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É possível um modelo de entrevistas para pegar mentirosos amorais?

Bruno Dunley

“Impossível constranger ou fazer assumir pecados e contradições um candidato amoral”, escreveu Wilson Gomes, professor titular de Teoria da Comunicação na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em sua prolífica conta no Twitter, em 22 de agosto de 2022, por ocasião da sabatina de Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional. Não foi a única vez que Gomes se dedicou a esquadrinhar o modelo de entrevista ao vivo com presidenciáveis, que se tornou central a partir do pleito de 2010. Em artigo científico para a revista Compolítica, identificou, digamos, o “valor de troca” do gênero: uma construção vendida como uma “autorrepresentação genuína e autêntica da política diretamente aos eleitores”. Classificando a suposição como “simples demais”, Gomes sustenta que o modelo é uma “arena argumentativa”, em que está em jogo, essencialmente, o controle da argumentação em que o jornalismo tenta, “por meios retóricos e recursos discursivos”, manter o seu controle sobre a fala política (GOMES, 2013). Os principais mecanismos seriam a atitude do entrevistador(ceticismo ou crença, hostilidade ou simpatia, desconfiança ou confiança), capaz de influenciar o tom geral da entrevista, e os comportamentos verbais usados para “manter os entrevistados na linha”. O arsenal discursivo inclui, mas não se limita, a interrupções de raciocínio, insistência, mudança de assunto e correções.

Corta para 2022 e a constatação, por parte do mesmo Gomes, de que William Bonner e Renata Vasconcellos até seguiram o receituário clássico, mas foram incapazes de entregar uma entrevista com Bolsonaro que superasse “o vazio das respostas”. Como escreveu o professor da Ufba em sua coluna na revista Cult, o método do Jornal Nacional, “que consiste em apertar o político, mostrando suas contradições, o seu mau comportamento e os desastres passados que ele protagonizou” nada pode contra alguém como o capitão reformado, para quem “mentir é natural”.

Com efeito, a entrada em cena no centro da esfera pública de atores com nenhum compromisso com a factualidade representa um desafio maiúsculo às práticas jornalísticas canônicas. Em termos políticos, coube à extrema direita protagonizar o processo. Com uma leitura acurada acerca dos mecanismos de funcionamento das mídias sociais e do contexto de pós-verdade — em que as emoções importam mais do que a razão, as versões valem mais do que os fatos —, autocratas como Trump, Orbán, Duterte, Modi e Bolsonaro lograram construir seu próprio ecossistema midiático à margem das grandes corporações e, sobretudo, colar ao jornalismo a noção de narrativa, entendida aqui como um relato ideologicamente enviesado. Parte da culpa se deve ao próprio jornalismo. Em A miséria do jornalismo brasileiro, publicado em 2000, Juremir Machado da Silva alertava que o ideal utópico da objetividade havia sido destronado sem que se pusesse nada no lugar. Nós, os jornalistas, também abrimos a porta para aguda crise de credibilidade atual, baseada na perda do monopólio sobre o relato do real.

Voltemos à entrevista com Bolsonaro e seu fracasso. É desejável uma reatualização do modelo, mas será possível? De modo geral, o jornalismo tem tentado combater fake news e desinformação com a prática do fact checking — a checagem de fatos, procedimento indissociável do processo de apuração que ganha hoje status de gênero e negócio próprio. Os efeitos mitigatórios são tímidos: como mostra o estudo de Ivana de Lima Fontes sobre as agências Lupa e aos Fatos, os desmentidos têm disseminação pequena e raramente alcançam o público atingido pelo engodo — na hipótese benevolente de que a audiência desejasse efetivamente conhecer o relato da verdade, o que nem sempre é o caso.

A princípio, portanto, um formato híbrido de entrevista com checagem de fatos em tempo real — alternativa que tentaremos defender a partir de agora — pode parecer a junção de dois fracassos. Convém analisar mais de perto os limites e as potencialidades dessa união. Uma primeira providência é olhar, em perspectiva histórica, as diversas encarnações do gênero entrevista.

Em The News Media (2016), Anderson, Downie Jr. e Schudson contam que, durante muito tempo, a entrevista foi considerada uma prática “indigna” e “impertinente”. Corria o século XIX e o ideal do jornalismo, então uma vocação para indivíduos com ambições literárias, era a escrita de ensaios. Foi apenas a partir dos anos 1860 que essa invenção tipicamente americana foi pouco a pouco se consolidando como um procedimento padrão da profissão. O cruzamento com o campo da política deu origem a um formato de entrevista que podemos chamar de “mitológico”. Na entrevista confrontacional, entrevistador e entrevistado se enfrentam de maneira belicosa. À moda de um interrogatório, o gênero pode incluir “pegadinhas”, interrupções, intervenções agressivas e outras estratégias para fazer o entrevistado admitir um malfeito ou cair em contradição.

Alimentada pelas concepções de jornalismo como quarto poder e do jornalista como herói, o formato confrontacional tem seu padrão ouro na série de entrevistas do apresentador britânico David Frost com Richard Nixon, em 1977. Não por acaso retratado em uma produção hollywoodiana (Frost/Nixon, dir. Ron Howard, 2008), o encontro termina com a admissão de culpa do ex-presidente norte-americano por obstrução de justiça no escândalo Watergate. A confissão, assim, seria fruto do talento do entrevistador, da técnica da entrevista e de uma apuração meticulosa.

A disseminação da televisão e sua importância crescente nas campanhas políticas fez o gênero caminhar progressivamente para a espetacularização. A constrição do tempo televisivo originou análises pessimistas e atestados de óbitos precoces. Em seu célebre Sobre a televisão, Bourdieu classifica os formatos televisivos de debates como farsa e diz que, na urgência, é impossível pensar. Mesmo em crise, esse modelo clássico segue ocasionalmente produzindo bons frutos. A entrevista de Poliana Abritta com o então demissionário ex-ministro da Justiça Sérgio Moro (Fantástico, 24 de maio de 2020) é um bom exemplo. Utilizando largamente a técnica que Nilson Lage chamava de “perguntar sobre a resposta” — questionar o comportamento concreto do entrevistado diante das situações vividas —, Poliana consegue desconcertar o ex-juiz, que passa a responder de forma lacônica ou tentar, sem sucesso, tergiversar sobre sua participação no governo Bolsonaro em geral e na reunião ministerial em que se sugere prender os ministros do STF. (“Durante a reunião, o senhor passou quase o tempo todo de braços cruzados, calado. Por quê?”; “O ministro Weintraub defendeu pôr vagabundos na cadeia, começando pelo STF. O senhor, que já foi juiz, se calou. Por quê?”; “Ficar calado não é uma forma de se omitir? Se o senhor disse que não queria sujar sua biografia, por que lá atrás o senhor aceitou o convite [para ser ministro]?”.)

Mas há entrevistados e entrevistados. Moro não tem o traquejo de Bolsonaro, e — benefício da dúvida — talvez não comungue da mesma amoralidade absoluta do ex-chefe. É preciso conceber algo novo, e os gêneros jornalísticos se prestam a essa plasticidade. Para Marques de Melo (2020) “se os gêneros são determinados pelo ‘estilo’, e se este depende da relação dialógica que o jornalista deve manter com seu público, apreendendo seus modos de expressão (linguagem) e suas expectativas (temáticas), é evidente que a sua classificação se restringe a universos culturais delimitados”. Ou, conforme Manuel Chaparro (1998), “é provável que cada uma dessas espécies conquiste predominância em algumas épocas ou circunstâncias. Está na variável da eficácia a hipótese da evolução das formas discursivas na imprensa e o surgimento de novas tecnologias”.

O que os dois maiores expoentes brasileiros dos estudos sobre gênero sublinham é que os formatos mudam, relacionando-se com seu contexto socio-histórico. Ramón Salaverria (2008) fala em hibridação, Daniela Bertocchi (2010), em fusão de espécies, Daniela Oswald Ramos (2016), em crioulização das linguagens. Novo giro em torno da questão central: pode-se conjecturar acerca de uma mestiçagem de tal ordem que dê origem a um gênero “antimentira”? Concretamente, pode-se desenhar um modelo de entrevista com checagem de fatos ao vivo?

Há obstáculos evidentes. Experiências de fact checking em tempo real, realizadas por humanos ou softwares, são limitadas. Entre os checadores há justificada resistência de operar na urgência, pois erros na checagem têm, de fato, peso dobrado. Defendo, porém, que é factível pensar em um modelo beta, que se defina transparentemente às audiências como trabalho em evolução.

Há hoje vasto acervo de desmentidos produzidos pelas agências de checagem. Como o ciclo das fake news pode ser algo repetitivo, é possível e provável que um mentiroso em série recorra a inverdades já checadas. Uma equipe de retaguarda numerosa o suficiente poderia pesquisar o inventário e, por meio de ponto eletrônico ou de um GC na tela, chamar a atenção do entrevistador e do público. Uma espécie de “VAR” da entrevista que, à moda do árbitro de vídeo, não é acionado em todas as situações polêmicas de uma partida, mas em momentos específicos –que, no caso da entrevista, poderiam ser as enganações previamente checadas.

Ainda que bem sucedida, a checagem em tempo real não resolveria todos os problemas das entrevistas ao vivo com mentirosos. A edição dos melhores momentos, responsável hoje por parte relevante da disseminação do conteúdo nas mídias sociais, seguiria iluminando os pontos convenientes às diferentes inclinações políticas. Por outro lado, a checagem incidiria na própria elaboração do fato jornalístico — a entrevista ao vivo é a técnica, o gênero e o fato em construção —, ao menos dificultando o trabalho da edição enviesada. Há outros obstáculos: entrevistas menos abrangentes, conversas mais “travadas”, e o já mencionado risco de erros na checagem. Mas talvez os benefícios de tentar superem os riscos. O preço que pagamos pela tolerância à mentira na esfera pública tem se mostrado elevado demais.