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Fazer política com a onça e a capivara

Resenha de A cosmopolítica dos animais, de Juliana Fausto1

A cosmopolítica dos animais (frame), Darks Miranda e Juliana Fausto

Uma conta no Twitter que promove a fauna brasileira posta um vídeo de uma onça-pintada caçando uma capivara. A onça é prontamente cancelada por uma parte dos usuários e usuárias da rede social, chocados pela violência da imagem: “Temos tecnologia o suficiente para produzir proteína vegetal e alimentar estes bichos, protegendo a vida de milhares de animais em extinção”, diz um dos tuítes.

O cancelamento da onça-pintada virou meme e, como tantos outros debates do Twitter, assinala o tempo monstruoso, como diria Gramsci, que vivemos. Novas preocupações surgem e as formas de conceber a política se transformam fundamentalmente, sem que tenhamos ainda o repertório e o vocabulário afinado para acompanhar a mudança de contexto e de sensibilidades. Como conceber a onça e a capivara como seres políticos, sem pedir da onça que ela vire vegana? Como defender a capivara sem se voltar contra a onça?

Juliana Fausto busca oferecer respostas a esses questionamentos em seu livro A cosmopolítica dos animais. Ela analisa quatro tipo de práticas multiespecíficas para demonstrar o fato de que animais fazem política e que a política é também animal.

A teoria política dos animais proposta por Fausto se baseia numa epistemologia feminista e em autores muito mencionados, mas raramente comentados de forma tão esclarecedora e acessível, como Donna Haraway, Gilles Deleuze e Brian Massumi. Uma parte importante do dispositivo do livro é interrogar essas autoras e autores, filósofas e filósofos, sobre o que é animal e em que isso é diferente de humano, se o é — a maior parte dos filósofos faz grandes esforços para demonstrar que sim, Fausto faz ainda melhores esforços para demonstrar que não. A partir desse debate descobrimos que discutir a diferença entre animal e humano é mais do que falar sobre os limites entre natureza e cultura. Desde a frase clássica de Aristóteles que define o humano como um animal político, a diferença entre humano e animal requer definir o que é política e quem faz ou não faz política.

Uma das conclusões essenciais do livro é de que pensar uma cosmopolítica dos animais é diferente de pensar sobre como criar uma legislação de “bem-estar animal” ou uma “declaração universal dos direitos animais”. Na verdade, o livro é em parte uma crítica a essas propostas legislativas, porque as duas seriam algo como pensar uma política humana para os animais. A cosmopolítica dos animais é mais que a noção tradicional de política porque ela é com os animais.

Mas aí outra pergunta fundamental na estrutura do livro, mas que não fica resumida de forma tão sistemática é: o que é um animal? O livro tenta restaurar como essa questão foi fundante na filosofia para que se pudesse construir uma ideia clara do que é o ser humano. A cosmopolítica dos animais tenta fazer entrar na filosofia a ideia de que somos animais. A urgência que a leitura do livro transmite, no entanto, deixa perceber que esta ideia, a de que somos animais, está longe de ser pacífica para todas as filósofas e todos os filósofos, o que aumenta sua importância.

Diferenças naturalmente existem entre humanos e outros animais, podemos até mesmo decidir que elas são aquelas que a filosofia tradicionalmente construiu. O grande porém é: ao construir dispositivos científicos, tecnológicos e políticos para sustentar a diferença filosoficamente construída entre humanos e animais, aqueles que lucram ativamente com a construção desses dispositivos continuarão a fazer desaparecer diversidade e comunidade, continuarão avançando o que a autora chama de “política do extermínio”. A política do extermínio é uma política desencarnada com a vontade de Deus. Uma das mais fortes argumentações que o livro faz em favor do reconhecimento da nossa posição como animal vem na demonstração de que esse reconhecimento acompanha uma política que, em vez do extermínio, tem como horizonte o afeto — e afeto não quer dizer amor, mas a partilha sensível do mundo.

Eu disse “aqueles que lucram ativamente com a construção desses dispositivos de diferenciação entre humano e animal”, em vez de “nós”, seres humanos antropocênicos, para responder um questionamento que o livro levanta. No seu argumento sobre políticas animais, fazer essa distinção entre humanos, e subverter o significado da indistinção entre humanos e animais outros que humanos, pode ser a base dessa política de afeto, de partilha, de aliança. Linhas de fratura entre humano e animal, e linhas de fratura intra-humanas que criam indistinções entre humanos e animais são dispositivos políticos: não é “só” uma questão filosófica, é uma questão de poder. É a aproximação de certas categorias de humanos ao animal, sua manutenção nessa zona cinzenta, que com frequência justificam a dominação de alguns grupos por outros. O livro não defende uma declaração universal dos direitos dos animais porque ele não defende que, para tirar certos humanos dessa zona de indistinção, o melhor a fazer é trazê-los, decididamente, para o lado dos humanos-políticos em oposição aos animais-apolíticos. Antes, trata-se de reconceber os limites da política.

Ao se posicionar do lado da epistemologia feminista, Fausto, sempre muito próxima a Haraway, propõe um feminismo que se faça com as cadelas, com as galinhas e com as vacas, por exemplo, a quem as mulheres são frequentemente assimiladas para serem excluídas da humanidade e da política. Um feminismo que se desinteressa da afirmação de igualdade entre mulheres e homens — “as mulheres também podem” — ou que está continuamente buscando mostrar que “nós também” podemos ser como elesgirlboss, badass, o que seja. Um feminismo das cadelas, das galinhas e das vacas — e de todos os animais que questionam o binarismo de gênero, pois não têm vaginas, não parem etc. —, é um feminismo não por direitos iguais, mas por uma reconstrução comum das formas de construir, e por uma redistribuição muito mais radical do poder.

Alguns ganham e muitos perdem com as formas filosóficas existentes de diferenciar ou igualar humanos e animais, de sobrepor a razão a outras formas de relacionar-se com o mundo. Habitar a indiscernibilidade em vez de afirmar uma humanidade seria assim interessante não só para os animais outros que humanos, mas para todos os humanos que perdem como resultado dessa insistência filosófica na particularidade humana, ou que foram e continuam a ser relegados a um estado menos humano de humanidade. E são relegados não só pela filosofia, mas por todos os sistemas materiais de compartilhamento e construção do mundo que nela se baseiam.

Na introdução, Fausto parte da definição conhecidíssima do homem como um animal político por Aristóteles para discutir como, no pensamento filosófico, essa distinção entre humano e animal foi sempre usada não apenas para construir nossas compreensões do que faz a particularidade humana, mas também do que faz a particularidade da política. A introdução também coloca Agamben e Deleuze em diálogo ou, melhor ainda, em contraposição, como interação mais recente dessa forma de determinar o que é política por meio da distinção entre humano e animal. A vida nua de Agamben seria de alguma forma a redução do homem ao animalesco (não a única, mas uma das leituras possíveis) e o Estado de exceção do autor do Homo sacer, a retirada do homem do mundo jurídico ao “animalizá-lo”. Se o homem é um animal político, retirá-lo da política é reduzi-lo a animal e reduzir o animal a inerentemente apolítico. O argumento de Agamben poderia assim ser entendido como a constatação da existência de homens animalizados e uma reflexão de como “desanimalizá-los”, devolvê-los ao humano. Estou usando aqui homens de propósito, pois assim se constrói o argumento, mas a realidade é que boa parte, possivelmente a maioria desses homens animalizados foram e ainda são mulheres. Podemos pensar no estado de exceção no qual viveram tanto tempo, uma parte delas saindo desse estado à medida, por exemplo, que o casamento não funciona mais como instância jurídica de exceção em relação ao ordenamento jurídico normal e à medida que uma parte delas não é mais vista como incapaz e acessa, por exemplo, o direito ao voto — outras continuando nesse estado por muito mais tempo, pois são duplamente retiradas do humano quando, além de mulheres, são também racializadas ou não são típicas em termos psíquicos ou físicos. O exemplo talvez mais concreto aqui seria o fato de que ter útero ainda serve para que as mulheres não sejam medidas em si mesmas como fim — não serem portadoras de direito — como vacas, galinhas e outros seres com útero, considerados apolíticos no nosso sistema. A capacidade reprodutiva delas (nossa) está condicionada a princípios ordenadores que dão aos que participam da política e do direito a capacidade de excluir esses seres do processo de decisão e legislar submetendo-os a princípios que os excluem.

O problema em Agamben, pelo que entendo a partir da leitura de Fausto, é que só se pode ser um ou outro: ou homem ou animal — quando não podemos determinar o que tal coisa é, ela é indiscernível, vira vida nua. A mulher é um ser jurídico ou a fêmea reprodutora do macho humano? É nesse espaço de dúvida que morrem as mulheres pobres e negras que tentam abortar no Brasil. O problema aqui sendo que, para sermos alçadas a sujeitos de direito, as questões que Fausto traz nos levam a perguntar se é possível tornar-se homem político apesar dos nossos úteros de humanos, e, se sim, parece que seria necessário criar uma diferença entre os nossos e os úteros de vaca e de galinha que alce esses úteros para fora do estado de exceção que os rege agora, o que nos permitiria deixar de ser vida nua e virar vida humana plena, com autonomia corporal plena, com úteros que não são mamíferos, mas políticos, humanos — fins em si mesmos e não meios para a reprodução da espécie.

O lado que toma Fausto parece ser mais o de Deleuze e Guattari — que veem a indiscernibilidade, o fato da existência dessas zonas de indiscernibilidade, onde, por exemplo, não sabemos em que ponto termina a mulher como parte do grupo do homem e começa a mulher como fêmea do macho humano, não como um problema a ser resolvido em favor do primeiro, mas uma forma de devir-animal. A política do devir-animal não é uma afirmação de liberdade que poderia desembocar na demanda por direitos humanos fundamentais, mas uma saída ou uma política de fuga, o oposto de uma afirmação de poder. As mulheres poderiam afirmar o poder sobre o próprio corpo, definir elas mesmas para que servem seus corpos, em vez de serem submetidas a fins definidos de forma exterior a elas e por isso exigirem seu direito à autonomia corporal como já possuem, e desde muito tempo, os homens brancos.

No entanto, a proposta de Fausto é muito mais ambiciosa. Trata-se de pensar outros afetos, outras formas de corpo que o ser mãe para as mulheres, e nesse sentido, pensar mesmo que há afetos comuns, de fato, entre corpos com útero — seja de vaca, de galinha ou de humano. Esses afetos comuns, no entanto, em vez de nos excluírem do clube dos donos de si, poderiam ser uma porta de entrada para pensarmos a partir das nossas potencialidades afetivas e quais afetos estão sendo permitidos ou entravados pelas relações de poder existentes. Galinhas, mulheres, vacas, todas têm potencialidades afetivas que constituem potencialmente política, política dos animais, cosmopolítica. E a proposta de Fausto é ambiciosa porque os tempos pedem ambição e uma política de afetos para frear a extinção.

O livro está dividido em quatro partes que dialogam com quem pensa bem-estar animal ou direitos animais, ainda que procurando essas “linhas de fuga” cosmopolíticas para as soluções que essas duas ideias propõem. As quatro categorias de animais políticos que compõem as quatro partes do livro trazem com ela questões de prática na relação com animais outros que humanos.

Primeiro, Fausto busca estabelecer que os animais participam da política porque a biopolítica sanitarista que estruturou a urbanização desde o fim do século XIX também criou categorias de animais: errantes, pestes, animais para abatedouro e domésticos (estes sendo uma categoria urbana oposta às três primeiras).

Em seguida, a partir de uma “breve pesquisa sobre o zoológico como instituição contemporânea da modernidade capitalista”, o “animal de zoológico” aparece também como uma categoria política colonial, uma ilustração de uma dinâmica fundadora da política moderna e contemporânea, das formas como a soberania se afirma por meio de movimentos de captura e indiferença. A brincadeira aparece como movimento oposto desse de captura, como uma categoria que cria uma condição de impossibilidade para a captura, uma categoria política para competir com a razão.

No capítulo sobre animais experimentais, a literatura aparece oferecendo respostas alternativas à pergunta “O que pensam os animais de laboratório?”. Alternativas, no caso, às formas como a ciência tentou responder essa pergunta. Ele é também um dos que mais dialoga com questões de bem-estar animal, levantando o tema do animal como categoria de ser que não sofre, do afeto e das alianças ou desalianças sobre as quais se constrói a Zciência.

Há uma parte sobre animais desaparecidos e uma reflexão sobre o desaparecimento a partir das “fitas de monstro”, ou seja, filmes de horror. A mudança de estatuto ontológico que nos coloca face ao apocalipse aparece como a consequência lógica de todas essas tentativas de categorização política do animal como ser fora da política. O livro, ao oferecer alternativas a essas formas de categorização, produz o tempo todo mudanças de perspectiva como a que eu propus no caso da problemática do direito ao aborto. No ponto sobre a catástrofe climática, não se trata mais de “salvar os animais”, nem de nos salvar. Não salvaremos ninguém, porque as lógicas de sacrifício também participam da construção dessa particularidade humana como salvadora, salvar sendo uma outra forma de exercer seu controle sobre o mundo dito natural. Trata-se apenas de viver e morrer diferentemente, melhor (no sentido spinoziano, de aumentar nossas potências de agir).

No total, para além da política, da filosofia, e da ciência, o livro contribui fazendo os humanos se desmistificarem: deixarem de ver os animais (que não aparecem com população, mas sempre como indivíduos, com nomes e biografias) como uma anti-imagem de si, e começar a vê-los como seres outros, que abrem novos horizontes e novas perspectivas de nós para nós, humanos. Alguns humanos já são mais desmistificados historicamente, e não é à toa que as alianças teóricas da autora são com o feminismo, o antirracismo, o pós-colonialismo. Alguns humanos não têm o privilégio de criar essas imagens de si como Deus.

Ao fim da leitura, o leitor, ou pelo menos esta leitora, sente ter desenvolvido um mecanismo para viver num mundo danificado. Para quem já se deu conta de que não basta se perguntar se deve ou não comer carne, se cancela a onça ou salva a capivara, o livro oferece material suficiente para aprender a pensar a ausência ou presença — que tipo de presença — que os animais têm em suas utopias pessoais e construções coletivas.

Outro ponto inegavelmente forte do livro são as histórias muito bem contadas e os documentos muito detalhados que constroem o argumento, tornando a leitura de filosofia algo vivo, habitado e concreto. O que permite também abrir muitas portas para projetos de construção de novas práticas na ciência.

Finalmente, num livro que filosofa muito, mas que também conta muitas histórias — sobre gatos em condomínios e em ilhas colonizadas, macacos que servem o chá e cavalos que falam, ratos candangos e formigas que querem destruir a raça humana — contar histórias de forma diferente aparece como a principal alternativa para o imbróglio que a filosofia nos colocou. A literatura e o cinema têm um lugar muito importante como forma de demonstração de possíveis diferentes coconstituições de mundos — ou, ao contrário, para ilustrar como a filosofia da particularidade humana cria as condições das políticas de extermínio.

Uma parte importante do livro é pensar que a política da particularidade humana é uma política de guerra contra os animais ou com os animais. A política é sempre também violência e não o oposto dela. O que fazer quando há uma guerra sendo travada contra os animais e contra quem não queira participar dessa política de extermínio, ou representa um entrave no seu caminho? A política do extermínio é uma guerra que se trava indo buscar o que é definido como não humano para exterminá-lo, subordiná-lo ou transformá-lo em máquina inanimada. Fausto parece propor como solução a dissidência, um outro lugar sem guerra. Mas não seria exatamente essa a promessa que nos leva a ser cúmplices do extermínio, a de que vamos encontrar uma forma de existir “fora da guerra”, fora da violência, onde tudo é lei, ordem e paz iluminada pela razão?

Perto do fim do livro, há uma análise sobre o livro de M. Bekoff e J. Pierce, Wild Justice, e sobretudo sobre a afirmação peremptória que os autores fazem da existência de comportamento moral nos animais, usando o exemplo da brincadeira. Fausto identifica um limite no pensamento dos autores, porque a afirmação de moralidade nos animais fica restrita ao comportamento intergrupo — é usado o exemplo dos lobos entre si, mas não dos lobos com os alces que os lobos comem. Com seu humor e insight típicos, Fausto comenta: “para os autores parece que é falta de educação — e de moralidade — brincar com a comida”. Wild Justice, de maneira um tanto mais refinada e mais interessante politicamente, ainda faria algo análogo aos usuários do Twitter, usando o comportamento humano como compasso moral para entender animais.

Bekoff e Pierce são criticados por uma visão reducionista e liberal da moralidade: matar para comer seriam comportamentos imorais. Mas como analisar a violência dos animais, então? E que tipo de aliança e/ou política estabelecer com eles que não sofra desses limites twitteiros de julgamento?

A cosmopolítica não aceitaria a guerra heroica, nem a relação entre violência, conflito e Outro de Carl Schimtt, nem aquelas dos liberais, todas as formas usuais de guerra do homem contra seus Outros: mas talvez seja preciso revidar, em algum momento, ou se defender. Uma fresta de solução aparece com Pierre Clastres, antropólogo das guerras indígenas — guerras em que o Outro nunca desaparece, mas é incorporado e, sobretudo, guerras para evitar a acumulação de poder pelo Estado. Uma forma de combate de responsabilidade na qual há morte, mas que não é guerra de extermínio.

A conclusão é toda elaborada em torno dessa dificuldade: estar diante de uma situação de combate ao mesmo tempo que se quer sair do imaginário da guerra. Trata-se de reinventar um imaginário da luta, uma política de aliança e de inimizade, uma cosmoguerrilha com a onça e a capivara?