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Experiências de Flávio de Carvalho: um periódico em quatro edições

Fundo Flávio de Carvalho/Cedae — IEL Unicamp

Princípio lógico do aparelho psíquico, a repetição instaura uma dimensão temporal paradoxal, que não implica em retorno, mas no encontro com algo imemorável; com um passado que não passa e é sempre presente, reiteradamente atualizado; com um fato novo, embora assegurado desde a origem.

O fenômeno da repetição se torna um problema central da psicanálise a partir do artigo de Freud “Recordar, repetir e elaborar — Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II” (1914). O problema então seria elevado à condição de princípio psicanalítico, ganhando novas considerações clínicas em Além do princípio do prazer (1920) e sendo renomeado como “pulsão de morte”. Sobrepondo-o ao princípio do prazer, Freud pondera que “algo resta inexplicado o bastante para justificar a hipótese de uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais instintual do que o princípio de prazer que ela domina”.

A teoria lacaniana levaria adiante o princípio freudiano de compulsão à repetição, deixando de considerá-lo uma patologia e localizando-o como um elemento estruturante da lógica que condiciona a experiência humana.1 No Seminário XI (1964), Lacan confere à repetição o estatuto de conceito fundamental da psicanálise, ao lado do inconsciente, da pulsão e da transferência. No final do Seminário X, sobre a angústia, ele indaga: “Será que a função de repetição é apenas automática e ligada ao retorno, à carreação necessária da bateria do significante, ou terá uma outra dimensão?”.2

Em 1968, Deleuze resgata o conceito para o campo filosófico e elabora o programa de uma filosofia da repetição segundo Kiekergaard, Nietzsche e Péguy.

Cada um dos três, à sua maneira, fez da repetição não só uma potência própria da linguagem e do pensamento, um pathos e uma patologia superior, mas também uma categoria fundamental da filosofia do futuro. (…) E eles não tomam a palavra “repetição” de maneira metafórica; ao contrário, têm uma determinada maneira de tomá-la ao pé da letra e de introduzi-la no estilo.3

Três décadas depois, apontando Deleuze, Nietzsche, Kierkegaard e Heidegger como “os quatro grandes pensadores da repetição” na modernidade, Agamben se apropria do título da tese de doutorado de Deleuze em conferência acerca do cinema de Guy Debord, proferida na 6ª Semana Internacional de Vídeo, em Genebra, Suíça (1995).

Em Diferença e repetição, Agamben situa a repetição no centro da técnica composicional dos filmes situacionistas de Guy Debord e do cinema de Jean-Luc Godard, especialmente depois da série televisiva Histoire(s) du Cinema (1998). Para o autor, a situação proposta por Debord é algo que pode ser repetido, mas é único; que não implica o retorno ao idêntico, mas reinstaura uma possibilidade.4 O argumento é de que a repetição e a paragem –5 apresentadas como condições próprias da montagem cinematográfica —, embora não tenham sido inventadas por Godard ou Debord, foram por eles expostas e evidenciadas como estruturais da experiência cinematográfica.

Essa repetição “não idêntica”, que opera como reinstauração de possibilidades, desenvolvida na conferência de Agamben como “um instrumento para a afirmação da diferença” — tal como descrita na tese de Deleuze — é tomada aqui como diretriz para a leitura de Experiências, de Flávio de Carvalho (1899–1973). Seus estudos de campo sobre a psicologia das massas seriam a “divisão inaugural” que faria surgir um exercício periódico em quatro edições formadas pela Experiência nº 2, a Experiência nº 3, a Experiência nº 4 e pelo Teatro da Experiência. Trata-se de um projeto periódico que reinstaura, com a repetição, a diferença.

A fome é periódica

Engenheiro formado pela Durham University e graduado em artes pela King Edward the Seventh School of Fine Arts, ambas em Newcastle Upon Tyne, na Inglaterra, Flávio de Carvalho iniciou a carreira profissional no Brasil, em 1922, instaurando no campo da arquitetura ideias que já informavam o modernismo literário e artístico. Inversamente, trouxe um pensamento estrutural arquitetônico para outras áreas em que atuou, como a pintura, o teatro e a moda. Nos estudos sobre moda, observou que sua evolução se dava a partir da oscilação entre “retas paralelas fecundantes”, associadas aos momentos de luto da história, e as “curvilíneas fecundantes”, associadas aos momentos de alegria.

A repetição — e a interrupção disruptiva de seus ciclos —, é o princípio que dará estrutura para a periodicidade como técnica composicional de suas Experiências e aparece como um objeto de interesse já em seus primeiros textos.

No artigo “A cidade do homem nu” (1930),6 Carvalho apresenta o projeto de uma cidade utópica, cujo plano urbanístico, organizado em círculos concêntricos, buscava mecanismos de superação de ciclos viciosos de hábitos e a rejeição à redundância da vida cotidiana, que em suas palavras “limita os desejos, aperta o cérebro, impedindo o raciocínio de funcionar”. A cidade utópica seria baseada em uma concepção libertária da sexualidade e pensada para uma sociedade sem Deus, sem propriedade privada e sem casamento. Ela se prestaria a outra forma de existência e de comportamento, propondo a reformulação do modo de vida e dos relacionamentos humanos — em proposições construídas a partir da leitura do socialista utópico francês Charles Fourier.

Na cidade ideal, o homem deveria despir-se e apresentar-se livre para o raciocínio e para o pensamento. A ideia de que “o homem nu é o homem do futuro” indica um movimento de retorno à origem animal, que o autor desenvolveria 30 anos depois, no livro A origem animal de Deus (1973),7 e, de certa forma, também na expedição a aldeias indígenas de primeiro contato no Alto Amazonas, na Experiência nº 4. Seus argumentos acerca da origem da vida estar situada no aparelho digestivo (e do ato de devoração como a primeira religião do homem) se referem à fome periódica como um mecanismo vital e ao ritmo da vida humana como eterna repetição.8

Da periodicidade em Flávio de Carvalho

A publicação periódica reproduz, no campo da produção intelectual, o ritmo dos mecanismos vitais repetitivos, como a fome e a respiração.

Duas experiências com publicações periódicas marcam a trajetória de Flávio de Carvalho. O primeiro projeto coletivo de publicação se dá em 1935, fomentado em sua casa, em reuniões com Oswald de Andrade para a formação do “Movimento Quarteirão”. Oswald, recém-filiado ao Partido Comunista, passara a escrever ensaios políticos e vinha de uma experiência fugaz no jornal O homem do povo, criado com Pagu9 e editado entre 27 de março e 13 de abril de 1931. Pode-se considerar que a experiência, mesmo que efêmera, tenha dado a Oswald a compreensão do periódico como um espaço de ativismo político.

A segunda publicação de intenção periódica organizada por Flávio de Carvalho foi a revista RASM (Revista Anual do Salão de Maio), lançada em 1939, na ocasião do terceiro e último Salão de Maio, exposição coletiva organizada com o intuito de dar continuidade aos debates estéticos principiados na Semana de Arte Moderna de 1922.

Com artigos assinados por expoentes do modernismo paulista, como Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Lasar Segall, Tarsila do Amaral — com uma reflexão sobre as pinturas Pau Brasil e Antropofagia —, e do próprio Flávio de Carvalho, com textos sobre o Clube dos Artistas Modernos, sobre o Mês das Crianças e dos Loucos, sobre a Noite dos Poetas Alienados e sobre o Teatro da Experiência. Movidos por um impulso de revisão, o grupo afirma em manifesto: “O Salão de Maio é contra a insistência de ser moderno, que considera uma forma de não arte”.10

No editorial intitulado “Um plano de 6 anos”, Flávio de Carvalho expõe sua intenção de longo prazo, estabelecendo para a revista uma cronologia em três períodos: arqueológico, dialético e visionário. Mas a revista teve apenas um número editado e não chegou a realizar a sua vocação periódica.

Mas, embora não tenha chegado a experimentar a temporalidade expandida implicada na repetição de edições de um projeto de publicação impresso, Flávio de Carvalho publicou sistematicamente em jornais — sendo definido como jornalista por alguns autores.11 Se um dos desafios colocados pela geração surrealista dos anos 1930 foi o de repensar a noção de obra e suas formas de materialização e distribuição, é possível entender as publicações de Flávio de Carvalho, suas intervenções no campo jornalístico e a manipulação sobre a cobertura de seus trabalhos em seu conjunto disperso e fragmentário — no escopo de um projeto editorial periódico de longa duração, uma não revista expandida no tempo.

Nos anos 1930, o artista-jornalista publicou uma série de entrevistas no Diário de S. Paulo com artistas, historiadores e intelectuais europeus, como Man Ray, Marinetti, Tristan Tzara, André Breton, Herbert Read e Roger Caillois. Pode-se considerar também que o exercício periódico em Flávio de Carvalho é estimulado pela publicação frequente de artigos na imprensa diária e seu como plataforma de exposição e divulgação de seus projetos arquitetônicos, muitos deles rejeitados em concursos. Em 1928, desenhos do projeto para o Palácio do Governo foram publicados na primeira página do Diário da Noite, sob o título “O futuro palácio do governo paulista”, e em outros dois artigos do mesmo jornal.12 Já seus artigos funcionavam como enunciados e reflexões acerca de suas atuações transdisciplinares no teatro, na arquitetura, na pintura e na moda.

Flávio de Carvalho é o primeiro artista brasileiro que coloca em cena, já nos anos 1930, uma noção de obra expandida, que explode os limites dos suportes e das categorias que, até o início do século XX, definiram as linguagens artísticas.13 Sua série Experiências pode ser lida nesse contexto, portanto, como peças articuladas que atravessam diversos meios de comunicação, formatando o seu próprio veículo de publicação periódica.

As Experiências são reconhecidamente três, com numeração 2, 3 e 4, o que indica pertencerem a um conjunto coeso, operando segundo um paradigma periódico, em campo expandido. São projetos de intervenção em contextos sociais, cujos meios de difusão são exteriores à lógica tradicional da exposição de arte, assumindo a forma de textos, artigos em jornais, livro, peça de teatro e filme. Um periódico organizado em quatro edições, na forma de uma procissão, um desfile, um bailado e uma expedição.

Primeira edição: a procissão

Embora se considere que a Experiência nº 2 (a primeira de que se tem notícia, realizada em 1931, mas numerada como segunda) tenha sido realizada sem planejamento prévio, ela acontece em consequência direta aos recém-iniciados estudos do autor sobre psicologia e etnografia. A ideia teria surgido intempestivamente, quando Flávio de Carvalho se deparou com uma procissão de Corpus Christi no centro de São Paulo, onde tinha seu ateliê-casa. Ele então vestiu-se “metade arqueólogo e metade cínico cético”14, entrou no cortejo, decidido a desafiá-lo, percorrendo-o na contramão, com a cabeça coberta com um boné.

No relato publicado três meses após o evento, em setembro de 1931, no livro Experiência nº 2 realizada sobre uma procissão de Corpus Christi — Uma possível teoria e uma experiência, o artista descreve os fatos separadamente de suas opiniões e divide o livro em duas partes: Experiência e Análise.

Na primeira parte, descreve minuciosamente o progressivo descontentamento da massa, que passa do estranhamento ao protesto, ao tumulto, ao extremo ódio, à perseguição e ao desejo coletivo de linchamento do provocador. A narrativa também se presta à auto-observação do próprio estado emocional diante do crescimento do perigo: do cinismo inicial à agitação, o medo, a “grande tensão nervosa”, o pânico, o terror, o “sentimento profundo de insegurança” e o completo turvamento da razão, que iria culminar na diluição da percepção de si mesmo “como um ser inteiro”. O relato da completa destruição de sua personalidade pelo medo é acompanhado por desenhos do desmanche de sua integridade física.

A análise da segunda parte do livro é construída em diálogo com as teorias de Freud (em “Totem e tabu” e “Psicologia das massas” e “Análise do Eu”) e James Frazer (em Origens da família e do clã). Ao comparar a procissão a uma parada nacionalista e o Cristo à pátria, o artista ataca os movimentos fascistas dos anos 1930. No capítulo “Totemismo político atual”, ele ensaia uma análise da situação política brasileira após a revolução de 1930, interpretando-a como um “ciclo histórico patriarcalismo-totemismo”.15 Carvalho compara o acontecimento que deu fim à República Velha e inaugurou a Era Vargas com eventos em curso na Europa, interpretando as rebeliões na Espanha e na Itália contra seus ditadores como “o período inicial do totemismo”.16 As reflexões totemistas de Carvalho ainda antecedem os movimentos artísticos franceses Contre-Attaque e Acéphale. Nos anos que atravessaram a Segunda Guerra Mundial, Georges Bataille conduziu as revistas Cahiers du Contre-Attaque e Acéphale, ambas homônimas aos coletivos e orientadas à crítica ao fascismo.

Em sua análise da Experiência nª 2, Carvalho associa o comportamento dos fiéis da procissão sob o “domínio de um chefe invisível” com as “massas dominadas por um chefe despótico”:

A pátria numa parada nacionalista funciona como Cristo numa procissão. A pátria é aquele ideal que pertence a todos e que é o igual de todos, cada indivíduo com o sentimento da pátria se considera com um certo direito sobre ela, se considera mesmo o igual da pátria, a pátria assume um caráter de um emblema totêmico onde todos os elementos da nação é o igual do emblema.17

O mito totêmico proposto por Freud refere-se a um estado primordial da sociedade. Nesse tempo ancestral, o macho mais forte impunha sua liderança ao bando, restringindo a si o acesso às fêmeas. Quando os machos expulsos e inferiorizados se aliam, matam o “pai” e o devoram, passando a totemizá-lo, designando-o como “pai originário” (Urvater). “O morto se torna ainda mais forte do que fora em vida”.18 De acordo com o psicanalista Christian Dunker, o parricídio é reencenado periodicamente por meio de ritos como o “banquete totêmico”.19

O que Carvalho faz, afinal, na Experiência nº 2, é reencenar o banquete totêmico, mas com a introdução de uma diferença decisiva: mesmo que com toda a sua diferença ele desafiasse o sentimento profundo de igualdade que os fiéis sentiam em relação ao seu “chefe invisível”; o artista também se colocava na posição do chefe despótico e odiado, que será perseguido e canibalizado.

Em declarações à imprensa, posteriores ao fato, o artista declarou que havia tempos vinha se dedicando a estudos sobre a psicologia das multidões e, para melhor orientação, decidira fazer uma experiência sobre a “capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência da força das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana”.20 A pesquisa sobre a psicologia das massas na Experiência nº 2 é, portanto, a origem que se repete nas três experiências descendentes.

Segunda edição: o bailado

Na peça O bailado do Deus morto, que inaugurou o Teatro da Experiência, no verão de 1933, o banquete totêmico volta ao foco de Carvalho. A peça pode ser lida como uma espécie de versão dramatúrgica da Experiência nº 2.

Descrito como “experimental”, no texto A epopeia do Teatro da Experiência e o bailado do Deus morto (1939), o “bailado” refere-se à morte de um deus mitológico em forma de boi ou de touro. Inicia com o “bailado dos soluços”, em que quatro mulheres alinhadas de um lado e quatro homens com instrumentos africanos do outro cantam: “O deus é morto… O deus é morto”.

A impossibilidade de execução da peça — censurada e objeto de intervenção policial na noite estreia, no palco do Teatro do Clube dos Artistas Modernos — imprime à experiência um destino não muito distante do desafio à procissão.

Movi um processo contra o Estado, mas perdi. Creio que assim foi, principalmente, por ter sido julgado por um juiz integralista, politicamente influenciado por uma informação inverídica da polícia, na qual eu figurava como comunista — o sr. Fairbanks, entre outras coisas, não entendia e não queria entender o teatro.21

O imbróglio, que levou à impossibilidade de encenação de O bailado em outras duas tentativas, acabou por determinar o fim do Teatro da Experiência, que tinha entre seus projetos encenar peças de Oswald de Andrade e de Brasil Gerson.

O Teatro seria um laboratório e funcionaria com o espírito imparcial de pesquisa do laboratório. Lá seria experimentado o que surgiria de vital no mundo das ideias: cenários, modos de dicção, mímica, a dramatização de novos elementos de expressão, problemas de iluminação e de som e conjugados ao movimento de formas abstratas, aplicações de predeterminados testes (irritantes ou calmantes) para observar a reação do público com o intuito de formar uma base da psicologia do divertimento, realizar espetáculos-provas só para autores espetáculos de vozes, espetáculos de luzes (…).22

Ainda que em curtíssimo período de existência, pode-se afirmar que o Teatro da Experiência chegou a funcionar como um laboratório de pesquisa da “psicologia do divertimento”, buscando “novos moldes de expressão”,23 testando a capacidade de leitura e adesão de seu público a um pensamento inovador, disruptivo e resistente ao presente.

Terceira edição: o desfile

Fundo Flávio de Carvalho/Cedae — IEL Unicamp

Repetição. Em 1956, duas décadas depois de quase ter sido linchado em via pública, Flávio de Carvalho desafia as mesmas ruas do centro da cidade de São Paulo, mais uma vez trajando uma peça de vestuário fora do padrão. Diferença: desta vez, o artista controlou a recepção pública com uma série de intervenções midiáticas antes, durante e depois da execução da Experiência nº 3.

A estratégia de difusão de sua nova invenção, o New Look: Moda verão para o novo homem dos trópicos, contou com uma coletiva de imprensa na sede do principal jornal paulistano da época, os Diários Associados, como uma etapa programada do cortejo. Embora o dispositivo configure uma repetição da Experiência nº 2 — uma torção da indumentária, do hábito, do costume, da tradição, da moda, em favor da desconstrução na normatividade da moda ocidental —,24 o efeito causado é bem diverso ao da experiência anterior.

Diferença e repetição. Se a repercussão jornalística da experiência realizada sobre a procissão de Corpus Christi se restringiu às páginas policiais dos jornais, o lançamento oficial do New Look ganhou uma cobertura diversificada, abrangendo a imprensa internacional — em uma reportagem, meses antes, na revista Time —,25 as revistas semanais e a televisão.

O programa de difusão começou com a publicação do conceito no jornal O Comício, em maio de 1952, na entrevista concedida ao jornalista e crítico Luís Martins, em que Carvalho sugere três trajes adequados para o clima de São Paulo: um traje de verão, roupas para primavera/outono e um traje de inverno.

Depois, viriam os artigos da coluna A Moda e o Novo Homem, assinada por Flávio de Carvalho e publicada ao longo do ano de 1956 no Diário de S.Paulo. Neles, o artista analisava a história da moda a partir de conceitos etnográficos e psicológicos, desde os hábitos indumentários dos neandertais até o New Look.

Essas publicações prepararam o terreno para o grande desfile, ocorrido na quinta-feira, 18 de outubro de 1956, quando o filósofo aventureiro saiu às ruas trajando saia curta, blusão, sandálias e meia arrastão. O evento — que rapidamente virou um cortejo de curiosos, formado basicamente por homens — foi documentado desde a sua partida, na Rua Barão de Itapetininga, até o saguão da redação dos Diários Associados, onde se consolidou na coletiva de imprensa e na sessão de poses para fotógrafos — passando pela Rua 7 de Abril, pela Praça Ramos de Azevedo e pelo Cine Marrocos, na Rua Conselheiro Crispiniano, onde o artista comprou ingresso e entrou na seção, furando o dressing code da época que previa paletó e gravata para eventos sociais.

Em 1963, em artigo na Folha de S.Paulo, Carvalho anunciou a intenção de escrever um livro nos moldes daExperiência nº 2, em que faria a análise dos fatos e das reações provocadas:

Um dia tenho a intenção de escrever um livro sobre a minha experiência na moda, incluindo o impacto emocional causado na nação brasileira, baseado nos recortes de jornais que colecionei, tenho um plano de classificá-los e escrever um livro que chamarei de Experiência nº 3.26

A Experiência nº 3 não chegou a se consolidar em livro. Mas tampouco se resumiu à performance na ensolarada tarde paulistana. É preciso considerar o evento em sua forma expandida: seu desdobramento da rua às páginas de jornais de todo o Brasil, das revistas semanais O Cruzeiro e Manchete, e em programas de televisão, num amplo arco temporal que se estendeu de 1952 a 1963. Nessa edição organizada de escritos e repercussão, não faltariam pérolas, como o comentário do poeta Manuel Bandeira, publicado em um jornal: “Na verdade, se tivéssemos juízo e coragem, adotaríamos o traje inventado por Flávio de Carvalho. Como não temos, chamamo-lo de louco e vaiamo-lo”.27

Quarta edição: a expedição

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O papel estratégico da mídia repete-se nos estágios preparatórios da expedição amazônica que ganharia a alcunha de Experiência nº 4. Em entrevista, Carvalho declarou seu interesse em juntar-se a uma expedição do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que pretendia estabelecer o primeiro contato com a aldeia indígena Xirianã, isolada no Alto Rio Negro. Com isso, sem divergir essencialmente do projeto original sobre o estado primordial das sociedades, ambicionava avançar em seus estudos sobre “a evolução humana e social”. Quase uma variação sobre o mesmo tema.

O artista começou divulgando na imprensa o plano de realizar um filme na floresta — um longa-metragem misto de diário de viagem e ficção, baseado na saga de uma jovem branca sequestrada por indígenas, que viveu isolada entre eles por 20 anos, antes de voltar à civilização. A viagem de fato se dá em 1958, quando Carvalho participa de uma expedição a aldeias indígenas de primeiro contato no Alto Amazonas, entre os rios Camanaú, Demini, Toototobi e Negro. Durante a expedição, filmes foram rodados nas comunidades indígenas Waimiri-Atroari, no Rio Camanaú, e Paquidare, no Rio Demini, onde os expedicionários participaram de rituais de cremação e de colheita.

A experiência produziu uma quantidade considerável de relatos e registros, mas o projeto cinematográfico não foi concluído.28 Ainda que não tenha conseguido publicar um relato extenso da expedição em forma de livro — o que, segundo o crítico Rui Moreira Leite, era a pretensão do artista, a Experiência nº 4 pode ser reconstituída a partir dos relatos de Flávio de Carvalho publicados sistematicamente na imprensa paulista na primeira fase da expedição; dos relatos do fotógrafo Raymond Frajmund (1927–2016); e do também fotógrafo Norberto Esteves, do jornal Última Hora. Há, ainda, na biografia do autor publicada no livro A origem animal de Deus e o bailado do Deus morto, um relato condensado do evento que paralisou a viagem.

Em 1958, participa de uma expedição entre índios de primeiro contato no Alto Amazonas (rios Camanaú, Demini, Toototobi e Negro), colhendo abundante material para seus estudos. Sofrendo interferências nos trabalhos, atos de sabotagem e ameaças de abandono, após uma marcha de 300 quilômetros na mata virgem, se desentende com o chefe da expedição e, ao descer o Rio Demini, amotinou-se, entrincheirando-se num dos barcos, abre fogo sobre os navios da expedição, que desciam o rio, e desafia o referido chefe para um duelo a tiros, tendo este se recusado, refugiando-se no porão do seu navio.29

Outra variação possível sobre o tema da Experiência nº 4 é o texto A origem animal de Deus (1973), que condensa seus estudos mágico-religiosos, mitológicos, psicológicos e antropológicos, apoiados na literatura científica de Freud, Frazer e William James, e reduz a descrição da experiência a um breve relato impressionista30 do desejo de retorno à origem animal.

A volta às profundezas da floresta ou ao fundo do rio é uma volta a uma origem, uma origem animal inferior: local onde se encontram os deuses-animais do homem do começo. Observamos que tanto a floresta quanto o fundo do rio fornecem o ambiente apropriado aos primeiros alimentos do homem.31

A viagem ao Alto Rio Negro foi uma etapa crucial na trajetória “cético-arqueológica” de Flávio de Carvalho. Mas o texto A origem animal de Deus está longe de expressar conhecimentos que um real contato com povos isolados poderia ter ocasionado. Especula-se em que medida noções de “evolução humana e social”, extraídas como verdades da ciência moderna, poderiam ter sido colocadas à prova se a experiência em campo e o contato com cosmogonias indígenas tivessem se completado.

Reinstaurar a possibilidade

Fundo Flávio de Carvalho/Cedae — IEL Unicamp

São contraditórias as versões sobre a existência ou não de uma Experiência nº 1. Dadas as dificuldades de estudo impostas pela própria forma livre e dispersa que a obra de Flávio de Carvalho assume, não está descartada a descoberta de uma primeira edição de seu projeto periódico, em algum exercício de escavação.

A existência, ou não, de uma primeira edição soterrada não exclui o aparecimento de outras peças no jogo. Em 2010, o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, de José Celso Martinez Corrêa, “inventou” uma Experiência nº 6, baseada em uma inversão do texto O bailado do Deus morto, e performada na 29ª Bienal de São Paulo. Ainda é possível que outros projetos de viagens não realizados — há relatos de que Carvalho teria planejado uma expedição para o “berço dos gafanhotos” e outra para o Araguaia, com o cineasta Mauro Civelli —,32 guardassem a intenção de continuidade do projeto periódico.

Essas possibilidades em aberto impelem a repensar a temporalidade e a contemporaneidade em Flávio de Carvalho. O caráter aberto e processual da obra reinstaura a possibilidade de suas Experiências serem realizadas por outros artistas, assim como de terem sido produzidas por ele próprio em eventos efêmeros, não nomeados e não numerados, elaborados na forma de palestras, encontros, publicações ou mesmo breves instalações montadas em jantares para amigos. Como a descrição de Abraham Palatnik do “festim diabólico” que Flávio promoveu em sua fazenda para o artista e o crítico Mário Pedrosa:

Na sala de jantar, a iluminação sob o tampo de vidro da mesa projetava sombras distorcidas nos rostos dos comensais, obscurecendo os pratos (…). No vão central, um aparato borrifava água no tampo de alumínio da lareira, produzindo uma nuvem de vapor colorida por uma iluminação especial. No teto, Flávio projetou uma enorme placa refletora, flanqueada por luzes coloridas, que deslizava sob a claraboia para deixar penetrar a luz do dia ou proporcionar a vista noturna do céu estrelado.33

As quatro edições do projeto periódico de Flávio de Carvalho aqui descritas configuram a obra aberta e processual de um artista dedicado a pensar e atuar contra o seu tempo, em favor de tempos por vir e da invenção de outras formas de vida e de comunicação. Uma experiência digna dessa aventura seria imaginar a sua articulação em uma publicação construída a partir de um outro modelo de comunicação, forjado a contrapelo dos meios correntes e cujo Editorial poderia começar assim: o risco, a experiência limítrofe, o desejo de penetrar a floresta e o desconhecido são mecanismos das Experiências para colocar em prática exercícios de contraposição à ordem coletiva. O paradigma periódico instaura a repetição não como retorno ao idêntico, mas como instrumento de superação de tabus e de hábitos, para a afirmação da diferença.