Brasil 200: a oca, o Estado e o fogo

Heroico, 2022, Marília Furman
Na quarta-feira, 2 de novembro, recebi por Whatsapp, da diretora de um colégio de elite de São Paulo, uma imagem inesperada. Mostrava mais de vinte colunas de madeira fincadas na terra e encimadas por vigas que, em seu conjunto, descreviam uma construção circular.
Do lado de fora, um campo verde umedecido de orvalho refratava a luz do sol. Dentro, o chão forrado de cinzas quentes de onde subia uma pequena coluna de fumaça. Eis a cópia da imagem.

Captura de tela do meu Whatsapp.
Esses paus são da aldeia pataxó de Barra Velha, no Parque Nacional do Monte Pascoal, sul da Bahia. Segundo Arassari Pataxó, formavam a estrutura da Oca Sagrada, um espaço de uso coletivo destinado ao ritual da lua cheia, a danças e cantos, a casamentos e ritos de passagem.
Na noite do domingo do dia 30 de outubro, um grupo de pessoas invadiu Barra Velha e ateou fogo na frágil cobertura da Oca Sagrada, feita de palha seca de tiririca-do-brejo. Fazia pouco mais de uma hora que Lula tinha batido Bolsonaro nas eleições presidenciais.
Acesos em sua cólera, os invasores escolheram a dedo o objeto do seu ódio. O espaço onde os pataxós celebram sua cosmovisão, suas crenças, seus laços de solidariedade. Enfim, onde se vive uma vida alternativa à do fundamentalismo cristão, dos neocowboys do agro e dos “faria limers”.
O Parque Nacional do Monte Pascoal delimita a região onde Pedro Álvares Cabral travou os primeiros contatos com os povos originários do que um dia seria o Brasil.
Que o crime de ódio tenha acontecido numa área sagrada para os pataxós, num espaço quase mítico de fundação da história colonial, no ano de comemoração do bicentenário do Brasil e no dia de uma importante vitória política contra a direita autoritária, tudo isso mostra que o sagrado ainda carrega, entre nós, aquele duplo sentido original da palavra sacer: o da divindade e da maldição, o do culto celebratório e do banimento, o da sacralização que exclui e violenta.1
E mais. Mostra que 2022 prolonga as tensões mais antigas da nossa formação, que 2022 ainda vive e respira, no ritmo frenético de hoje, as cadências e pulsações do século XIX e do século passado.
Diante desse enredo complexo, a Rosa decidiu organizar o hors-série “Brasil 200”. A ideia não era se lançar num mergulho monográfico sobre 1822, o processo de Independência, o sentido da nossa emancipação, se fizemos uma revolução ou uma contrarrevolução, temas próprios de um hors-série disciplinar para historiadores.
A Rosa quis, antes, oferecer um balanço recapitulativo da nossa experiência coletiva nacional explorando temas hoje relevantes pela perspectiva dos diferentes campos do saber social, do direito à sociologia agrária, da história ao ativismo indígena, da antropologia aos estudos ambientais. Certa vez, o célebre historiador francês Fernand Braudel escreveu que pretendia interpretar a trajetória da França através de uma totalização histórica, “examinando o passado segundo todas as perspectivas das diversas ciências humanas”, pois “a história total [é] a única história verdadeira”.2 Tirando o arroubo e as pretensões dilatadas do original, este hors-série segue a sua lição. É um pequeno exercício de totalização histórica da experiência brasileira. Não no sentido de abraçar o Brasil inteiro, a globalidade dos seus eventos, mas de estimular uma visão de conjunto dos problemas formativos do país: destruição ambiental, escravidão, racismo, etnocentrismo, reprimarização da economia e ordem constitucional.
O passado nunca se repete nem mesmo como reprodução, mas está por toda parte como se fosse indelével. Esse paradoxo, de sua presença surda universal e de sua irreprodutibilidade, se expressa na obra-performance da qual retiramos as ilustrações deste hors-série: Heroico, de Marilia Furman. Retraçando o monumental e violento Independência ou morte (1888), de Pedro Américo, na escala 1:1 entre agosto e setembro deste ano, Furman mostra que o passado é ao mesmo tempo menor e maior que a si mesmo. Menor porque irrecuperável. Maior porque só fala através de diferentes prismas de tempo: o tempo dos eventos narrados (quadro de Pedro Américo), o tempo do passado mais remoto dentro dos quais se formam os eventos narrados (a que se reporta Pedro Américo), o intenso aqui e agora (a ação de redesenhar Pedro Américo), a visão expectante do futuro (o sentido da ação de redesenhar Pedro Américo). A totalidade está no horizonte interpretativo da dialética das durações. Assim em Furman. Assim também neste hors-série.
Uma constante que atravessa os textos aqui apresentados, bem como os distintos tempos históricos que cada um põe em movimento, é o jogo entre acumulação, conflito distributivo e políticas públicas. O leitor notará que o Estado emerge daí com um caráter duplo. De um lado, prometendo tratar seus cidadãos como sujeitos de direitos, bem como dirigir ciclos pactuados de crescimento econômico, a boa cornucópia de onde todos podem tirar o seu quinhão. De outro, invisibilizando a extorsão ambiental, mascarando massacres de negros e de povos originários e aceitando a violência das ditaduras militares.
A dinâmica entre acumulação, distribuição e política pública, essa tensão que corre o arco da nossa história, está atingindo novos patamares de intensidade no século XXI. Agora que vivemos uma época de pós-crescimento, na qual ninguém mais se ilude com a possibilidade de reeditar milagres econômicos, todos os conflitos distributivos vistos neste hors-série se acentuarão, ganhando forma, peso e densidade no racismo, na disputa de gênero, na legislação trabalhista, na estrutura fundiária e no controle do Estado.
Mais do que nunca, o Estado será mecanismo de inclusão e banimento, de celebração e maldição. Síntese do crime em Barra Velha, ele vai ser a Oca Sagrada de todos nós. Certamente, muitos quererão fazer dele um espaço “pluricultural, pluriétnico, pluriepistêmico e democrático”, como pede Gersem Baniwa, intelectual indígena e um dos autores do hors-série. Mas os textos aqui reunidos mostram que é preciso manter a guarda alta. Pois não são pequenas nem novas as forças que tentarão fazer do Estado uma arena ampliada para seu desejo de destruição, intolerância e barbárie. O fogo ainda pode tomar nossa aldeia inteira. Boa leitura.