7

A difícil tarefa de interpretar aliens

Resenha de O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética (2022), de Fernando Haddad

Três pesos latinos, Gabriel Castillo

“Como chegamos até aqui?” tem sido uma pergunta e, ao mesmo tempo, uma expressão de espanto usada para pensar, explicar e refletir sobre isso a que muitos de nós assistimos estupefatos: a crença de que a Terra é plana; a vacina é uma invenção do demônio; as florestas foram feitas para ser queimadas; e, pasmem, alienígenas, convocados via telefone celular, viriam reverter a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022. Fernando Haddad, ex-ministro da educação, atual ministro da fazenda, carrega no currículo uma formação acadêmica eclética: graduação em direito, mestrado em economia e doutorado em ciência política, sempre pela USP. O caráter multidisciplinar de seus estudos se reflete de maneira muito peculiar em seu livro O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética, escrito depois da derrota eleitoral de 2018, quando coube ao petista enfrentar Bolsonaro e toda sorte de mentiras sobre ele, sua família, seu trabalho à frente da educação. Curioso notar, porém, que o autor recorre a três outras disciplinas diferentes das que compõem o seu percurso acadêmico: biologia, antropologia e filosofia da linguagem formam o referencial teórico ao qual ele recorre para perseguir esta questão, talvez a mais difícil da política contemporânea: “como chegamos até aqui?”.

Se até o fechamento da edição, lançada pela Companhia das Letras em meados de 2022, esta era uma pergunta necessária, depois dos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 a questão tornou-se imperativa para quem estiver tentando pensar o Brasil dominado pela ultradireita de articulação internacional, cuja versão tupiniquim tem sido chamada de bolsonarismo. Interrogar como chegamos até este estado de coisas é tentar compreender como duas sociedades de valores tão distintos podem ter frutificado numa só nação. Um caminho, talvez niilista demais para um homem de governo como Haddad, seria responder com a constatação de que nunca fomos, de fato, uma sociedade de valores compartilhados. Para fazer esse percurso, bastaria ter retomado a tradição da teoria crítica brasileira da qual se aproxima — dedica o livro a Roberto Schwarz e foi orientado, no doutorado, por Paulo Arantes. Entretanto, ao começar com uma apresentação intitulada “Por um novo horizonte utópico”, Haddad faz o oposto disso e, tomando como ponto de partida a ideia de reconstrução de um horizonte comum, termina com um precioso debate sobre a função da linguagem, do simbólico e da cultura num desejável processo de emancipação.

Embora não seja óbvio, não é difícil reencontrar o Haddad de sua tese de doutorado, defendida na USP em 1996, “De Marx a Habermas: o materialismo histórico e seu paradigma adequado”.1 Ajuda a compreender melhor a importância do seu encontro pessoal com o linguista Noam Chomsky na decisão de escrever o livro. Narra o autor:

Quando o mais importante linguista do mundo entrou na minha casa, o Brasil vivia sua quadra política mais dramática desde a democratização. Num surto de incomunicabilidade política, a encruzilhada entre barbárie e civilização parecia não ser percebida por parte significativa do país

(p. 9)

Chomsky estava no Brasil para visitar Lula, ainda preso no Paraná, e esteve com Haddad em São Paulo no domingo anterior ao dia da eleição de segundo turno. A conversa girou em torno da pergunta “como chegamos até aqui?”, tanto relativa ao fenômeno brasileiro de emergência da ultradireita internacional, quanto à então recente eleição de Donald Trump nos EUA.

Do encontro, surge a ideia do livro e parece ter despertado também a retomada do interesse de Haddad pela questão da linguagem, uma espécie de pano de fundo já presente no debate estabelecido por ele entre Marx e Habermas em torno do lugar do trabalho e “sua função de expansor do universo linguístico que amplia o campo das possibilidades interativas”, como ele explica na tese de 1996. É, portanto, em torno da linguagem que vou concentrar meu texto, não sem antes registrar a elegância e sofisticação teórica com que Haddad aborda a biologia no primeiro capítulo (“Novas investidas da biologia”), passa pela antropologia dialética que dá o subtítulo do livro no segundo capítulo (“Por uma antropologia dialética”), até chegar ao debate final em “A linguagem simbólica e o tempo da cultura”.

O capítulo final começa pela discussão acerca do nacionalismo e sua necessidade de unificar três elementos — raça, língua e cultura — a fim de dar unidade ao estado-nação por meio de símbolos compartilhados na vida social. “A linguagem, embora seja uma autocriação de indivíduos, presente na mente humana pela atividade dela mesma, está vinculada e é dependente da nação à qual pertence”, escreve Haddad.2 Em seguida, ele mobiliza e discute o argumento do filósofo Johann Gottfried von Herder, autor de Ensaio sobre a origem da linguagem (1772): “Nação é a associação de usuários de uma mesma linguagem, que compartilham tradições e uma determinada forma de estar no mundo”. Concepção moderna com desdobramentos nos séculos seguintes, as proposições de Herder serão perseguidas por Haddad como modo de demonstrar diferenças: entre humanos e não humanos e sua relação com a linguagem; entre cultura e biologia, sendo a primeira responsável por criar diferenças e a segunda capaz de estabelecer semelhanças. Diante das características naturais que nos fornecem a denominação de “espécie humana”, Haddad se interessa por linguagem e cultura como elementos que, mesmo nos dotando de sentido de comunidade, estabelecem as nossas principais diferenças.

Em jogo, um problema filosófico clássico, o confronto entre universal e particular. Como argumenta o autor, a espécie humana é universal do ponto de vista biológico, embora os sistemas simbólicos sejam diversificados do ponto de vista da antropologia e da cultura. Com esse resumo muito sintético, avanço, seguindo o caminho de Haddad, em direção aos argumentos de um filósofo contemporâneo da linguagem, Ludwig Wittgenstein. É dele que Haddad toma o uso contemporâneo do termo “gramática”, aqui não mais indicando um conjunto de regras formais do funcionamento do idioma, mas o compartilhamento de um vocabulário em comum — gramática dos direitos humanos, gramática do neoliberalismo, gramática do racismo etc. —, uma forma de vida estabelecida a partir do modo como usamos as palavras.

Haddad se dedica então a discutir como a linguagem, sendo uma característica universal da espécie humana, se particulariza nas diferentes gramáticas mobilizadas por diferentes grupos para se expressarem no campo social, cultural e político. Aparece, aqui, uma chave de leitura para o que vulgarmente tem sido chamado de “polarização” na sociedade brasileira: a mesma linguagem, mas com pelo menos duas gramáticas. De um lado, uma gramática da democracia liberal como valor último a ser preservado, custe o que custar; do outro lado, uma gramática de violência e fascismo justificada numa falsa defesa da liberdade, também na base do custe o que custar, como se viu nos atos violentos de 8 de janeiro.

Nesse ponto, Haddad retorna a Chomsky, inspiração inicial do livro, explicitada desde o relato daquela conversa em 2018. Ao reencontrar, nas últimas 15 páginas, a referência a Chomsky, leitores e leitoras terão maior clareza a respeito do trajeto percorrido pelo autor de O terceiro excluído. É como se todo o livro até ali fosse uma preparação para adentrar — e aderir — ao modelo teórico de Chomsky, para quem “nós seres humanos viemos ao mundo equipados com a capacidade de linguagem que nos permite transitar em universos distintos”.3 A premissa de Chomsky é mobilizada por Haddad na formulação de sua proposta original de “alienização”.

Antes de continuar, retomo um enunciado da sua tese de doutorado, em que Haddad propõe uma “conexão dialética” entre trabalho e linguagem. Faço esse retorno para abordar o termo “alienização”, um deslocamento do termo marxista “alienação”, do qual Haddad afirma querer se afastar. No marxismo, dito de forma resumida, a alienação é efeito de o trabalhador estar alijado do produto do seu próprio trabalho. Já na proposição de Haddad, alienização é devir alien, excluído, estranho, unheimlich — termo de Freud ao qual ele recorre, cuja tradução recente é “infamiliar”. O terceiro excluído do título do livro é tornado alien por uma espécie de falha no processo de reconhecimento entre eu e o outro, processo que seria, pela via hegeliana (elemento oculto no livro), responsável por nossa constituição intersubjetiva. É como interpreto o que leio nas palavras de Haddad: “A alienização não cria uma espécie biologicamente diferente, mas uma espécie culturalmente antagônica (…) em outras palavras, a alienização completa faz surgir uma figura nova, o terceiro excluído, que gera uma relação triádica contraditória entre ego, alter e alien” (p. 92). A outrora relação diática entre o eu (ego) e o outro (alter) se complexificou nos processos de evolução das culturas, levando Haddad a argumentar que o humano precisa vir a ser compreendido a partir de uma perspectiva múltipla — e não dual —, ou dialética, para repetir o termo do subtítulo do livro. Foi a insistência no dual que nos trouxe até aqui, ignorando a produção permanente do terceiro excluído.

Volto à cena mencionada no começo do texto, em que um grupo de pessoas reivindica a alienígenas a reversão do resultado das urnas de 2022. Para alguém dotado de um mínimo de articulação entre cultura, simbólico e linguagem, aquelas pessoas são classificáveis na categoria de alien proposta por Haddad. Dito de outro modo, pelo menos metade de nós classifica como alienígenas não os que virão nos salvar, mas, bem ao contrário, os próprios protagonistas da cena, pessoas convictas de que seria possível convocar extraterrestres para intervir no resultado das eleições brasileiras e “nos livrar do comunismo”. Temos ali um exemplo bem-acabado do processo de alienização descrito pelo autor de O terceiro excluído. Interessa registrar que Haddad identifica, na literatura à qual recorre, o germe da sua própria ideia de alienização, colocando-se assim como um pesquisador cuja tarefa foi escavar ali mesmo onde a ideia já estava em latência, trazê-la à tona e mobilizá-la como chave teórica de compreensão da nossa experiência de espanto e estupefação a que me referi no início.

Como método, é um livro pós-estruturalista, em que a pesquisa privilegia localizar aquilo que ficou à margem dos textos — suas próprias zonas de sombra, seus silêncios — para tornar protagonista aquilo cuja potência não havia sido percebida sequer pelos próprios autores pesquisados. O movimento aparece, por exemplo, na filosofia de Jacques Derrida e Judith Butler (para citar apenas os que me são mais familiares) e está associado a uma certa forma de releitura dos textos ou o que o filósofo Peter Sloterdijk chama de “descrição do mundo de segunda ordem”. Faço esse desvio, mesmo sabendo que a pesquisa de Haddad é de embocadura materialista, para justificar os exemplos a que recorri, por minha conta e risco, associando a profundidade da análise teórica de Haddad a episódios cotidianos da nossa vida social que não estão mencionados no livro.

Com isso quero destacar uma característica de O terceiro excluído que considero muito importante: não é um livro para leitores e leitoras leigas. Bem ao contrário, sua escrita clara mobiliza um referencial teórico difícil e navega por conceitos complexos (merece destaque a edição caprichada, com glossário e um ótimo quadro de mais de 100 pensadores). Donde eu concluo que, com a edição do livro e uma grande profusão de debates de lançamento ao longo do ano de 2022, Haddad se qualifica e se estabelece como um dos grandes intelectuais do PT, capaz de lançar luz teórica sofisticada sobre fenômenos cujas explicações têm se apresentado ou ao rés do chão ou na fugaz interpretação das redes sociais.

Penso ser necessário afirmar que O terceiro excluído é uma tomada de posição humanista, que ignora, aparentemente de forma deliberada, qualquer referencial teórico pós-humanista. Não que isso seja um defeito, mas uma característica que, do meu ponto de vista, corrobora o argumento de que, entre outras tantas coisas, o livro foi escrito a serviço de inscrever seu autor no panteão da intelectualidade do partido. O Haddad que emerge das páginas de O terceiro excluído independe do seu resultado nas urnas presidenciais para ter agora estatura de ministro da Fazenda, o mais importante dos ministérios no novo governo, a pasta na qual se vislumbra alguma chance — se é que ela existe — de recomeçar um processo de emancipação. Esse é um termo caro à tradição materialista em que Haddad se insere e, no entanto, abandonado na gramática neoliberal restrita a interpretar a sociedade pela via de políticas de gestão de recursos — cada vez mais escassos para uns e mais concentrados na mão de poucos —, tornando o horizonte da emancipação política e econômica uma utopia relegada inclusive pelos governos do PT e suas políticas de inclusão via renda, outro modo de reafirmar que “não há alternativa”.

Gostaria de chegar ao fim deste texto retornando às primeiras páginas do livro de Haddad, nas quais explica o título e faz referência ao conceito de “radicalmente outro”, presente no pensamento de Emmanuel Lévinas. O pensador lituano entra para a história da filosofia por ter proposto a ética como filosofia primeira, em resposta à devastação nazifascista cujas ações o fizeram perder toda a família nos campos de concentração, levando-o a dedicar todos os seus anos de vida depois da guerra à pergunta que nos é tão atual: “como chegamos até aqui?”; e, consequentemente, como sair desse estado de coisas. Cabe aqui retornar ao propósito mais explícito de O terceiro excluído: apresentar um horizonte utópico no qual uma renovada concepção de humano venha nos salvar. Ou, nas palavras de Haddad, para sair desse estado de coisas “devemos reentronizar a contradição no reino das ciências humanas (agora, no lugar certo), se quisermos abrir caminho para encontrar a humanidade”.4