bloqueio do luto precisa ser pensado justamente como um dos aspectos que a psicanálise chamou atenção no tratamento da neurose de guerra, o reconhecimento do sofrimento como algo real, como algo que a sociedade não deveria atuar “desmentindo”,83 para evocar uma terminologia ferencziana posterior. Deveria antes atuar possibilitando as vias de um luto social, cujo cuidado mínimo teria sido a possibilidade de enterrar os mortos. Isso tem peso particular num país como o Brasil, cuja capacidade de aprimorar os mecanismos psíquicos de defesa para não entrar em contato com a violência e com o sofrimento não deixa nunca de nos surpreender. Mas não deveria. Afinal, em épocas “pré-míticas” ou “messiânicas”, com um país desenhado a partir de estatísticas de 2012, já se podia afirmar que “as mortes em massa por homicídios no Brasil acomodaram-se ao funcionamento cotidiano do regime democrático em voga. Contudo, formam um painel social tão horripilante que ultrapassa, em termos de média anual, o somatório de mortes dos doze maiores conflitos armados no mundo”.84 Noutros termos, uma situação tal que dificulta a possibilidade de dar forma à vivência dessa guerra permanente, de transformar o trauma em experiência socialmente compartilhada, capaz de ensejar os necessários projetos de transformação política e social.