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Direitismo com passaporte em dia

Nota sobre entrevista com Pasolini

Qualquer documento sobre Pasolini tem, naturalmente, sua dose de interesse. Mas não vejo por que razão uma revista de esquerda deva publicar, como está fazendo a Rosa neste número, uma entrevista com o cineasta sobre os jovens, até hoje merecidamente inédita em português. Ou, pelo menos, não dá para publicar essa entrevista sem um comentário, como se aprovássemos o que está escrito ali.

Anoto algumas coisas brevemente.

“Eu tinha diante de mim um muro de barbas e costeletas”, diz Pasolini, relatando um encontro seu com a nova geração. Tudo bem. Posso preferir um rosto liso, mas como não ver na moda daquela época um símbolo de protesto e inconformismo frente aos mais velhos?

Só que Pasolini, ao contrário, reclama do “conformismo” dos jovens: “eles estão adotando perfeitamente esse modo de falar padronizado e totalmente uniforme, mesmo aqueles que combatem a sociedade que assim se expressa”.

Não sei se isso era verdade em 1973 (provavelmente não), mas hoje — como sempre, acho — cada grupo ou tribo tem suas gírias, seus códigos, e, pobre ou não, uma linguagem como a do rap não expressa conformismo.

Os escritores “estão acabando. Nós somos os últimos”, declara Pasolini. Pergunto-me quantas vezes isso já foi dito, desde que Coelho Netto lamentou a morte das musas na Academia Brasileira de Letras, aí por 1920. Dou apenas um exemplo de vitalidade: com coisas ruins e boas, a literatura pós-colonial tem rompido o monopólio branco, masculino e europeu nas obras de ficção.

O que se pode dizer é que a “centralidade” da literatura não existe, como existia em 1850, por exemplo; o cinema “substituiu” o teatro, o concerto de rock “substituiu” a ópera — só que não. Substituíram no sentido de que não são o foco principal, a forma básica da expressão cultural para um público. Mas existem e se diversificam. Sem ser demasiado otimista, o modelo é muito mais o de um universo em expansão do que o de um buraco negro.

Passamos daí a outro clichê reacionário. “Melhor, então, as sociedades repressoras?”, perguntam ao cineasta. “Sim”, responde Pasolini, “na medida em que a tolerância é a pior das repressões. O peso do poder clássico criava situações extremas, que o homem viveu com todas as suas forças: ou se resignando, beirando a santidade, ou rebelando-se, beirando o erotismo.”

Será que não é um progresso não precisarmos nem de santos nem de heróis? Pessoas comuns, homens, mulheres e crianças, foram torturadas, mortas, esmagadas em seus sonhos e talentos; passaram fome, frio, abandono e humilhação. “Pelo menos beiraram a santidade!” Nobilíssima cretinice. “Ou se rebelaram!” Ora essa, rebelaram-se para que a repressão cessasse. E eis que Pasolini reclama da falta de repressão.

Os “cabeludos” seriam, para Pasolini, frustrados sexuais: “há uma realidade de aceitação. Precisamente, a da frustração sexual… Adotando certa feminilidade na cabeleira, mas também na consciência, na medida em que exorcizam a frustração, eles a tornam visível.” Difícil achar que um “cabeludo” em 1970 fosse mais frustrado do que um “escovinha” em 1950…

E como conciliar a “feminilidade” na cabeleira com a “muralha” de barbas e costeletas que ele lamentava alguns parágrafos antes? É o tipo de “insight” de tantos “críticos culturais” que reúnem migalhas de evidência aqui e ali para suas grandes teorias do “tudo-hoje-não-presta”.

Não vou continuar. Assinalo apenas o final: “não gosto do homem transformado em consumidor. Tal como não gosto do desaparecimento da cultura, da arte, do artesanato, do camponês, da religião…”

Certo, a sociedade de consumo claramente não tem futuro, e, como Pasolini, tenho a maior antipatia pelos misticismos “new age”, pelos irracionalismos “alternativos”, pelos ataques à cultura e, óbvio, pelos extremismos que surgiam na esquerda italiana dos anos 1970.

Agora, reclamar do desaparecimento da religião? Na Itália de 1970? Isso, quando só agora, 50 anos depois, o papa admite que homossexuais, embora “pecadores”, pelo menos merecem nosso amor…? O gesto foi considerado um avanço no mundo católico. Enquanto isso, o mundo inteiro retrocede no rumo de mais religião… Com os resultados: mais infelicidade individual e mais justificativas para a violência coletiva.

Trata-se de simples tagarelice reacionária; o fato de alguém ser ou ter sido de esquerda, como Pasolini, parece constituir num passaporte para que se leve a sério um tipo de clichê em que a direita se refestela, assumindo ares “inteligentes” e “críticos”. Já temos muito disso na imprensa diária para que a Rosa reproduza esse tipo de coisa.