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O futuro já terminou

Entrevista com Pier Paolo Pasolini1

Massimo Conti
tradução de Raquel Camargo e Jorge Sallum
apresentação de Cide Piquet

Apresentação

Datada de 1973, dois anos portanto antes de sua morte, esta entrevista perpassa alguns dos principais temas que ocupavam Pasolini na época e sobre os quais escreveu então, incansavelmente, em periódicos italianos, tais como a aculturação e a padronização cultural, a falsa tolerância do Poder, o genocídio cultural e o fim das formas tradicionais de vida, linguagem, religiosidade etc. Esses artigos seriam reunidos no último livro que o escritor organizou em vida: Escritos corsários, publicado pouco depois de seu assassinato, em 1975, e só recentemente lançado no Brasil (Editora 34, 2020, tradução de Maria Betânia Amoroso). Não por acaso, o tema que abre esta entrevista é o mesmo do primeiro ensaio do livro: “O discurso dos cabelos”, no qual Pasolini analisa a mutação do signo dos cabelos compridos, de índice de rebeldia e inconformismo (no contexto da contracultura norte-americana e dos movimentos estudantis dos anos 1960) a moda rapidamente absorvida pela cultura burguesa e adotada inclusive por jovens da extrema direita na Itália daqueles anos.

À primeira vista, algumas das colocações de Pasolini podem causar espanto (como causaram na época), mas é preciso levar em conta a posição de onde ele emite seus argumentos: a do artista e intelectual combativo, movido pelo pensamento de Marx, Gramsci, Ernesto De Martino, entre outros, que vê a modernidade grassar com velocidade inaudita em seu país e impor, por meio da televisão e das corporações multinacionais, um modo de vida padronizado, que destrói toda forma de cultura particular e divergente — isto é, a sociedade de consumo global, que ele chama de Novo Poder ou Novo Fascismo.

Desencantado e extremamente pessimista com essa ordem de coisas, o escritor não deixa, porém, de interpretar o mundo à sua volta e de lutar com ideias e palavras. Especialmente frutífera é a noção de uma “Mente Burguesa” que “cria, transforma e destrói as formas de vida de acordo com suas necessidades”; realizando “uma série de operações em escala mundial que tendem a incorporar e absorver todas as ‘outras’ culturas, que no caso são as culturas populares, ao grande fluxo da cultura burguesa”.

No livro, Pasolini elabora essas questões a fundo em diferentes artigos, como em “Fascista”:

Este novo fascismo, esta sociedade do consumo… transformou os jovens profundamente, tocou-os no íntimo, deu a eles outros sentimentos, outros modos de pensar, de viver, outros modelos culturais. Não se trata mais, como na época mussoliniana, de uma arregimentação superficial, cenográfica, mas de uma arregimentação real que roubou e mudou suas almas. O que significa, definitivamente, que essa “civilização do consumo” é uma civilização ditatorial. Em suma, se a palavra fascismo significa a prepotência do poder, a sociedade de consumo realizou por completo o fascismo.

Ou em “Coração”:

O novo poder consumista e permissivo se valeu justamente das nossas conquistas mentais de laicos, de iluministas, de racionalistas, para construir o seu próprio arcabouço de falso laicismo, de falso iluminismo, de falsa racionalidade. Valeu-se das nossas dessacralizações para se libertar de um passado que, com todas as suas atrozes e idiotas sacralizações, já não lhe servia.

Mas em compensação esse novo poder levou ao limite extremo a sua única sacralidade possível: a sacralidade do consumo como rito e, naturalmente, da mercadoria como fetiche. Nada mais obsta tudo isso. O novo poder não tem mais nenhum interesse, ou necessidade, de mascarar com Religiões, Ideais e coisas do gênero aquilo que Marx tinha desmascarado. […]

Nesse contexto, nossos velhos argumentos laicos, iluministas, racionalistas não apenas são inócuos e inúteis, como até mesmo fazem o jogo do poder. Dizer que a vida não é sagrada e que os sentimentos são tolices é fazer um enorme favor aos produtores. E é, além do mais, como se diz, chover no molhado. Os novos italianos não têm mais nada a ver com o sagrado; são todos, na prática — se ainda não na consciência — moderníssimos; e quanto aos sentimentos, estão se livrando rapidamente deles.

De resto, nesse ponto a passagem do tempo só confirmou suas percepções, uma vez que a sociedade de consumo se impôs como regra inescapável, aprofundando as desigualdades, disseminando a neurose e dizimando culturas tradicionais no mundo inteiro. No plano dos costumes, há décadas a publicidade e a indústria aprenderam a se apropriar de todo e qualquer signo de dissidência para transformá-los em moda, em mercadoria, esvaziando assim rapidamente seu potencial de contestação. Como diz Pasolini em outra entrevista, “no neofascismo, ou seja, no mundo do consumo, os contestadores passam muito rapidamente ao papel de súditos”.2

De fato, a lógica da produção e do consumo se instalou tão fundo em nosso modo de ser, de pensar, de nos relacionarmos com o mundo e com as pessoas, que grande parte de nossa vida está hoje pautada — para não dizer sequestrada — por aplicativos que nos condicionam a desempenhar, quase exclusivamente, os papéis de consumidor ou de mercadoria…

A quem quiser se aprofundar nas questões levantadas nesta entrevista, recomendo fortemente a leitura de Escritos corsários.


Nota

As peças em áudio são colagens sonoras a partir de poemas de Pasolini.


Massimo Conti — Pasolini, qual o seu problema com os cabeludos?

Pier Paolo Pasolini — O fenômeno dos cabeludos é algo que me incomoda e ofende.

Por quê?

PPP — Na vida que levamos hoje em dia, poucas coisas são belas. O trabalho dificilmente é bonito. O universo da cidade é insuportável. A nossa existência é feita de pequenas coisas medíocres e difíceis. O que restará de belo ao nosso redor (além da natureza e das obras de arte)?

A juventude. Pois então, esta juventude se apresenta hoje mascarada, mortificada, envelhecida. Há poucos dias, estava em Palermo à procura de personagens para meu filme, e eis que se apresenta no hotel um grupo barbado de olhos brilhantes. Olhos também simpáticos, não digo o contrário, mas eu na verdade não sabia bem com quem estava falando, não compreendia: tinha diante de mim um muro de barbas e costeletas. Não via mais as características doces e humanas da juventude, as gotas iluminadas daquela força misteriosa que se possui por tão poucos anos da vida. O modo como os jovens se vestem já é por si só degradante. Mas isso é apenas um elemento acessório da necessidade de mortificação e de mistificação da própria aparência. A principal linguagem não verbal com que os jovens se manifestam são os cabelos.

Ao príncipe

Isso implica necessariamente a decadência da comunicação verbal? A palavra está em crise?

PPP — Sim, a palavra está em crise. Nos dias de hoje, as pessoas tendem a sacrificar totalmente a expressividade em favor da comunicatividade.

O que exatamente você quer dizer com isso?

PPP — Como você sabe, toda língua é composta de várias línguas específicas, particulares, ou jargões. Há poucos anos, o italiano privilegiava a língua literária, isto é, uma língua típica da superestrutura.

Hoje se observa um fenômeno novo e enlouquecedor: com relação ao italiano já não há uma língua da superestrutura, mas uma língua da infraestrutura. Isto é, a língua das empresas, do mercado.

Esta última é uma língua da comunicação, é simplesmente comunicativa. Quem precisa oferecer mercadorias, deve se fazer compreender imediatamente por aqueles que as procuram; quem precisa produzir, deve se fazer imediatamente compreender por aqueles que consomem.

No âmbito da fábrica, dirigentes e técnicos devem imediatamente se fazer compreender. Além disso, se nos referirmos às “massas”, o discurso deve ser absolutamente compreensível. Não somente isso, não se deve nem mesmo colocar o problema da compreensão. Deve ser algo perfeitamente normal (como sempre são os discursos dos jornais e sobretudo da televisão).

Assim, se essa é a língua-guia, todo o espírito do italiano tenderá a perder particularidades e expressividade para conquistar uma comunicação pura. Trata-se certamente de um empobrecimento, de uma “perda de humanidade”. Quanto aos jovens, eles estão adotando perfeitamente esse modo de falar padronizado e totalmente uniforme, mesmo aqueles que combatem a sociedade que assim se expressa.

A palavra, portanto, está em crise. Também a literatura?

PPP — A perda de expressividade da linguagem implica também o declínio das expressões literárias e artísticas, que acabarão por ser menos solicitadas. Nossa língua será unicamente uma língua franca.

Mas será um instrumento de todos e não mais de poucos privilegiados.

PPP — Sim, é verdade, a expressividade era um privilégio de poucos. Deveria haver então um salto de qualidade para que a linguagem se tornasse um patrimônio comum. Mas a linguagem expressiva já não pode realizar esse salto. Isso é contrário à sua natureza. Imagine que eu utilizasse na televisão (o altar da língua comunicativa) formas expressivas e pessoais de linguagem. Ninguém me compreenderia.

E os escritores, Pasolini? Têm futuro?

PPP — Estão acabando. Nós somos os últimos.

Estávamos conversando sobre os cabeludos. Alguns psicólogos defendem que a moda dos cabelos compridos, que não é nova na história, esconde uma superstição ancestral, a que faz dos cabelos a sede da força viril. Você acredita nesse tipo de explicação?

PPP — Pode ser que na memória (inconsciente coletivo) os cabelos compridos representem, precisamente, aquela força sexual que está perdendo seu caráter de afirmação, ousadia e alegria que os jovens experimentaram nas sociedades repressoras. Tal perda se deve à tolerância, à permissividade…

Ao menino morto

Melhor, então, as sociedades repressoras?

PPP — Sim, na medida em que a tolerância é a pior das repressões. O peso do poder clássico criava situações extremas, que o homem vivia com todas as suas forças: ou se resignando, beirando a santidade, ou se rebelando, beirando o erotismo. Os diferentes, os perseguidos e os excluídos viviam sua condição humana como uma tragédia: mas essa tragédia não os humilhava.

A tolerância suaviza os extremos e transpõe tudo para o médio, padronizando. Certos fatos e certas pessoas não podem ser reduzidas à normalidade? Bem, listemos, dialoguemos, compreendamos, diz assim o Poder tolerante. Assim procedendo, cria diversos guetos, “os identificados”, e lhes dá a permissão de existir! O que poderia ser mais humilhante? No médio, na imensidão da maioria silenciosa, todos devem parecer iguais. Mesmo os casos sutilmente excessivos são enquadrados no “gueto”.

Os cabelos compridos, então, poderiam representar uma vingança pela desvirilização. Mas cabelos longos são também sinal de feminilidade. E então?

PPP — Como sempre, os fenômenos e as manifestações dos homens são ambivalentes. Por um lado, a frustração sexual a que me referia faz com que os jovens sintam a necessidade de uma cabeleira de Sansão. Por outro lado, há uma realidade de aceitação. Precisamente, a da frustração sexual… Adotando certa feminilidade na cabeleira, mas também na consciência, eles portanto exorcizam a frustração, eles a tornam visível.

Isso é tudo?

PPP — Isto é apenas um lado do fenômeno dos cabeludos, que é bastante complexo. Em princípio, e aqui falo dos anos 1966–67, os cabeludos representavam um ato de protesto, um protesto cultural. Pode-se discutir o nível daquela cultura, que provavelmente era muito baixo, pelo menos a julgar pelos resultados que produziram na sequência. Mas era sem dúvida um fato cultural. E, sem dúvida, de dimensões grandiosas.

Sobretudo nos Estados Unidos, pátria dos cabeludos. Lá os cabeludos produziram o Living Theatre, a música beat, as comunidades ecológicas. Neal Cassady, Bob Dylan, Allen Ginsberg.

PPP — Sim. Mas não é necessário supervalorizar o peso real de tal gênero de cultura. O que é o estupendo Living Theatre se comparado aos Estados Unidos que fizeram a Guerra do Vietnã, ao americano médio que vive no interior do Texas? De todo modo, eu dizia, os cabeludos de todos os países expressavam nos anos de 1966 e 1967 um fato cultural. Uma vez que a cultura “consumista” do poder implicava incondicionalmente, naqueles anos, jovens bem barbeados, com bons empregos, esposa, carro etc., eis que explode o protesto dos cabelos compridos. Um protesto de um tipo absolutamente novo.

A melhor juventude

De um tipo novo? Mas os cabeludos não conformistas também existiram no século XIX.

PPP — É bem verdade. Mas eles eram apenas subproduto da grande cultura romântica que produzia fenômenos muito mais elevados. E além disso os cabelos compridos não eram então usados apenas pelos jovens, mas também, e sobretudo, pelos velhos (como demonstra a iconografia do tempo). A novidade hoje está no fato de que, pela primeira vez na história dos costumes, os cabelos compridos representam a marca dos jovens. Uma marca que eu definiria como racial. De um lado, temos os jovens que protestam contra a sociedade, de outro, os velhos que se resignam. Ao erguer entre si e o seu próprio pai uma barricada de cabelo comprido ou barba comprida, o jovem tende assim a se fechar em um gueto de jovens, onde todos falam, se posicionam e se vestem, ansiosamente, da mesma forma…

Dos chineses aos metalúrgicos, dos gurus indianos aos marinheiros… A propósito, o que quer dizer essa moda militar que se espalha entre os rapazes? Parkas, camisas de piloto, cinturões, bolsas. Na França ou nos Estados Unidos também há uma moda do paraquedista esburacado, com manchas de sangue falsas.

PPP — São um pequeno parágrafo da mistificação geral. Tudo serve quando passamos a nos agitar em um mundo escolhido irracionalmente por sua inatualidade.

Então os jovens, com suas máscaras, procuram inconscientemente aquilo que parece superado ou irremediavelmente velho, aquilo que eles condenam? Como podemos conciliar essa observação com a revolta antissenil dos rapazes?

PPP — Quando se fecham em um gueto, os jovens negam a existência do pai. Recusam o encontro direto com o genitor. Com isso, rejeitam toda relação dialética. Mas os jovens, inseguros como são, devem se agarrar a alguma coisa. O que fazer então? Devendo e querendo dispensar os pais (desculpem-me se falo um pouco jocosamente) eles recorrem aos avós… Afinal, esses grandes bigodes que vemos por aí, essas costeletas, esses penteados de padres do século XVIII ou de Cristi Liberty são reaparecimentos monstruosos dos avós. E, na realidade, representam, historicamente, uma regressão.

Entendemos que o fenômeno dos cabelos compridos sofreu, ao longo do tempo, um processo de degeneração. Da cultura à subcultura, da seriedade intelectual ao esnobismo, do símbolo à moda. É isso mesmo?

PPP — Bem, a “linguagem dos cabelos compridos”, em todo seu significado, descreve uma parábola absurda, repleta de contradições. Neste momento os cabeludos representam não digo o fascismo, mas a direita. Aquela direita autêntica, lato sensu, contra a qual, na fase inicial, quando representavam ainda um fato cultural, os jovens se rebelavam. A degeneração (ou processo de integração) do fenômeno foi lenta, cheia de ambiguidades nas quais os cabeludos de esquerda eram confundidos com os cabeludos de extrema direita. Mario Merlino, o estranho personagem do caso Valpreda, pode ser a encarnação de tal ambiguidade.

Então, como se diz comumente, os extremos acabaram se tocando?

PPP — Eu sou contra afirmações desse gênero. Se enunciadas assim, parecem idiotices, coisas banais e atrozes. Os pontos de contato entre nazifascismo e esquerdismo ocorrem em um terreno subcultural comum, e têm uma origem comum no irracionalismo da revolta burguesa antiburguesa.

O que você entende por esquerdismo?

PPP — Os movimentos extraparlamentares em geral.

Também o Lotta continua? [Pasolini foi editor-chefe do jornal de mesmo nome.]

PPP — Não. Aí há algo a mais. Esse é um movimento verdadeiramente político, que continua teimosamente seu próprio trabalho. Os rapazes do Lotta continua são extremistas? Concordo, mas eles puxam a corda, e me parece que por isso já merecem ser apoiados. É necessário querer muito para se conseguir pouco. É sempre com certas formas de extremismo que se é possível avançar.

A Chiaromonte

A história, então, “segue avante em razão do exagero”?

PPP — Sim. Dos exageros, dos escândalos, das tensões.

Então você dizia que há muitos pontos de contato entre o nazifascismo e o esquerdismo. Poderia explicar melhor esse conceito?

PPP — Eu o explico existencialmente. Hoje, o fascista não precisa mentir a fundo para se encontrar com os esquerdistas. Basta mentir em certos pontos. Com relação a todo o resto (a atitude, os mitos em sua cabeça, a linguagem), a identificação não é difícil. Fascismo e esquerdismo se fundam sobre os mesmos princípios filosóficos (vejam bem, os filosóficos, não os ideológicos e políticos!). Trata-se de princípios filosóficos de caráter irracional-pragmático.

O que quer dizer com isso?

PPP — Que postulam objetivos rigorosos, totais, absolutos e, ao mesmo tempo, dão primazia à ação sobre o pensamento. A contrapartida da irracionalidade é o mito da organização. Nossos jovens místicos da política também são organizadores formidáveis. Basta pensar em suas manifestações de rua nos últimos anos. Nada assim havia sido visto antes. O dado revelador do irracionalismo substancial dos jovens é o verbalismo.

E quais são as caraterísticas do verbalismo?

PPP — São características do verbalismo dos jovens uma absoluta fluência da expressão, uma capacidade absoluta de aplainar qualquer dificuldade de pensamento. Qualquer conceito, mesmo o mais complicado, transforma-se imediatamente, em suas intervenções orais ou escritas, em palavras que o simplificam, facilitam e o tornam pronunciável. O léxico é todo emprestado da sociologia.

Outra característica do verbalismo é a estereotipia. Todos os jovens usam as mesmas frases, como se dissessem um texto de memória.

Cabelos longos e verbalismo. Há uma relação direta entre os dois fenômenos?

PPP — Os cabelos longos são uma linguagem inarticulada e ontológica, com a qual os jovens se expressam da maneira mais irracional possível, isto é, através do silêncio. O verbalismo é apenas a outra face do silêncio. De fato, eles descarregam nas palavras o valor que deveriam ter as ideias, os fatos ou a razão. Nesse sentido, é o equivalente do silêncio dos cabelos. Nominalismo e dogmatismo andam de mãos dadas.

Você, Pasolini, insiste muito no irracionalismo dos jovens. Mas o que está por trás disso?

PPP — Um estado de incerteza existencial, profundamente enraizado, que deflagra um sentimento trágico de impotência. No momento em que os jovens depõem a sua linguagem intrusiva, violenta e, no fundo, repressiva, e são pegos de surpresa, parecem extremamente desnorteados. Nunca vi jovens tão carentes de pai como os desta geração. Quando não estão olhando um para o outro, seus olhares voltam-se ao entorno implorando ajuda.

A incerteza é o sinal do neurótico. Então, os jovens…

PPP — É o que estava para dizer. Há dez anos, a neurose era encontrada no indivíduo, jovem ou velho, na sua grande maioria pertencente à burguesia. Já hoje, a neurose está estampada praticamente em todos os rostos. Não há um rosto jovem que não mostre sinais de depressão.

E não somente os jovens burgueses. Não. Essa palidez e essas rugas precoces, que são sinais de complexos, de impotência, de esnobismo tácito, das angústias de um arrivismo sem rumo, de um sentimento categórico do dever, tudo isso também é visto nos proletários e subproletários. Para um estudante que tem um pai advogado ou banqueiro, essa rebelião neurótica contra os pais (manifestada também pelos cabelos compridos) teve, pelo menos em sua origem, repito, uma forma de racionalidade e de pensamento. Mas vá ao bairro romano Quarticciolo e explique por que os rapazes têm essas mesmas atitudes, usam cabelos compridos, se vestem e se transvestem assim. Não é possível que esses meninos estejam em conflito com seus pais, que são pedreiros, operários, varredores de rua. Evidentemente, a mola propulsora do fenômeno nesse caso é a imitação. Uma forma muito baixa de bovarismo, que está se espalhando pelos subúrbios e pelo mundo operário.

De resto, a humanidade tende a se tornar homogênea. Acaba se nivelando pelo nosso modo de vida, pelo progresso…

PPP — Eis que chegamos ao ponto. O bairro Quarticciolo, como todo lugar periférico, tinha no passado a sua própria cultura. As pessoas tinham seus próprios princípios, um modo próprio de perceber o bem e o mal, uma moralidade. Representavam, assim, um modelo humano próprio. Quando um rapaz de periferia ia até o centro de Roma, era um modelo socialmente oposto ao modelo manifesto no centro burguês da cidade. Tinha orgulho de ser assim, adotava o próprio comportamento “malandro”, como um valentão da periferia, e com isso sentia-se muito forte, e inocentemente ele se considerava autorizado a julgar os estudantes como “babacas”.

Os “moços da vida” de quem falei nos meus romances eram claramente produto da cultura subproletária romana. Hoje, porém, entre centro e periferia, pela via do progresso (carros, motos e televisão, que reduziram ou anularam as distâncias) caíram todas as barreiras. E essas culturas periféricas desapareceram.

E é uma perda grave?

PPP — Sim, porque cada cultura originária e particular é autêntica. Junto com tal cultura, os “rapazes da vida” perderam tudo, sua segurança, sua linguagem. Os rapazes de Roma não têm mais uma língua própria, não têm mais suas belas invenções linguísticas, não são mais espirituosos. Dizem sempre coisas óbvias, banais. Falam de uma maneira sem adornos, nua e cinzenta.

Os jovens, portanto, são irracionais porque inseguros, inseguros porque neuróticos, neuróticos porque dissociados, culturalmente reprimidos. Talvez tenhamos tocado o fundo do problema?

PPP — O fundo da questão é, precisamente, a destruição sistemática de todas as culturas diferentes da cultura burguesa. Se fecho meus olhos e penso na história da burguesia, vejo que tal história se configura num projeto coerente. É como em uma tragédia grega. Há um noūs, uma Mente que cria, transforma e destrói as formas de vida de acordo com suas próprias necessidades.

Uma Mente Burguesa, portanto. Mas o que significa para você burguesa?

PPP — Não quero me colocar aqui como filósofo. Sou um escritor que tem fantasias, que inventa esquemas para fábulas. Quando falo de Mente Burguesa, me refiro a um tipo de civilização materialista que está agora dando a sua marca ao mundo inteiro. Meu discurso heterodoxo e pouco classista diz respeito a toda a humanidade.

Também a humanidade do mundo comunista?

PPP — Também. Eu sou um dos que acusam a Rússia de ser um Estado pequeno-burguês.

E a China?

PPP — Também a China. Embora seja o único país que, por um momento, durante a revolução cultural, tomou consciência de que o projeto da Mente visava, no caso da China, a transformar os camponeses em pequeno-burgueses. Mas a revolução cultural acabou.

Eu estava dizendo que a Mente realiza uma série de operações em escala mundial que tendem a absorver todas as “outras” culturas, que no caso são as culturas populares, ao grande fluxo da cultura burguesa. Isso serve para trazê-las de volta à roda da produção e do consumo. Lukács disse que a burguesia deve se renovar continuamente e fazer uma crítica permanente de si mesma. A Mente Burguesa, portanto, está sempre à procura de oposições e trocas. Na verdade, ela as cria continuamente.

Dedicatória

Um exemplo?

PPP — Hitler. A burguesia criou esse tipo de herói exterminador porque, a certa altura, havia a necessidade de expiar os pecados da direita por meio de uma revolta da extrema direita. Expiação da qual, de fato, nasceu uma burguesia mais moderna, antifascista. E que, claro, levou adiante os valores burgueses. Em suma, o nazismo foi uma raiva burguesa dirigida contra a burguesia.

Há muitos desses exemplos de renovação, até mesmo violenta, dos valores no âmbito da entropia, uma renovação desejada pela Mente Burguesa. Em certo ponto de nossa história, a ciência começou a ser aplicada em larga escala. Consequentemente, os meios de produção mudaram. E nasceu uma relação diferente entre produção e consumo.

Técnicas de informação se desenvolveram. Dessa vez, não de uma renovação, mas de uma verdadeira revolução econômica que está sacudindo o mundo desde as raízes. Então, a Mente Burguesa de nossa fábula teve que criar dentro do sistema não mais uma revolta, mas um processo revolucionário.

Que espécie de revolução?

PPP — A contestação dos jovens, com todos os seus símbolos. O que a burguesia queria de fato? Queria varrer tudo que impedisse as novas relações de produção-consumo, ou seja, as estruturas e as instituições da tradição: a cultura, a arte, o mundo do artesanato, o mundo agrícola dos pequenos proprietários, a própria Igreja. Todas as coisas de que ela não precisava mais. Ora, a burguesia estetizante, tradicional e religiosa não poderia realizar essa obra sozinha. Assim, ela criou uma geração de jovens manifestantes. E os jovens fizeram o que a Mente mandava.

Mas a contestação ameaçou, de certo ponto de vista, a existência do Estado burguês. Na França, na Alemanha, na Itália…

PPP — Sim, houve violência de fato durante as contestações, que foram verdadeiramente perigosas para a burguesia. Mas a Mente é muito inteligente. Ela sabe que, em certos momentos, é preciso até correr riscos.

Quando você escreveu uma poesia contra os rapazes da extrema esquerda que espancaram policiais na Itália, você foi acusado de ser contra os jovens. A acusação foi reiterada quando você escreveu recentemente um artigo sobre a degeneração da linguagem dos cabelos. Tudo o que nos diz nesta entrevista também tem um sabor polêmico. Podemos concluir que você não acredita nos jovens?

PPP — Não acredito nem mesmo nos velhos. O meu juízo é negativo sobre toda a humanidade, jovem e velha. Sentimentalmente é preciso ter compreensão, e até mesmo uma piedade fraterna pelos jovens. O seu sofrimento fundamental e a sua incerteza neurótica deles os transformam em vítimas. Através da tragédia, são enobrecidos, e a ansiedade lhes devolve a inocência que perderam junto com da alegria.

De onde deriva esse pessimismo abissal?

PPP — Não gosto do novo tipo de civilização burguesa em que tenho de viver. Não gosto da aplicação da ciência, desse ciclo apertado e inexorável de produção e do consumo, não gosto do homem transformado em consumidor. Tal como não gosto do desaparecimento da cultura, da arte, do artesanato, do camponês, da religião… Quando os camponeses estavam sozinhos nos campos e levantavam o ramo de oliveira para afastar a tempestade, representavam uma forma autêntica, real, de vida humana. Era cultura, ainda que sob a forma de uma religiosidade obscura e rústica.

Dizem que a rebelião juvenil tem também um componente religioso, até mesmo místico. Concorda com esta avaliação?

PPP — Nos séculos passados, os ascetas rejeitaram o mundo como reino do diabo. Em nosso tempo os cabeludosascéticos que perambulam pela América rejeitaram o mundo como domínio da Produção e do Consumo. Essa também é uma rejeição mística.

E a busca religiosa dos cabeludos, dos “hippies”, dos “yippies”, dos “zippies” americanos também fazia parte do projeto da Mente?

PPP — Essa talvez não. Porque se essa busca religiosa tivesse chegado às últimas consequências, teria sido o fim da civilização burguesa. Por isso, ela foi imediatamente desvirtuada. Os princípios mais rigorosos, culturais num sentido profundo, ascéticos, do movimento dos jovens tornaram-se moda, drogas, Índia, subcultura. A busca místico-religiosa subitamente tornou-se perigosa para a Mente. Mais ainda do que as desordens nas universidades americanas.

Por que mais perigosa?

PPP — Porque essa sim teria sido uma revolta total. Teria atacado as raízes da civilização racionalista e materialista que inclui, como expliquei, o próprio mundo comunista.

Já disseram também que você tem tendências místico-religiosas. É verdade?

PPP — Nunca vivi uma busca místico-religiosa. Pelo contrário, fiz uma busca racional. Precisamente porque tendia às formas religiosas, comecei a considerá-las um perigo. Qualquer coisa que você tem em excesso é sempre um perigo.

Chegamos às conclusões. Os jovens não contribuíram para aliviar seu profundo pessimismo em relação à humanidade. Não há realmente nenhuma possibilidade de salvação?

PPP — Haverá, mas não me interessa. Porque a partir do momento em que alguém diz que há possibilidade de salvação, põe-se a calar a própria consciência.

As peças em áudio são colagens sonoras
criadas a partir de poemas de Pasolini
por Marcelo Zoppi e Valentina Soares:

  • Ao príncipe. Vozes de Aline Bonamin, Cide Piquet, Valentina Soares, Danilo Volpato, Marcelo Zoppi.
    Música: Camafeu com a efígie de Beethoven (Willy Corrêa de Oliveira), com Maurício De Bonis ao piano.
  • Ao menino morto. Vozes de Marcelo Zoppi, Danilo Volpato, Valentina Soares.
    Música: Uruá for solo flute (Sarah Hornsby, bass flute), com Rodrigo Lima na flauta.
  • A melhor juventude. Vozes de Aline Bonamin, Marcelo Zoppi, Danilo Volpato, Valentina Soares.
    Música: Love (Piero Umiliani), com Piero Umiliani, executada em baixa velocidade.
  • A Chiaromonte. Vozes de Marcelo Zoppi, Valentina Soares.
    Música: Música de Gran (Willy Corrêa de Oliveira, 2021), com Caroline De Comi, soprano, e Maurício De Bonis, piano.
  • Dedicatória. Vozes de Caio, Aline Bonamin, Valentina Soares, Daniel Nasser, Danilo Volpato, Cide Piquet; ruídos de Juliano Zoppi e Pablo Romart.
    Música: Passagemsete (Rafael Carneiro), com Rafael Carneiro — executada em baixa velocidade.