6

Jean-Luc Godard: Fazer um vídeo e depois morrer (notas de um fã)

BOF!

Em um vídeo da internet,1 um homem velho observa seu próprio rosto. Ele fuma um charuto, dá algumas baforadas e solta a fumaça. Ele filma a si mesmo enquanto olha sua imagem através da tela de um dispositivo desconhecido (smartphone, tablet, laptop?). Nós vemos o que ele vê. O olhar se arregala. A cabeleira está eriçada. A fumaça, densa, vai preenchendo todo o quadro. Ele se olha e, após os primeiros segundos, diz “Ah, ouais… Bof…”. Uma tradução disso poderia ser: “É, bom… fazer o quê?”.

Um véu se instala e se dissipa. Nós vemos o que ele vê?

O velho é Jean-Luc Godard e essas imagens são consideradas as últimas produzidas por ele antes de seu suicídio assistido, na Suíça. Um último autorretrato. “Ah, ouais… Bof…”, as últimas palavras? Cansaço? Desprezo? Trabalho? Work in progress?

Histoires(s). His/story

Assistindo a essas imagens, veio-me à cabeça o anjo de Paul Klee tal como é evocado por Walter Benjamin naquele seu famoso texto sobre história. No texto de Benjamim, o anjo de Klee, um desenho feito com nanquim, giz pastel e aquarela intitulado Angelus Novus (1920, 31,8 x 24,2 cm), é descrito como uma entidade de olhos escancarados e asas forçosamente abertas por lufadas de vento de uma tempestade vinda do paraíso. Os olhos arregalados veem os destroços do passado. De costas para o futuro, descabelado, escancarado pela tempestade chamada progresso, para Benjamim, esse anjo parece querer afastar-se de algo que encara fixamente. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo vê apenas catástrofe. Para o autor alemão, essa seria uma imagem possível da história.

Quem mais além de Godard poderia encarnar esse anjo? Alguém que sempre arregalou os olhos para esses destroços, fragmentos de filmes, pedaços de estórias, histórias e história(s), planos, corpos e rostos filmados, trilhas e sons que o cinema foi depositando em nossas vidas. As imagens dos campos de concentração nazistas — esse local onde o cinema não logrou filmar —, a mão de uma atriz, um trecho da trilha de Psycho de Bernard Hermann, sons de máquina de escrever, sua própria voz, fumaça, charuto, um polegar sobre os lábios superiores, dégueulasse, uma dança entre Fred Astaire, Mefistófeles e Murnau, os Black Panters, os Rolling Stones e o demo, a Virgem, Saló, Pasolini, Chaplin, Sarajevo, Matisse, Picasso, Aragon, Renois, o pai e o filho, Beethoven, Arvo Pärt, bunda, BB, cul, bucetas peludas, ventres grávidos, pintura, pintura, pintura, palavras, palavras, des mots, beaucoup des mots. Ruínas citadas, escombros mobilizados para contar novas histórias; Godard amava o ato da citação — frases, autores, pinturas, discursos, filmes, fotografias —, no entanto, não me ocorre nenhuma citação a Walter Benjamin e à sua concepção de história (deve haver, mas não me ocorre). Ao mesmo tempo, não me ocorre ninguém mais benjaminiano que Godard e sua obsessão pelas ruínas e pelos vencidos.

(…)

Avisem todos: sai Klee, entra JLG. Godard é o novo anjo de Benjamin!

(…)

J’en ai marre. Je suis fatigué. J’ai envie de dormir”. Quem fala isso é Michel Poiccard, o personagem de Jean-Paul Belmondo em À bout de souffle (1960). No derradeiro vídeo, Godard encarna em sua despedida o anjo de Klee como quem diz: “ah, ouais, bof, vocês que se virem agora! Je file. Vou definitivamente pra margens. Corta!” Mais ou menos o que diz o tempo todo Poiccard, — “j’en ai marre” [“estou farto”]. Seria esse último vídeo uma última citação? Godard como o próprio anjo da história em sua despedida, piscando pra Belmondo. Citação da citação, mise en abîme, como gostam de falar os franceses. Só faltou o polegar sobre os lábios.

Margem

Sair de cena. Essa parece ter sido a vida e também a morte de Godard: ir para uma espécie de margem da história e povoar esse lugar, essa franja. Estar ali, só, e guiar nosso olhar para o que fica no centro. Uma “solitudeextraordinairement peuplée”, como escreveu Deleuze2 a respeito do trabalho de Godard, “une solitude multiple, créatrice. Povoar solitariamente as margens, que trabalho!

Lembrei de Michel Butor, em Essais sur les Essais, que escreve o seguinte sobre Montaigne e menciona as tais margens:

Ao redor do corpo da página, a margem é preenchida com uma vegetação de acréscimos, sobre os quais se entrelaçam outros anunciados por sinais indicativos. Quando a margem deixa de ser grande o suficiente para contê-la, essa vegetação transborda em “papéis” ou encartes. […] a partir de um certo momento, as excrescências mais importantes vão se destacar, como frutos, para continuar em outro lugar a germinar, a dar novos capítulos.3

Essa descrição de Butor da forma do ensaio em Montaigne pode ser aplicada à obra de Godard. Há um trecho de uma entrevista em que Godard proclama o seu posicionamento marginal e evoca a margem como “o que permite que as páginas se mantenham unidas”.4 Nessa fala, nós percebemos um movimento entre a margem e o centro, a possibilidade de que a qualquer momento a margem se mova e se torne um novo centro, um centro de apoio e suporte, além de um protagonismo da margem tal como observado por Butor ao comentar os Ensaios de Montaigne.

Em Godard, essa exacerbação do espaço marginal traduz-se no interesse de ir para o longínquo, numa tomada de distância para trazer o que está longe (ailleurs/alhures) ao centro (ici/aqui). E esse foi um movimento constante durante a trajetória de Godard, sempre tentando pontes: com Hollywood, com Moçambique, com a Bósnia, com a Palestina, com a infância, com a companheira Anne-Maire Miéville, com o maoísmo, com o socialismo, com a história. Sobre esse ponto, o projeto do filme Ici et Ailleurs (França, 1974, cor, 16mm, 55’) é, talvez, paradigmático. A história é bastante conhecida: em 1969, por encomenda de Yasser Arafat e com o apoio da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), Godard e Jean-Pierre Gorin foram aos campos de refugiados palestinos na região da Jordânia, Síria e Líbano, onde ficaram por três meses. Poucos meses após as filmagens, a maioria dos soldados guerrilheiros que haviam sido filmados pelos dois diretores foram mortos em disputas locais. Esse filme, que deveria ter se chamado Jusqu’à la Victoire (“Até a vitória”), acabou não vendo a luz do dia. No entanto, passados ​​alguns anos, Godard resolveu rever o material bruto daquela filmagem com o intérprete e escritor Elias Sanbar e “descobriu” que a banda sonora não havia sido totalmente traduzida e o que as pessoas diziam, nos planos em que apareciam, não havia sido traduzido do árabe. Assim, em 1974, já com sua companheira Anne-Marie Miéville, Godard retoma essas imagens, refaz a tradução e decide contrastar as imagens de Jusqu’à la Victoire (ailleurs) com novo material filmado na Europa (ici), daí o título do filme Ici et ailleurs. Em “Ici”, vemos uma família francesa de classe média assistindo televisão em 1975; enquanto em “Ailleurs” nos é mostrado como os soldados palestinos de Jusqu’à la Victoire foram treinados para morrer como mártires.

No vai e vem desse projeto, a margem às vezes fica saturada, deixando, por outro lado, o centro bastante rarefeito. Quando saturada pela presença do próprio diretor, a margem torna-se ilusória, numa espécie de ausência do corpo presente. Vemos os guerrilheiros palestinos, mas não os ouvimos, uma garotinha declama um poema e não a entendemos. Trata-se de significantes sem significado, mas nunca insignificantes. O centro levanta questões, mas não encontra respostas.

Pedagogia

Ainda sobre Ici et ailleurs, esse resgate da banda sonora (lembrando que, na película cinematográfica, a pista de som é registrada à margem no negativo), a fim de buscar um novo sentido às imagens, lembra-me um pequeno texto de Serge Daney sobre a pedagogia de Godard. Ali, Daney analisa um pouco o método de trabalho de Jean-Luc Godard a partir dos anos 1970, justamente o momento em que Godard se engaja mais fortemente na questão da produção política da imagem: “A pedagogia de Godard consiste em retornar incessantemente às imagens e aos sons, designá-los, duplicá-los, comentá-los, colocá-los em perspectiva, criticá-los como enigmas insondáveis: não perdê-los de vista, mantê-los ao alcance dos olhos, mantê-los”.5

Daney dirá que, ao decidirmos manter e acolher as imagens, nós entramos em “uma problemática moral” que remonta, pode-se dizer, ao contrato fílmico entre aqueles que filmam e aqueles que são filmados. Uma questão que diz respeito ao próprio ato de filmar pessoas e de coletar suas imagens já que, após a coleta, deve-se fazer duas perguntas cruciais: 1) como dar forma a esse material?; 2) como restituir essa forma às pessoas?

Ter essa ideia em mente é perseguir uma espécie de impossibilidade; porque se essa restituição imagética, pensada, como deseja Daney, como problemática moral, é uma forma de reparação, deve-se perguntar: mas a quem devemos reparar? Daney diria então: “Reparar é devolver imagens e sons àqueles de quem foram tirados. É também engajá-los na produção de suas próprias imagens e sons”.6

Nesse processo metafílmico, Godard e Miéville demonstram como as imagens de Jusqu’à la Victoire foram manipuladas, como o som foi esquecido e como, na tentativa de representar objetivamente a luta revolucionária, as vozes dos palestinos acabaram sendo silenciadas. Em Ici et ailleurs, o casal questiona sua própria maneira de filmar e seus próprios métodos e é aqui que a questão da reparação surge de maneira óbvia, já que era preciso reparar essa voz que faltava.

Era, portanto, necessário devolver, restituir, liberar tudo o que havia sido guardado, recolhido, retido, mesmo que já fosse tarde demais, mesmo que não estivesse no calor dos fatos e da hora. E Ici et ailleurs é um bom exemplo. Para restituir tudo aquilo, eles deram uma forma e, no processo, criaram uma lacuna.

Para ilustrar esse movimento, Daney terminará seu texto de uma forma muito melancólica, ele escreve: “o que foi retido, guardado, pode então ser liberado, restaurado, mesmo que seja tarde demais. Artifício supremo: restituem-se imagens e sons como se prestam honras: aos mortos”.7

Infelizmente para mim!

Já que começamos com anjos, queria terminar com um milagre. Tem dias que os milagres acontecem: esse ocorreu numa sessão de cinema no CineSesc, meados dos anos 1990. O filme era Hélas pour moi (1993), de Godard. O título foi traduzido para o português como Infelizmente para mim. Hélas pour moi é uma obra de produção problemática, considerado pelo próprio diretor como algo que não logrou, como uma tentativa um tanto quanto frustrada de um projeto ousado (representar Deus no cinema) ou, ainda, mais do que uma obra pronta e acabada, o filme seria uma sugestão para projetos futuros, como o próprio Godard reconhecia. Se esse filme é uma obra que se mostra incompleta para seu próprio autor, ele é fatalmente um tanto obscuro e incômodo para o público. E isso ficou claro quando, durante aquela noite no CineSesc, depois de menos de meia hora de projeção, um homem levanta-se da plateia e, em um sincero e corajoso desabafo, grita indignado: “Infelizmente para mim! Infelizmente para mim que estou assistindo a esta porcaria, isso sim!”. Dita a frase, em volume suficiente alto para que todos ali pudessem ouvir e desviar a atenção do filme, o homem sai da sala e vai embora com sua pisada firme. Acabava de acontecer, na frente de todos, uma gag godardiana.

FIN