A ficção implicante: relato e experiência em Cildo Meireles
O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.
Narrativa
Um amigo narra uma lembrança infantil: a de ter pedido ao pai um trocado para comprar uma coisa qualquer, e ao conferir o valor da cédula, ainda iniciante em cálculos, perceber uma inscrição não familiar, fora de lugar, mas ainda lá. Perguntar ao pai, em alto e bom som “Quem é Herzog?”, é já saber que este alguém foi morto. Então reconhecer no rosto do pai a expressão que sinaliza a transposição de um limite, que reprova a tentativa (quem sabe se involuntária) de forçar a entrada no mundo dos adultos, no que a linguagem nos reserva de interdito. Conhecer o olhar reprovador (implorando pelo silêncio público) o faz calar a pergunta seguinte, que já estava preparada, como que por um desdobramento lógico, e que deve ressoar por tempos ainda: “Quem?”.
Ainda assim a culpa está posta. Primeiro em relação ao pai, mas, em tantos outros casos, em relação a um pai de todos: o Estado. Em todo caso, somos perguntados como a sujeitos livres, uma pergunta que só quem se considera livre pode fazer. Quem? O espaço público está instaurado novamente, até que recebamos as respostas de sempre, ou antes, até aceitarmos as respostas de sempre. É nesse tipo de experiência pessoal que se dá a base de desdobramento do trabalho, garantindo uma relação de mútua constituição entre obra e sujeito.
A elaboração desta experiência em contato vivo com Inserções em circuitos ideológicos (1975) perde em dimensão crítica se a forma da narrativa não puder ser compreendida como meio compartilhado com a proposição que se efetua. É pelo relato que subsistem ainda hoje algumas das mais contundentes proposições de Cildo Meireles. Para além das montagens retrospectivas sobre seu trabalho que vêm ocorrendo e que as valida para o sistema da arte, em que nos são apresentados alguns dos objetos antes subvertidos, a potência conferida à série de inserções realizada na década dos 1970 pela narrativa independe das cédulas ou garrafas de coca que restam nas vitrines dos museus e o recontar de experiências vividas ainda circula.
Discurso
Curioso que uma das mais controversas definições de ideologia também dependa, para sua formalização mais plena, de um momento constituído na narrativa ao mesmo tempo que por meio dela. Althusser a inicia privilegiando a descrição de estruturas abstratas, que representariam nossas relações sociais, econômicas e políticas, mas acaba fazendo seu raciocínio desembocar em uma espécie de crônica do sujeito: o pequeno Louis é chamado aos seus deveres, à paga de suas dívidas de origem, a constituir-se como célula de submissão em uma estrutura já dada, a encontrar seu lugar em vastas ficções que, interpostas, formam o plano ideológico.1 A teoria acaba por mimetizar formas de discurso ao mesmo tempo em que as descreve. O narrar da formação do pequeno Louis talvez diga com certa propriedade sobre a condição de formação no plano ideológico justamente por desvelar como se inscreve a ideologia pelo discurso, ou por inúmeros discursos que nos “sobredeterminam”. A descrição de um estado de coisas pelo texto não implica necessariamente o sujeito nessa condição, e a narrativa pode fazer desdobrar pela ação nossa compreensão de ocorrências que o envolve e define. Aliás, o próprio discurso político de Althusser transparece em sua trajetória esse embate entre pensamento crítico e apropriação institucional. Seu discurso, segundo Rancière, teria fingido ignorar, estrategicamente, o lugar que o continha.2 A atuação pelo discurso que, consciente de seu lugar e das possíveis apropriações que lhe demandam outros discursos de ordem e poder, evidencia-se na tomada de posição de uma ação como a de Inserções….
Reconhecer sistemas e circuitos que, maiores do que nós, nos englobam e sujeitam, requer desenvolvimento social e coletivo de competências do pensamento, capacidade de abstração, prática intelectual que articula imaginação e raciocínio lógico, além de subsequente interpretação de situações e reflexão. Não é pouco então o que nos demanda o exercício de contato com algumas proposições como a de “Inserções…”, mas podemos dizer que também corresponde ao que é necessário para uma atividade efetivamente política: a tomada de consciência de nossa participação em processos históricos, e a avaliação da potência de nosso posicionamento. Compreender o funcionamento de um circuito, em um desenho ainda que esquemático, representá-lo mentalmente, para que então seja possível a inserção de uma pequena diferença — a inversão de um signo, a realocação de um dado —, para que se altere a narrativa mais particular, para que o ato de se comprar um chiclete na padaria se transforme para além da aparência mais normativa.
Contradiscurso
No lugar de um discurso pretensiosamente não ideológico, um entrave crítico, em cujo interior possa operar o desdobramento de todas suas contradições. Inserções em circuitos ideológicos parece se constituir como contradiscurso. Sua crítica opera a partir da análise de um meio, tomado como matéria-prima. Concisamente, consegue uma desnaturalização poderosa, e ainda conserva o discurso em sua aparência inicial, apenas para salientar suas próprias contradições. Uma cédula falsa não poderia sustentar a pergunta anônima sobre o assassinato de um jornalista; deve ser a “verdade” da cédula a trabalhar contra seu silêncio, para que se contraponha à ação política inaugurada pelo ato de carimbar essas cédulas a representação “política” que serve de lastro para operações financeiras. A questão incômoda circula no mesmo meio, mídia e circuito em que vivem os valores hegemônicos representados.
Em Zero cruzeiro, essa inversão se dá também pela figura do índio que toma o lugar da representação política, do personagem de uma ficção que valida o poder. Subtraída de um fluxo alienado de imagens que se realiza por meio da imprensa, a imagem inócua do índio, antes aplainada, atenuada, volta-se ao espectador, tísica e irônica. Aponta para a contradição gritante entre representação da identidade nacional e a esquizofrenia que marca as relações entre homem e capital. A representação de um Estado homogêneo e sem conflitos é flagrada pelas figuras dos que não se inserem na lógica de produção e consumo que valida o acesso à vida política, por não assimilarem valores fundados em racionalidade civilizatória.
Trata-se, portanto, de uma intervenção no que se mostra como o estado natural das coisas, para revelar o que nesse estado se naturaliza diretamente na representação síntese do discurso ideológico; o dinheiro, meio e fim, chave do rito transacional que demanda como competência básica a abstração de toda experiência.
Esquecimento
Parece que a própria forma de edição fotográfica é constitutiva do que me lembro em Olvido (1989), exposto na edição de 1989 da Bienal de São Paulo. Antes de entrar na sala de luz rebaixada, já se podia ouvir um ruído que a tomava: uma serra elétrica em ação. Ao centro uma tenda feita de cédulas de países americanos, fincada no centro de uma espécie de piscina de ossos, amparados por uma mureta de velas em forma de arena ou circo. O percurso pela exposição me reaparece fragmentado, misturando-se ao do trabalho. Quantos trabalhos vi naquele dia?
Apesar de, a começar pelo título, se propor a falar de um esquecimento histórico, falho em perceber nesse caso uma potencialização da experiência pela reativação da memória. Ao contrário, parece haver um lapso entre a experiência possibilitada pela instalação e uma espécie de dever sentir, que, de tão idealizadamente coletivo, torna-se inacessível. Suspeito que essa sensação se deva a uma postulação de valor, a uma relação pouco desmistificante entre as questões históricas lançadas pelo trabalho e um suposto espectador. Não me parece que o sujeito que se constitui a partir dessa experiência veja-se obrigado a se confrontar com as perguntas da ordem das que ainda ecoam em Inserções…, e que seriam imperativas também nesse trabalho: quem são as vítimas, quem são os assassinos? Em Inserções… a estratégia da denúncia está ligada à razão sobre si. Está fundada no apontar para si, para a tomada de consciência do plano ideológico. O cheiro das velas, a luz amarelada que trabalha para a sensação de esmaecimento, o ruído calculadamente perturbador, tudo faz parte de uma estratégia de encenação. Aliás, as qualidades cenográficas do trabalho são seus elementos construtivos mais importantes, e os objetos justapostos; ossos, cédulas, velas, alegoricamente, parecem falar mais para além de si mesmos do que sobre sua própria condição. O drama nos garante a possibilidade de que o assistamos “de fora”, de entrar e sair à vontade do espaço de encenação.3
Volatilidade
Inserções… e Olvido utilizam duas estratégias diversas, mas recorrentes no modo de atuação de Cildo Meireles. Uma é a tomada de posição, que, a partir de uma visão analítica, reconhece um sistema de qualquer ordem e a partir disso pensa para ele uma intervenção precisa. Outra é a montagem de instalações que se estruturam a partir de um arranjo cenográfico, convidando o espectador a se empenhar em uma narrativa contida no trabalho.
Entre as novas formas do capital e essas diferentes estratégias de abordagem há uma relação que, sem ser determinante, se dá como um procedimento mimético de aproximação. Inserções… assimila algo da forma daquilo que denuncia como sistema. A inserção não pode ser realizada sem, inicialmente, reforçar o desenho do circuito em questão, ou dele não se apropria. Introduzir nele uma cunha conceitual, como feito por Inserções…, demanda um investimento no campo da representação que se arma pelo jogo contraditório entre elementos. Uma distância intransponível entre chave e chaveiro (Razão- Loucura, 1973), dada pela curta corrente, aponta para a relação de interdependência entre problema e solução, e acaba se referindo a condições sociais/materiais tanto quanto a limites do pensamento e linguagem. Importa se a chave e o chaveiro falam de uma impossibilidade de concatenação mental, moral, internalizada, mas não deixam de falar de lapsos resultantes dessa impossibilidade de concatenação, tão presente em nosso jogo social.
Mesmo quando o trabalho se apresenta como objeto, acaba revelando um fio solto que aponta para sua função de origem, e assim, também para o discurso em função do qual deixou de funcionar. Em Cruzeiro do Sul (1969/70) essa estratégia talvez seja levada ao extremo. A definição de uma fronteira entre objeto e situação se inviabiliza.4 O cubo seccionado ao meio, linha de meridiano feita da justaposição de duas madeiras, pinheiro e carvalho, mimetiza-se ao espaço expositivo como numa medida mínima de toda geopolítica orientada pela relação norte-sul. Por meio de uma operação que exacerba e da noção de escala revela-se o caráter hierárquico dos espaços expositivos enquanto dispositivos de poder, e, por extensão, de um circuito global no qual a arte figura um círculo fechado, uma faixa de circulação supostamente autônoma e socialmente excludente.5
Esse procedimento maneja na direção de fazer a representação e a abstração jogarem a despeito de suas funções ideologizantes, em prol de desvelamentos dos discursos que as capturaram. Há, no entanto, um processo de mutação desses discursos por conta de transformações das formas de atuação do capital. Se a operação monetária já capacita para um modo específico de abstração, o sistema financeiro proporcionará o desdobramento desta competência em nível inédito a partir do início da década de 1970, em novo grau de autonomia. A denúncia da cumplicidade entre sistema monetário e Estado presente em Inserções… não tem a mesma contundência se o capital dispensa as validações simbólicas ligadas ao Estado nacional. A volatilidade, enquanto valor ideológico, passa a se sobrepor à solidez, por conta da aceleração do ritmo de todo o fluxo das mercadorias e reorganização dos vínculos de trabalho — terceirização de serviços, flexibilização de leis trabalhistas em determinados países e inexistência de legislação trabalhista em outros — no limite das possibilidades das novas tecnologias. Sintomático então que a década de 1980 acorde para uma nova oportunidade de investimento, facilitada pela interação direta entre museus e corporações, disparada também pelas mudanças no modelo de financiamento público, fundamentada pela consolidação de uma rede de instituições privadas que operam a partir da chancela e prestígio e apoio dos espaços públicos: a arte contemporânea é descoberta e passa a funcionar como moeda de valor simbólico e material para estas corporações (WU, 2006)6.
A partir deste período alguns trabalhos de Cildo parecem almejar a uma condição de autonomia em relação ao plano político mais amplo, mesmo quando elementos utilizados apontam metaforicamente para alguns limites ou contradições do meio em que se inserem. Volátil (1980), que encena uma situação de risco iminente, e cujo título parece se referir a um estado mais amplo de tensões sociais, coloca-se como um espaço à parte de seu entorno. Desvio para o vermelho (1984) assume-se como um ambiente montado, muito próximo, neste sentido, de Olvido (1987/89) e Missão/Missões (1987), em que a ideia de encenação se liga fundamentalmente ao caráter ritualístico do barroco na tradição católica no que este tem de dispositivo estético-político de dominação colonialista,7 e na compreensão de como se sobrepõem, nessas construções, a funcionalidade de cada espaço em sua localidade específica e a dimensão simbólica e ideológica de seu sistema.
Transgressão
Se as dinâmicas políticas já não são passíveis de representação como a concebíamos, uma forma supostamente cenográfica, talvez por levar em conta a ininteligibilidade de nossas posições, apresenta-se de certo modo menos enganosa, justamente por ter na encenação seu pressuposto formal.
Através (1983/89), trabalho pensado ao longo da década de 1980, parece estruturar-se a partir mesmo da contradição entre essa formalização cenográfica e seu entorno. O espaço autocentrado serve como fechamento, não como palco. Não acolhe o sujeito como um ambiente de uma experiência estética privilegiada, apenas dispõe os limites físicos impostos por seus elementos de constituição, grades e barreiras de todo tipo e tamanho, como condição mesma de sua estada num entorno com o qual mantém certa autonomia crítica. O constrangimento da condição de passante como única possibilidade de fruição está posto de início, de modo transparente. Não se oferece nenhum tipo de liberação ou remissão ao sujeito. A resistência se dá por conta mesmo de uma problematização explícita da impossibilidade de transgressão.
Desvio
A reflexão conclusiva de um texto crítico geralmente funciona como uma descarga do peso que o objeto exerceu sobre a elaboração crítica, e que nos libera temporariamente das implicações dos enigmas que exigentemente nos propusemos. Em Desvio para o inominável de Suely Rolnik, escrito a partir da experiência com Desvio para o vermelho, no entanto, os processos sociais e contextos de ficção em que nos encontramos e circulamos, e do qual participamos a despeito de nosso desejo, tornam-se o próprio material para elaboração da crítica, que se reconhece implicada em uma elaboração que depende de múltiplos agentes pensantes e sensíveis, todos sujeitos a condições compartilhadas, mas tensionadas. Logo de início há o reconhecimento, após “muitas idas e vindas no interior do Desvio”, de um “sentir a pulsação de um diagrama de forças remotamente familiar e, no entanto, estranhamente inacessível.” Depois de um “tempo de decantação”, palavras começam a condensar o desassossego causado pela visita: “esvaimento… desolamento… desalento… prostração… tolhimento… medo…” E depois “Uma apreensão que não tem fim, absoluta impotência, exaustão. Aos poucos, vai tomando corpo a sensação cotidiana de viver sob ditadura militar no Brasil”. Torna-se pouco a pouco sensação física da atmosfera invisível do regime, “mais implacável, porque mais sutil e inapreensível”.8
A escrita crítica do relato apreende da proposição não um significado que possa ser adiantado pela experiência prévia, mas aquilo que resta, que marca, aquilo de que o corpo que circula pôde se impregnar ao atravessar esse labirinto feito senão de saídas, em um espaço sem hierarquia, = que não opõe resistência à circulação, mas com mais perspicácia — eu talvez ouvisse do próprio Cildo o termo “esperteza” — convida a uma circulação que emula o sem sentido de dimensão que o abriga, para que então, depois de assentado, este sentir possa efetuar, por deslocamento — desvio —, o desvelar da falta de sentido de tudo mais.
Conto
Próprio do que ocorre na ficção, o capital se estabelece como objeto de estudo narrativamente, ganha vida no tempo ao apresentar ganho, renda, dividendos à medida em que pudermos narrar esses desdobramentos no futuro. Evolui à medida em que nossa capacidade de representar a nós mesmos no jogo se transforma. Por isso o termo “capital financeiro” não dá conta do que pode disparar o termo “capital fictício”, como definido por Marx, em termos de complexidade, contradição e até ironia. O cálculo e a racionalidade à que nos remete o termo “financeiro” não estão conflituosamente em conjunção com o desejo e o sonho como no termo “fictício”.
É o ficcionar, enquanto competência, o que nos move economicamente em direção a um mesmo destino imaginado, a cada hora de trabalho, cada operação comercial, cada racionalização de nossas escolhas. O compromisso assumido socialmente com a projeção coletiva do que está por vir só se compara à inevitabilidade que mantemos com a língua que falamos: nosso acesso e compreensão das coisas é determinado — aliás, sobredeterminado — por seus nomes, pelos sons que chamam as coisas ao alcance da mão ou do intelecto. Ficcionar é o que torna o real possível. “O real precisa ser ficcionado para ser pensado” (RANCIÈRE, 2009). O que é o esforço social econômico se retiramos dele seu caráter de narrativa coletiva, sua propriedade de enredo?
Os trabalhos de Cildo Meireles retomados para este ensaio, em alguma medida, mantêm esse crivo em comum: tomam o partido da ficção, no tanto que manipulam o tempo por meio de seus percursos, pela maneira como reviram as frases marteladas pelo senso comum fazendo rebater o oco de suas obviedades até que se revele ali a contradição que as faz verdadeiras. São literários na medida em que nos implicam em um caminho que opera pelo deslocamento. 9 Nos põe a duvidar desse destino que se lê, se escreve, se anuncia como sentido. Trata-se de um ficcionar que, implicante, demanda ao sujeito que busque e retome o fio da meada da história que o conduziu até o lugar em que se encontra no presente.
Esse narrar-se do sujeito responde a uma incorporação, pelos trabalhos, do caráter de oralidade,10 a linguagem compartilhada por quem conta ao outro o que passou consigo: elaborar e garantir a singularidade pela qual o que ocorreu se tornou vivido. E, ao mesmo tempo, garantir ao outro o acesso ao passado enquanto momento que se possa dividir.11
Por meio da ordenação, forjar para si um sentido que recusa a finalidade de uma interpretação imposta a partir de demandas externas, abrindo caminho para o desviar dos efeitos de poder que restringem o discurso crítico. Daí a importância do lugar de testemunho (“O testemunho e a ficção pertencem a um mesmo regime de sentido”12), que se abre pelo relato pessoal, a partir e como resposta a essas proposições, e que passam a habitar uma escrita coletiva, em que se compartilham vivências, e em que vive a experiência.
Entrevistado, Cildo conta e reconta as histórias que contêm como que gêneses de seus trabalhos,13 mas não o faz como autor isolado, e sim como que para dar conta de atravessamentos que sofreu, quase como testemunha do processo de criação que o ultrapassa. Essa posição de narrador ancora-se em uma escuta afinada para as demandas de cada situação, de cada processo, cada contexto ou, até mesmo, cada circuito. Ao narrar esse circular de ideias, seus relatos parecem emular o próprio funcionamento dos trabalhos e, por meio da oralidade, lhes devolver corpo. A oralidade é reiterada como suporte, que, pelo retorno a isto que narra, enquanto matéria e meio, faz com que o trabalho possa como que reencontrar a forma que lhe pertence e na qual pode se formar a si. A autonomia da narrativa se recoloca ali, na aposta, feita pelo narrador, de que o ouvinte leva a história consigo, para apropriar-se dela como puder, para guardá-la e recontá-la. O relato pode ser entendido então como fim e meio de compartilhamento, que mobiliza o narrar das cenas, mas também a situação em que a narrativa se repete, a personificação que torna presente as figuras, a atuação que desenha, o olhar que procura estabelecer vínculo, a edição construída no espaço comum pela escolha de cada conto. O relato como uma re-situação do trabalho.
Do trabalho ou, por vezes, algo que liga, que opera para além das formalizações reconhecidas como trabalho pelos circuitos que dele se alimenta. Como no relato em que um Cildo ainda menino, depois de algumas noites a acompanhar a presença de um andarilho que havia estado próximo à casa de sua avó pernoitando junto à fogueira, vai ao seu encontro e, em vez de encontrá-lo em pessoa, encontra, deixado ali por ele, seu indício: uma casa em miniatura feita de madeira. Cildo interpreta essa experiência ligando-a a um fazer que produz algo que, pode ser deixado aos outros, metáfora possível, entre outras, do próprio fazer do artista. Contudo, o que disso pode ressoar a cada ouvinte dessa narrativa não pode ser contabilizado. Como no conto que exemplifica essa possibilidade no famoso ensaio de Walter Benjamin, “O narrador”, a vida da narrativa está em sua abertura para as múltiplas interpretações, ao mesmo tempo em que sua concisão garante que não se dilua em um relativismo inócuo de possibilidades inconsequentes de leitura: “[A narrativa], ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (BENJAMIN, 1985).
Deve desenvolver-se também em outras narrativas, desdobrar-se em relatos que insistem em retornar a cenas e cenários problemáticos, que circulam em suas versões inversas ou opostas, como o que há de aprisionamento no ordenamento montado didaticamente, no qual um Althusser menino deve carregar o signo de uma abstração tão maior do que ele e segue dominado pelo que a linguagem encerra de destino e desígnio, do que delimita e projeta. Ou do que há de atemorizante e atraente na descoberta transgressiva de um nome cuja mera menção é considerada subversiva. Ou de ser atravessado pelo acidente de encontrar algo, em uma determinada manhã seguinte que não se deixa explicar tão facilmente, que não pode antecipar de modo tão didático toda sua possibilidade de ser. Algo como um espelho de mão ou bússola. Talvez um monumento ao porvir, mesmo que diminuto, que convida a criança reorganizar-se, a reorientar-se. Algo que em suas mãos possa se tornar um amuleto precioso. Um som, uma reminiscência ou até uma ferramenta.
De todo modo, o trabalho se presentifica, mais uma vez.
Espaço, hiato ou brecha que se abre em contra-fluxo, cunha que produz falha no discurso maquinal, alavanca que desloca o quê de tão sistemático já não questiona, contradiscurso que descontinua a ladainha da ideologia, desliza na sequência programática da funcionalidade do mundo, ficção que não se sujeita. Escrita que tece o comum. Isso que, ao ser contado, se realiza.