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A antropologia dialética de Fernando Haddad e seus problemas

Resenha de O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética (2022), de Fernando Haddad

Once pesos latinos, Gabriel Castillo

Constitui uma autêntica façanha intelectual de Fernando Haddad ter escrito essa obra em um momento de perigo — na esteira da eleição que elegeu nas urnas um mentecapto em lugar do humanista capaz de tratar em profundidade de temas da filosofia, da economia, da ciência política, da linguística e da antropologia, tendo em seu currículo impressionantes realizações no campo educacional e também, e não menos, no plano da economia aplicada.

A façanha consiste no fato de que Haddad não escreveu uma obra de justificação pelo evento conjuntural que levou ao poder o mentecapto, e sim uma obra für ewig — expressão usada por Gramsci descrever seus trabalhos do cárcere como mensagens dirigidas ao futuro, à distância da conjuntura, e voltados para as grandes questões que poderiam explicar a derrota da esquerda italiana face ao fascismo. O livro de Haddad foi também escrito nesse espírito. O fio inicial foi uma reflexão sobre o desenvolvimento, mas o resultado final foi uma crítica à identificação de progresso com evolução biológica, e uma defesa da dialética como atitude intelectual das ciências humanas. Talvez a questão que Haddad aborda seja no fundo a mesma que foi enfrentada por Gramsci face à ascensão do fascismo na Itália. Ou seja: como foi possível o fascismo bolsonarista — versão abastardada da extrema-direita com a cumplicidade cínica dos interesses financeiros representados pelo mercado — ganhar o apoio de massas aglutinadas pelas redes digitais, equivalentes modernos dos fascismos.

Para responder a essa questão, Haddad coloca-se no plano “für ewig” — situa a resposta como grande questão “para sempre”, isto é: o significado e o lugar da dialética no pensamento político-social contemporâneo. É como se a questão fosse: como é possível haver conflitos entre comunidades de pensamento inconciliáveis no mundo contemporâneo de comunicação compartilhada, dada a existência de um mundo de racionalidade compartilhável?


A resposta de Haddad parte da premissa de que a dinâmica de comunidades humanas se explica pelo mecanismo de emergência de diferenças que levam a contradições — e de revoluição como resultado de contradições. Esse seria o processo por meio do qual grupos humanos ao mesmo tempo se modificam e se transformam. Para Haddad, falta contudo às ciências humanas e à antropologia em particular uma linguagem dialética com um formato triádico para explicar os conflitos humanos que se sobrepõem à capacidade compartilhada para a racionalidade.

Cabe, contudo, perguntar sobre o que é essa dialética proposta por Haddad, e qual é o papel da contradição nela. A questão fundamental é: trata-se de dialética como característica da linguagem — isto é, a possibilidade de admitir proposições como A e não-A? — ou trata-se de uma ontologia em que entes A se convertem em entes não-A, resultando em entes que subsumem não-A? Trata-se de dialética como epistemologia ou como ontologia?

Haddad não aborda essa questão de fundo, assim como não aborda a questão da origem da diferença que inicia a sequência triádica de sua dialética. No entanto, ele a considera em outro plano, isto é, ao opor o conhecimento da natureza ao conhecimento da sociedade como domínios separados. Isto porque Haddad trata axiomaticamente a natureza física, a natureza biológica e a cultura como domínios ontológica e epistemologicamente díspares, onde a dialética somente se aplicaria ao domínio humano. Essa restrição reafirma a separação feita pelo neokantismo entre ciências empíricas e matemáticas de um lado e o domínio das ciências sociais e humanas de outro, herança da separação kantiana a entre os fundamentos das ciências matemáticas e físicas (Crítica da razão pura) e os fundamentos das ciências humanas (Crítica da razão prática), deixando para uma terceira crítica a faculdade de julgar que trata da apreciação estética de obras de arte e de entes orgânicos — ou seja, de entes subordinados em sua percepção à relação entre parte e todo, ou ainda, à sua configuração, e finalmente, à sua estrutura. Essa transição das críticas kantianas sugere desde já um movimento que vai de uma oposição para um terceiro termo irredutível aos anteriores, mas que os subsume na medida em que a capacidade de julgar está pressuposta tanto nas ciências da natureza como nas ciências da humanidade.

A dialética de Haddad se aplica à compreensão de antagonismos culturais entre grupos humanos, entendidos como amplificação de diferenças que levam à exclusão recíproca. Essa visão processual pode ser comparada com a teoria de Max Weber sobre a gênese de comunidades étnicas, retomada por Max Gluckman, antropólogo inglês na esteira de Max Weber e de Marx, os mesmos que inspiraram Haddad ao lado de Habermas. Max Gluckman descreveu em artigo clássico uma situação social na África do Sul na forma de um drama social (na versão de seu discípulo Victor Turner) cujos participantes representavam as classes sociais e os agentes coloniais britânicos, bem como os coletivos tribais africanos.

A análise de Gluckman concluía que as tensões entre esses agentes — representantes de posições estruturais — levariam à uma crise estrutural, ou seja, ao colapso do sistema colonial. Tratava-se do conflito entre o poder colonial britânico e organizações sociais da África do Sul, fraturada entre grupos tribais, coalizões religiosas e cargos políticos — em uma situação de crise ilustrada pelo encontro entre representantes do poder religioso e de poderes tribais em uma situação pública. Essa é uma situação em que Max Gluckman utilizou os recursos de Weber e de Marx, a saber: caracterizou a situação como conflito entre duas estruturas antagônicas, estruturas de poder locais e a estrutura do poder colonial, que levaria a uma crise revolucionária no futuro.

Gluckman via o conflito estrutural entre agentes africanos e o poder colonial como insolúvel por processos culturais — tratava-se do conflito entre o sistema colonialista do apartheid e as estruturas locais de poder, economia e cultura. Menciono essa análise porque Gluckman não precisou utilizar um esquema nominalmente dialético para tratar do conflito estrutural sobreposto à justaposição de culturas para antecipar a crise do sistema de apartheid na África do Sul, mostrando assim que a antropologia dispõe de instrumentos para tratar de mudanças revolucionárias.

O primeiro mérito do livro de Fernando Haddad é o alcance da rede epistemológica e ontológica lançada por ele no oceano das correntes filosóficas, científicas e políticas de sua época. As malhas dessa rede visam capturar conceitos da biologia, da antropologia e da linguística. O resultado da rede é oferecer a necessidade de visões de mudança nesses domínios e, em particular, a necessidade de compreender a emergência de grupos culturais antagônicos que proliferam na cena contemporânea.

Para isso, Haddad oferece a dialética. Mas o que é essa dialética proposta? Pois há diferentes modos de pensar dialética. Primeiro, dialética é um modo de debate real ou imaginado no qual, a partir de uma afirmação inicial, chega-se a uma afirmação contraditória — com o que se refuta a hipótese inicial por redução ao absurdo. Nesse sentido, dialética é um modo de argumentação exibido em Platão para criticar conceitos e analisar seus fundamentos. Em termos modernos, trata-se de dialética como uso da razão para questionar seus fundamentos. Kant utilizará essa acepção para mostrar que a pretensão de uma ciência ontológica leva inevitavelmente a contradições dialéticas insolúveis.

Outra acepção é aquela em que a dialética é localizada no real — é a noção hegeliana segundo a qual o mundo se move por contradições e superações de contradições. Essa acepção de dialética da natureza é vista por Haddad como necessária no plano da realidade social. Aqui estamos no plano da visão de Habermas: a comunicação no espaço público permite o confronto de afirmações antagônicas e a reconciliação dos pressupostos dos partidários dessas afirmações no decurso do diálogo ao longo do qual os adversários, embora sem renunciarem às suas teses, são capazes de compreender os pressupostos dos adversários. O problema de Haddad é: por que é que essa compreensão mútua não se realiza na cena contemporânea?


A resposta de Haddad é que sociedades divergem em grupos separados por especiação cultural — grupos que deixam de se comunicar reciprocamente, vendo-se finalmente como antagônicos e como entes excluídos reciprocamente.

Ganha sentido aqui o papel da linguística humboldtiana de Chomsky, porque ela afirma, ao contrário, a comunicabilidade recíproca entre todas as línguas humanas, o que aparentemente contradiz a existência de exclusão cultural entre grupos humanos. Como antropólogo, gostaria de ilustrar a tese de Humboldt, seguida pelo linguista Sapir e por Chomsky. Começo com uma passagem em que Haddad formula a Chomsky a seguinte pergunta: “É possível explicar a Teoria da Relatividade de Einstein para um povo isolado? É possível compreender sua visão de mundo?”. A resposta foi inequívoca: “Não há nada na estrutura psíquica de um ser humano qualquer que o impeça de entender perfeitamente, nos seus próprios termos, a Teoria da Relatividade ou a cosmologia de um povo isolado”, afirmou o linguista.

Não posso aqui deixar de mencionar um ensaio que publiquei sobre a repercussão da teoria da relatividade na antropologia. Nele relatei um diálogo com um seringueiro na floresta em que ele manifestava sua admiração pelo homem que fabricou o primeiro relógio — porque ele soube coordenar o ponteiro do relógio no nascer do sol com o ponteiro do relógio no pôr do sol. Com isso, afirmava saber qual era a hora na sua casa — porque o tempo marcado no seu relógio coincidia com o tempo marcado no relógio de sua casa, sendo ambos os relógios sincronizados com o movimento do sol. Com isso, a visão do tempo do seringueiro era identificada à posição dos ponteiros do relógio, sincronizados pelo sinal luminoso emitido pelo sol. Para o filósofo Lévy-Bruhl, isso seria exemplo de pensamento pré-lógico e pré-científico, porque indicaria ignorância sobre o a existência de tempo abstrato independente de relógios ou do sol, ou seja, do tempo newtoniano.

Mas para quem lê o artigo inaugural da teoria da relatividade de Albert Einstein em 1905, a primeira definição é: tempo local é a posição do ponteiro do relógio nesse local. A concepção de tempo do seringueiro é assim justificada por Einstein. A segunda definição diz como sincronizar relógios em locais diferentes, e a resposta é: usando sinais luminosos entre os relógios — como aqueles emitidos pelo sol.1 É portanto possível dizer que, como Chomsky, “não há nada na estrutura psíquica de um ser humano qualquer que o impeça de entender perfeitamente, nos seus próprios termos, a Teoria da Relatividade ou a cosmologia de um povo isolado”. E com isso Chomsky devolvia a questão para os antropólogos — a saber, o desafio de entender a “cosmologia de povos isolados” como equivalente à tarefa posta a povos isolados de entender a cosmologia relativística.

Diz Haddad: “A proposta deste livro é fazer uma crítica imanente ao mainstream da biologia, da antropologia e da linguística”. É muita ambição, justificada pelo programa seguinte:

Parto da ideia de que os problemas com os quais nos defrontamos hoje perpassam muitas questões — ecológicas, nacionais, étnico-raciais, de gênero, de classe ou de grupos específicos — que devem ser consideradas na sua especificidade, sem perder de vista, contudo, a ideia de recuperar uma visão ampla e global de emancipação humana.

E a crítica ao “mainstream” é focada pela reabilitação da dialética:

A crítica ao mainstream parte do seguinte pressuposto: o de que a contradição é uma dimensão específica do humano, sem ela, incorre-se em uma pseudociência, que no mais das vezes só serve para justificar concepções ideológicas de feição positivista.

Voltemos à pergunta: o que é contradição para Haddad? Para Haddad, a possibilidade de contradição está na existência de símbolos. Contradição é, portanto, algo que se dá no plano da cultura — e não da natureza. Há contradição porque há cultura e capacidade linguística, e esse é o lugar da contradição. O exemplo disso é o que Haddad chama de “alienização’ — criação de uma “espécie culturalmente antagônica”. Esse processo é o que Max Weber chamou de constituição de comunidades étnicas ou nacionais. A “contradição no lugar das culturas entre si” é precisamente a teoria de Max Weber sobre a emergência de “comunidades étnicas” e de comunidades nacionais. Continuamos assim a buscar o que é contradição e diferença no pensamento de Haddad.

Sobre a antropologia, começo por assinalar que, ao buscar reabilitar a dialética no pensamento social e na antropologia em particular, Fernando Haddad se opõe às linhagens pós-modernas da antropologia que tratam a dialética como herança maldita do histamat — sigla para o “materialismo histórico” dos manuais estalinistas de filosofia, opondo-se ao mesmo tempo às filosofias anti-dialéticas como a ontologia da diferença de Deleuze e à sociologia de diferenças de Gabriel Tarde.

Lembremos que Haddad alinha sua posição à visão de Habermas e do antropólogo Marshall Sahlins que criticam uma ontologia social baseada no trabalho, isto é, em interações entre agentes humanos mediatizadas pela interação técnica com a natureza, visão na qual haveria uma contradição entre humano e não-humano. Mas Haddad recusa essa visão, porque para ele, assim como para Habermas, a antropologia deveria se ater a interações entre humanos mediatizadas pela linguagem. Segundo Haddad, “Sahlins sente-se compelido portanto a afirmar que Marx foi um teórico social pré-simbólico”, porque Marx não teria incorporado em sua ciência da sociedade uma teoria da linguagem. Mas isso significaria que a “contradição” dialética existiria no domínio da linguagem, sendo um fenômeno simbólico? Nesse caso, seria um fenômeno simbólico e não ontológico? É a resposta de Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt, que delimitou como domínio da dialética a esfera da comunicação humana através da linguagem — visão oposta à ontologia social de Gyorg Lúckacs e de Arthur Giannotti. Ora, situar a dialética na esfera da ação comunicativa, excluindo dela a esfera do trabalho, introduz um problema antropológico: É possível a comunicação entre línguas, culturas e mundos diferentes?

O capítulo dedicado à linguística, que foi aparentemente o disparador para esse livro, é o pano de fundo para responder a essa pergunta. Segundo Chomsky e Humboldt, todos os povos da humanidade compartilham uma mesma capacidade de pensamento, e todas as linguagens humanas têm como substrato uma “gramática universal” — e, para alguns seguidores de Chomsky, uma “semântica universal”, base potencial para entendimento comum entre falantes de línguas radicalmente diferentes na superfície.

Haddad refere-se a Noam Chomsky como “o mais importante linguista do mundo”. Quanto a mim, encontrei na livraria Cultura, então sediada na rua Maria Antônia, por volta de 1970, o pequeno livro intitulado Syntatic Structures, causador de profundo impacto em meu pensamento e de admiração nunca alterada desde então. Pois tratava-se de uma ponte entre a matemática e a cultura — entre a gramática universal de Emil Post e de Alan Turing formulada matematicamente e uma similar gramática universal subjacente a todas as línguas humanas. O que dizia o livro Syntatic Structures de Chomsky era: o entendimento humano entre linguagens vastamente diferentes supõe uma capacidade humana inata — uma máquina que recebe insumos verbais e os converte em estruturas sintáticas e em interpretações semânticas. Essa hipótese supõe uma capacidade humana — no sentido kantiano — para converter percepções linguísticas em uma estrutura preexistente de conexões categoriais: sujeito e objeto por exemplo, comuns a todas as línguas humanas.

Mas isso não basta para garantir a inteligibilidade recíproca entre culturas. Muito pelo contrário: porque, conforme a antropologia, sistemas culturais realmente existentes constituem universos semânticos e ontológicos radicalmente divergentes. Isso significa que a noção de uma semântica universal é um pressuposto que está longe de se realizar em acordos comunicativos particulares porque além de línguas diferentes existem culturas diferentes — fronteiras que separam ontologias e lógicas que obscurecem qualquer substrato comum de significação. Não há equivalência entre língua e cultura.

Como Humboldt e Sapir apontaram, há línguas em que a estrutura semântica apoiada na relação entre sujeito e objeto, entre substantivo e verbo, não vale. Para usar um exemplo de Sapir, a afirmação de que “a pedra cai” e de que “uma pedra cai” é expressa em latim e em russo como “pedra cai” (sem a distinção entre “a pedra” e “uma pedra”); e pode ser expressa como “cair pedra” em certas línguas. Para o linguista amador Whorf, disso resultaria a impossibilidade de tradução entre linguagens. Por outro lado, Sapir afirmou que, enquanto a diferença entre estruturas gramaticais-semânticas implicava a diferença em conteúdo semântico, seria sempre possível conservar a equivalência conceitual com os recursos de cada língua. Em suma, segundo Sapir, ecoando Wilhelm Humboldt e Chomsky, todas as línguas humanas são traduzíveis entre si — com perda de conotações mas preservando conceitos.

A tese de Humboldt-Sapir-Chomsky, contrariamente à tese espúria de Whorf, afirma que é possível comunicação entre exegetas filiados à ontologia de Tomás de Aquino, intelectuais islâmicos, porta-vozes evangélicos, teóricos budistas, cientistas climáticos, e inumeráveis povos originários. Contudo, essa visão não garante a convergência entre essas ontologias — apenas a possibilidade de compreensão mútua entre seus pressupostos. A visão generosa de Humboldt-Chomsky, embora fornecendo um fundamento teórico para a possibilidade de uma ciência antropológica, ao lado da tese de Jean-Jacques Rousseau que postulava o compartilhamento do sentimento de compaixão entre homens e animais, não soluciona o problema empírico da crescente incomunicabilidade entre bolhas gramaticais, ideológicas e metafísicas que caracterizam o presente estado do mundo. Ou seja: entre linguagem e realidade há uma interface sobreposta que são ontologias e lógicas. Línguas, estruturalmente similares ou divergentes, podem estar associadas a ontologias e lógicas divergentes e mesmo antagônicas.

Como solução para o problema da divergência entre lógicas e ontologias em um espaço público baseado em uma mesma comunidade linguística, o jovem Habermas propôs uma visão da dialética como o efeito da comunicação privada entre amantes que lutam pelo reconhecimento mútuo, e ao fazê-lo desfazem as barreiras constituídas por seus pressupostos culturais e sociais. O Habermas maduro transportou essa “luta pelo reconhecimento” motivada pelo amor para a esfera pública, onde se enfrentam diferentes “jogos de linguagem” que pela adesão a um pacto de reconhecimento mútuo poderiam chegar a um entendimento.

A luta pelo reconhecimento mútuo não implica para Habermas ou para seu discípulo Honneker a identificação em uma única linguagem e um único mundo, e sim a possibilidade de compreensão recíproca dos “jogos de linguagem” dos adversários — e de sua legitimidade. Isso é possível? A teoria da justiça do filósofo e jurista John Rawls propõe em sua Teoria da justiça uma solução para esse problema. Rawls supõe uma assembleia ideal na qual todas as classes sociais e todas as espécies comparecem sob o “véu da ignorância” — isto é, seus representantes não sabem a que classe ou a que espécie pertencem quando entram na assembleia. Eles e elas, homens e mulheres, ricos e pobres, humanos e animais, devem decidir sobre regras de justiça afetando essas categorias na ignorância sobre sua real situação no mundo fora da assembleia. Por exemplo, na ignorância sobre a posição de rico ou de pobre, o participante deve votar sobre regras de distribuição da riqueza. E a teoria dos jogos, em que se inspira Rawls, diz que devem oferecer ao mesmo tempo proteção aos que são pobres (caso sejam pobres no mundo real), e proteção à fortuna (caso sejam ricos no mundo real). Essa solução garante aos mais pobres um mínimo de direitos humanos e aos mais ricos a possibilidade de manter sua riqueza.

Deixemos de lado a posição do jurista kantiano, porque a noção de dialética de Haddad contrasta com o liberalismo inerente à concepção de Rawls, que é a de uma assembleia livre de preconceitos de classe, de gênero, de raça ou de espécie.

Há outro efeito da visão de Haddad sobre a dialética. É que, ao restringir o alcance da dialética ao domínio da vida social humana — e sabemos que animais não-humanos também têm socialidade —, Haddad exclui ao mesmo tempo a validade da evolução no sentido darwiniano ao domínio humano, e esse é o objeto de seu primeiro capítulo sobre Biologia, em que Haddad recusa a aplicação da noção de evolução biológica às sociedades humanas. Essa posição coincide com a posição da antropologia cultural contemporânea. A antropologia cultural dominante rejeitou a tese de “evolução cultural” ao longo do século XX por várias razões: primeiro porque a noção de “seleção do mais apto” não se aplica, pois depende da noção de aptidão, e porque uma hierarquia de “aptidão” é inaplicável à multiplicidade de culturas, entre as quais uma tem aptidão excepcional em artes do corpo, outra em pensamento metafísico, outra em eficiência energética e outra em integração com o ambiente. Em suma, diferentes culturas exigem soluções particulares para a existência. Haddad concorda com a posição dominante na antropologia cultural do século XX e do início do século XXI que, seguindo Lévi-Strauss em seu influente e definitivo artigo sobre diferenças culturais, rejeita qualquer espécie de hierarquia entre culturas. Em vez disso, trata do efeito da comunicação sobre a contradição.

Vê-se assim a unidade profunda que conecta as partes aparentemente heteróclitas desse livro marcante que trata de linguística, de evolução, de antropologia sobre o pano de uma visão humanística da dialética. Trata-se de visões sobre a democracia e suas possibilidades e limites, como esfera de comunicação pública, onde não há lugar para evolução darwiniana, e onde o substrato de entendimento comum baseado na gramática universal não garante o entendimento entre gramáticas particulares.

Haddad apela para a antropologia — como ciência das diferenças culturais — como campo para resolver esse dilema, e para isso pensa que será necessário que a antropologia incorpore a lógica dialética em seu repertório, isto é: o reconhecimento de que diferentes culturas estão em relação “dialética” — de oposição, e não só de diferenças — e que as múltiplas culturas estão em relação ‘dialética´ com o estado e com culturas dominantes.

Voltemos então à noção de dialética como método para tratar das sociedades humanas e da natureza. Ora, há na antropologia uma noção de dialética, que é aquela expressa por Immanuel Kant, retransmitida por Hegel e adotada por Claude Lévi-Strauss, a razão que transpõe barreiras postas pelo intelecto. Isso significa que enquanto o intelecto — regido por regras lógicas e por ontologias dadas — impõe barreiras, a razão dialética transpõe essas barreiras.

A razão dialética é, portanto, revolucionária. Em termos antropológicos, dialética é a capacidade humana para transitar entre diferentes cânones do intelecto (línguas, códigos culturais). Essa capacidade supõe a de transpor abismos, metáfora utilizada por Lévi-Strauss para definir sua concepção de dialética em artigo sobre a interpretação de mitos, onde precisamente estava em questão a possibilidade de compreender mitos como expressões de ontologias radicalmente diferentes das metafísicas ocidentais.2

A visão de Haddad da dialética social como revoluição leva novamente a Max Weber. A sugestão do conceito de revoluição é que há emergência de grupos culturais separados — ou “especiação”. Ora, na linguagem de Max Weber, há dois conceitos relevantes: o de comunitarização (Vergemeinschaftung) e de societarização (Vergesellschalftung). Segundo Weber, não há “comunidades” e “sociedades” como entidades pré-existentes — e sim processos de constituição de comunidades (comunitarização) e de constituição de sociedades (societarização). Esses processos ocorrem em contextos políticos. Um grupo social se comunitariza ao se opor a seus vizinhos — dos quais se quer distinguir para ocupar um nicho econômico ou político, atribuindo assim marcas distintivas e passado comum. E um grupo social se societariza ao estabelecer regras institucionais entre seus membros. Weber deu exemplos: uma cooperativa de pescadores dá origem a uma comunidade de parentesco e de hábitos. E ainda: uma comunidade de parentesco e hábitos de pescadores artesanais se constitui em uma cooperativa.

Em Haddad, dialética é vista no quadro do realismo científico, diz respeito ao que realmente ocorre no mundo social, isto é, como ontologia social, e parece à primeira vista reduzir-se a um esquematismo ou cânone triádico. Recordemos, porém, que de Heráclito a Platão dialética é um exercício de pensamento que critica seus pressupostos. Em Kant é o uso da razão que se estende para além do campo da experiência imediata e leva a continentes imaginados de qualquer experiência possível. Essa dialética é o uso revolucionário da razão, como insistiu Marcuse em Razão e revolução. É a capacidade para imaginar alternativas à ordem dada, ainda que transpondo códigos da razão.

É como Haddad emprega a razão dialética nesse livro, isto é, como o uso da razão que ultrapassa os limites da experiência empírica e os domínios de cálculos formais — formulação que vem das lições de Hegel na Enciclopédia das Ciências Filosóficas: A razão [Vernunft] rompe as barreiras postas pelo intelecto [Verstand].

Essa é a razão que vai além das fronteiras da experiência imediata e se projeta para o futuro e para o desconhecido. É a faculdade de “transpor abismos” lógicos e ontológicos, segundo Lévi-Strauss. E é a razão associada com o pensamento revolucionário, segundo Herbert Marcuse, em Razão e revolução, e o lógico filósofo Newton Da Costa. Pois conforme Da Costa, a razão dialética ou revolucionária não pode ser regida por cânones — porque nesse caso não seria revolucionária. Essa é a dialética exibida por Fernando Haddad, que transpõe abismos ontológicos da biologia, da antropologia e da linguística, sem hesitar em transpor abismos lógicos e epistemológicos, visando um futuro imaginativo de mundos sociais futuros, onde seria possível a reconciliação do gênero humano — sem que haja qualquer experiência empírica que justifique esse projeto.

A razão dialética em ato é exibida por Haddad: na travessia incansável de abismos que separam disciplinas — ontologias regionais; na recusa de cânones lógicos que excluem a contradição como operador lógico; e no vislumbre de um horizonte possível de reconciliação da humanidade para além dos conflitos que a condenariam à extinção como resultado de seus entrechoques internos e com o planeta.