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A face oculta da democracia

Branco de chumbo, Marcos Kaiser Mori

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Anistia, tornando inimputáveis aqueles que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Essa breve frase do primeiro artigo da lei embutiu na democracia o signo do oculto, cuja estrutura se reproduziu sorrateiramente nas instituições vindouras. Por um lado, os efeitos da lei libertaram alguns presos e trouxeram outros tantos de volta do exílio. Por outro, desresponsabilizaram os agentes do Estado ditatorial e produziram uma cultura de impunidade com graves implicações para a memória coletiva e para o Estado de Direito.

A campanha pela anistia gerou forte pressão popular contra um regime civil-militar já em dificuldades e se configurou como um dos primeiros movimentos sociais, desde o Golpe de 1964, a fazer uso massivo do discurso dos direitos humanos. Apesar da pressão dos comitês brasileiros pela anistia e da adesão das principais forças políticas organizadas, o governo do presidente-general Figueiredo impôs uma lei ambígua e favorável ao processo controlado de transição.

A aprovação do texto final da Lei se deu em um Congresso Nacional funcionando com dois partidos políticos (MDB, da oposição, e Arena, da situação) e sob o impacto das medidas de controle impostas pela “abertura lenta, gradual e segura”. Em 1977, o governo havia instituído o Pacote de Abril, fechando o Congresso Nacional por quinze dias (entre 1º e 15 de abril) e outorgando uma série de medidas limitando as possibilidades de ruptura, entre elas: eleição indireta para governadores, seis anos de mandato presidencial, um terço dos senadores indicados pelo presidente da República.

De imediato, a Anistia abriu as portas de diversas celas nos presídios onde se encontravam opositores (os presos envolvidos com a luta armada precisaram esperar mais alguns anos para que o Superior Tribunal Militar abrandasse as penas), trouxe de volta os exilados e banidos, e sinalizou positivamente para as negociações dos próximos passos da transição (autorização para a existência de alguns partidos políticos, eleições para governadores e reforma da Lei de Segurança Nacional, entre outras medidas).

Em paralelo, a mesma lei foi interpretada como válida para os agentes de Estado e os seus mandantes que violaram direitos e cometeram prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados. Enquanto dispositivo originário de exceção da nova democracia, a Lei de Anistia driblou o direito penal e qualquer outra institucionalidade das décadas seguintes.

Dessa forma, não se esclareceu as circunstâncias, a localização e a identificação dos desaparecidos políticos. Nenhum perpetrador foi aos tribunais ou teve seu nome conhecido, a não ser pelos reclamos quase inauditos dos movimentos de direitos humanos. Caminhou-se, no início dos anos 1980, rumo a uma sociedade que virou as costas para acontecimentos terríveis de sua história recente e com repercussões latentes, como já se havia feito em outros momentos, a exemplo do apagamento da história colonial e escravista.

Sob a interpretação de que a violência dos “porões da ditadura” seria resultado de “crimes políticos ou conexos com estes”, o sistema de justiça da democracia seguiu os pactos políticos da transição. Quando, em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ADPF 153 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental movida pela Ordem dos Advogados do Brasil) sobre a recepção da Lei de Anistia de 1979, a decisão desconsiderou os tratados internacionais que tornam imprescritíveis os crimes contra a humanidade. O STF se eximiu de responsabilidade ao considerar que, apesar de as violações na ditadura se enquadrarem nos “ataques sistemáticos contra população civil”, como diz o Estatuto de Roma,1 o país tinha feito acordos políticos nos anos 1980 e somente o Congresso Nacional, com a participação do Executivo, poderia rever esses pactos.

O que a democracia pós-ditadura fez, quarenta ou cinquenta anos após as violações cometidas, foi além do consentimento à impunidade, a contrapelo de nossos vizinhos da América do Sul (em graus diferentes Argentina, Chile e Uruguai realizaram julgamentos e elaboraram uma memória crítica às suas ditaduras). A decisão de não julgar os responsáveis pela violência de Estado ensejou duas estratégias autoritárias presentes nas últimas décadas: o apagamento de uma memória coletiva sobre a repressão e a permanência da violência de Estado.

Diante desse cenário, é inescapável estabelecer a relação entre a presença de tais estratégias com o atual momento do país, quando temos a extrema direita com discurso elogioso à ditadura e aos torturadores e a defesa de uma guerra contra o inimigo. O fantasma de um golpe, exaltado em frente aos quartéis das principais capitais do país, paira sobre os processos políticos como o ato oculto de uma democracia limitada e frágil, mas também violenta e autoritária. Recentemente, soma-se aos espectros do passado a articulação de figuras conservadoras em defesa de uma anistia que “pacifique” o país.

A memória impune sobre a violência política

Durante a ditadura, o discurso estatal que justificou a militarização plena foi o da guerra contra a “subversão” personificada no inimigo interno. A teoria dos “dois demônios”, ficção política que fundamentava a violência, versava que nessa guerra dois lados radicalizados estavam em conflito: um deles, os “subversivos”, agiam contra a pátria, a família e a cordialidade do brasileiro; e, o outro, vindo dos “porões”, deveria agir com violência e excessos para efetivamente conter os inimigos.

No caminho rumo à democracia se performou um discurso segundo o qual a nova política se daria de forma consensual, em torno das ideias de reconciliação e de pacificação. As violações de direitos durante a ditadura deveriam ser esquecidas, e o novo regime se voltaria para o futuro democrático. Visando silenciar os “dois demônios”, entraria em cena uma política da governabilidade na qual nada além dos acordos palacianos seria permitido.

A estratégia central do consenso se efetivou como uma política estatal de memória. Tal política reconhecia a existência de duas rememorações radicalizadas, ou modos de entender o país e que se encontram em lugares extremamente opostos. De um lado, a memória dos militares, ou da direita, que queria o esquecimento de toda a violência. Do outro lado, a memória das vítimas, ou da esquerda, que desejava tudo lembrar. Com base na gramática da paz e da reconciliação, se criaria a ideia de que a ditadura não teria sido tão violenta como se dizia.

O rito institucional do consenso pretendeu forçar uma unanimidade de narrativas em torno da racionalização política, difundindo significações mais ou menos homogêneas sobre os anos de repressão. Em substituição ao caráter litigioso inerente à diversidade nos debates políticos, o consenso apresentou-se como o regime no qual as partes seriam contadas sem a produção de resto, e as dessemelhanças poderiam ser objetivadas pela ação do Estado e de suas políticas compensatórias.

A ideia de um regime de equilíbrio e avesso às rupturas funcionou como repressão à própria política democrática na medida em que silenciou as memórias e as ações dos que não entraram nos cálculos da razão institucional. Notadamente se limitou os espaços para os sujeitos em luta, fossem os movimentos organizados, fossem os corpos descartados por uma sociedade desigual. O esvaziamento do caráter político das lutas sociais foi — e ainda é — o ardil engenhoso para a imposição de uma democracia com forte presença autoritária.

Contra os extremos e com o objetivo de fazer avançar o processo de redemocratização, sempre que o novo regime se encontrasse diante de um dilema a opção seria por uma política do possível. Dessa forma, se necessário fosse, os passos próprios a uma democracia poderiam ser descartados para se evitar o risco de quebra da ordem. Foi assim que o Estado de Direito se permitiu a exceção de não julgar os graves casos de violações de direitos do passado.

Tal política de memória induziu as instituições a construírem uma democracia limitada a procedimentos formais e a fazer da ditadura o simulacro de um Estado Legalista. Destarte, houve o rompimento apenas parcial com a violência do Estado, pois se manteve submersa na sociedade subjetivações e discursos simpáticos ao período ditatorial, e se fomentou a permanência de estruturas repressivas.

O consenso criado não foi aquele que poderia resultar da busca por um comum. Antes, foi o consenso das normas estabelecidas e impostas pelo processo de transição. De modo que tudo aquilo que não correspondesse à prática da paz e da reconciliação seria visto como um risco à nova ordem. Os restos em relação ao que foi estabelecido pelos acordos consensuais foram as patologias sociais, as anormalidades, além de toda uma série de subjetividades (materializadas em corpos) indesejáveis.

A permanência do inimigo e da violência

Certamente há diferenças profundas entre a ditadura e a democracia. Entretanto, as continuidades entre os dois regimes mantiveram estruturas úteis à racionalidade do processo de transição controlada e à violência política. Mais do que isso, certas permanências em diversas ocasiões tornaram indistintas as políticas democráticas das autoritárias, introduzindo ambiguidade e confusão entre os sujeitos do novo regime.

Entretanto, se a interpretação da Lei de Anistia permitiu a permanência da impunidade (e de sua violência) e de subjetivações políticas e memorialísticas autoritárias, haveria ainda mais uma astúcia para alimentar a face oculta e submersa da nova democracia: o aparato militarizado de violência do Estado. Se a lógica consensual se justificou pela necessidade de evitar o risco à nova ordem, o artefato da produção do inimigo foi necessário para manter a subjetividade do risco.

Manter a “paz social” (garantida pela governabilidade dos pactos) demandou a contenção a qualquer custo da violência urbana. Dois pensamentos foram reunidos para sustentar em democracia a estrutura de guerra ao inimigo: a ideia de que os crimes e a violência urbana estavam relacionados com a pobreza e exigiam a humanização das polícias, e do aparato de segurança pública nas políticas públicas dos novos governos democráticos nos estados.

Durante a ditadura, o “ame-o ou deixe-o” foi a frase síntese da prática violenta e gerou a ideologia de segurança militar que transformou em inimigos parte significativa dos governados. A ação do aparato repressivo objetivava, além do ataque aos militantes políticos, exercer o controle sobre a população periférica.

Durante o período ditatorial, a política do ódio mobilizou a lógica da guerra contra o inimigo e se manteve em democracia especialmente por meio da estrutura racista e colonial. Quando um jovem negro e pobre é assassinado pela polícia nos territórios periféricos, é comum assistirmos a comunidade protestar, ocupando avenidas próximas, ateando fogo em pneus e interrompendo os fluxos de circulação da cidade. São lutas políticas pelo direito à vida, contra a violência de Estado e que ocorrem sob a performance das resistências.

Enquanto grupo potencialmente subversivo perante uma ordem conservadora, esse segmento populacional é a própria corporificação da revolta em devir. Assim, no percurso da transição, tornou-se possível à democracia manter todo o aparato repressivo e militarizado das polícias e da política. O inimigo havia migrado do militante político para o elemento comum e, com isso, a ideologia militar repressiva pode permanecer entre nós. Dessa forma, na democracia a população negra e pobre substituiu os “subversivos”.

A criminalização da pobreza manteve a ideia da guerra nas instituições e nos afetos dos brasileiros. O índice maior da inscrição da ideologia de combate ao inimigo foi a manutenção da mesma doutrina de segurança nacional na Constituição promulgada em 1988. No que se refere à segurança pública, as estruturas militarizadas criadas ou consolidadas na ditadura se mantiveram intactas no Título V da lei maior do país (“Da defesa do Estado e das instituições democráticas”). Um de seus artigos, o 142, é justamente o que tem sido utilizado pelo discurso de extrema direita para defender uma intervenção militar.

Nos anos 1980, se ficciona, retomando a parte oculta da história do Brasil, que negros, pobres e moradores das periferias, sujeitos e espaços que se constituíram como o oposto do sujeito universal (“cidadão, trabalhador e de bem”), seriam propensos ao crime e à produção da violência urbana. O novo regime político, nascido sob a promessa de pacificar as violências do passado e sob o discurso de humanização e modernização das polícias, do sistema carcerário e da segurança pública, funda-se no discurso da segurança para investir e dar continuidade ao aparato repressivo e violento do Estado.

Após trinta anos de democracia, se produz mais mortes violentas, mais desaparecimentos forçados, mais encarceramento e torturas do que nos anos de ditadura. Em torno de 80 mil pessoas são assassinadas todos os anos, sendo que a imensa maioria é composta por corpos negros. Etnocídio, genocídio do povo negro, feminicídio, lgbtqia+fobia têm sido a tônica dos nossos tempos.

Talvez devêssemos lançar a hipótese de que o pacto que garantiu uma transição sem profundas transformações não foi aquele que resultou dos acordos políticos palacianos e institucionais. Porém, notadamente, a renovação do velho pacto racial colonialista. O racismo estrutural foi a sociabilidade que permitiu à razão de governo manter a tortura em delegacias, presídios, instituições de privação da liberdade de adolescentes, entre outras, e fazer da militarização da segurança pública (e dos seus despachantes, com suas práticas milicianas) uma versão modernizada do capitão do mato.

Naqueles anos 1980, pactuou-se que não poderia compor o novo cenário democrático qualquer força política insubmissa às regras estatizantes da política. Foi assim que as revoltas contra a fome, bem como os comitês de luta contra o desemprego e contra a carestia, e as ocupações por moradia popular nas periferias, surgidos igualmente com a participação da esquerda e dos movimentos sociais autônomos, foram gradativamente bloqueados, silenciados ou aniquilados violentamente.

Apesar dos direitos e das conquistas cidadãs alcançadas, a violência se manteve como a razão política de controle dos corpos. A estrutura racial garantiu a continuidade de um Estado empenhado em eliminar preventivamente as formas de resistência às estratégias autoritárias. Tudo isso concomitante à escolha pela impunidade dos agentes de estado e seus mandantes que durante 21 anos de ditadura cometeram os crimes mais graves contra a humanidade de seus opositores e de qualquer sujeito descartável para a ordem vigente.

A guerra constante contra a democracia

Toda a violência acionada pelo Estado, somada à de milícias e de grupos de intolerância, manifesta uma forma de combate que se utiliza de divisões antigas e tradicionais de uma sociedade nascida de práticas de dominação e exposta a cisões culturais, sociais e políticas. O enraizamento desses conflitos nas várias camadas de sociabilidade permitiu às estratégias de dominação uma maior capilarização de seus mecanismos violentos. A violência que se libera não é necessariamente a legitimada pelas leis do Estado de Direito, mas a da brutalidade que se utiliza do Estado para atacar os esforços de democratização da sociedade.

A efetivação da face oculta da democracia tem direcionado diversos dispositivos — policiais, militares, jurídicos, tecnológicos, milicianos etc. — para a atividade de guerra contra o inimigo. Controlar o oponente e garantir a segurança concede ao governo a legitimidade das intervenções, desviando-se dos limites estabelecidos pelas leis. A exceção com funcionamento permanente faz da militarização a autoridade de governo e dos grupos de extrema direita, e das milícias os despachantes da violência liberada.

A junção da expansão violenta com as tecnologias discursivas e de comunicação, assim como aos valores conservadores tradicionais, trouxe à cena política o governo de extrema direita. Com isso, a ideia de exceção manifesta-se em uma nova racionalidade na qual o indivíduo deverá governar a si mesmo e ser responsável por policiar e, eventualmente, penalizar o inimigo. O discurso transita, novamente, da pacificação para o da guerra. Sendo assim, a violência de Estado se mostra inseparável de uma violência exercida contra o outro e contra si mesmo. São estratégias que atingem a intimidade dos corpos.

A Lei de Anistia implicou em uma dupla desvalorização na democracia. Ao supostamente igualar dois grupos radicalizados, os “dois demônios”, e beneficiá-los com a inimputabilidade, ela insinuou para os novos valores públicos que a luta política, se radicalizada, poderia sofrer alguma criminalização. Assim, os presos políticos relacionados à luta armada somente foram soltos nos meses e até nos anos seguintes por meio de outros artifícios jurídicos.

Por outro lado, diante da violência de Estado e sua igualação à violência das lutas políticas de resistência, houve a banalização do valor da vida. Se as graves violações de direitos humanos, como a tortura, o assassinato e o desaparecimento poderiam receber a graça do Estado de Direito, poucos bloqueios se colocariam às chacinas e aos massacres produzidos pelas polícias militares e por outros agentes do Estado nas décadas seguintes.

Branco de chumbo, Marcos Kaiser Mori

A Anistia de 1979 funcionou como um astuto artefato político de constrangimento da ação política democrática. Tendo nascido a partir de lutas populares e de organizações de direitos humanos, foi manipulada pelo regime militar para atender aos ditames de um processo de transição controlado. Ambíguo, polissêmico e polifônico o bastante para atender aos discursos de pacificação e de formalização da democracia, esse artefato também foi o marco de uma cultura de impunidade e de desvalorização da política que ocorre nas ruas e no burburinho das multidões.

Subjaz a esse momento e às suas implicações a constante ingerência de uma política do possível, que nunca coloque em risco a governabilidade e a estabilidade que nos mantém protegidos dos fantasmas do autoritário. Mesmo que para isso tenhamos que pagar com a convivência desses fantasmas que, por vezes, saem do oculto e aparecem sob a forma da ignorância e da truculência na institucionalidade formal do Estado de Direito. Contudo, longe do formal, nas periferias e perante os corpos descartáveis, os fantasmas têm máquinas, armas e discurso, e mantêm sua constante guerra contra a democracia.