De escravos a negros livres: poder público e desigualdades raciais no Brasil, c. 1800–19001


O escritor argentino Jorge Luís Borges disse uma vez que o passado é tão imutável que nem sequer Deus consegue alterá-lo. “Na Suma Teológica se nega que Deus possa fazer que o passado não tenha sido”. Ainda assim, os seres humanos têm aberto um caminho astucioso para transformar o que já passou. Em vez de eliminar os eventos históricos, eles podem cortar os vínculos de causa e efeito entre o antes e o depois. “Modificar o passado não é modificar apenas um fato”, explica Borges, “é anular suas consequências”. Nessa operação, a memória ocupa lugar central. Quem desbota suas imagens e motivos, quem silencia seus códigos e suas mensagens, evita que a recorrência da memória faça vincos no cotidiano, nos nossos modos de perceber, elaborar, socializar, transmitir e acumular valores coletivos. O arado que não pode arar a terra não é arado. Mal comparando: o passado que é expulso do presente não é passado.
No Brasil, os tempos da história são especialmente manipulados quando o assunto é a relação entre poder público, escravidão negra e desigualdades sociorraciais. Embora um número cada vez maior de pessoas perceba que o problema das nossas desigualdades tem relação com a prolongada história da escravidão, séculos de silenciamento e despolitização apagaram o papel do poder público como operador dessa conexão. Ainda hoje em dia, seja no ensino formal, seja nas mídias sociais e nos veículos de comunicação, as práticas representacionais da escravidão popularizam algumas teses que subestimam a ação do Estado na organização histórica do escravismo e das desigualdades raciais entre nós.
Em algum momento de sua vida, você já esbarrou nessas teses. A principal delas diz que a escravidão seria um legado do colonialismo português, e não do Brasil independente, que não podia senão aceitar a herança maldita da ex-metrópole. Outra, complementando a anterior, sugere o prolongamento do cativeiro depois de 1822 teria se dado por meio de institutos do direito privado apenas tolerados pelo poder público, constrangido que estava pela necessidade de respeitar o tradicional direito de propriedade dos cidadãos. Por fim, fechando o raciocínio, uma terceira diz que as diferenças raciais provenientes da escravidão teriam se perpetuado no século XX via mercado de trabalho, onde critérios de ocupação, qualificação e remuneração definem uma dinâmica de renda que escapa ao alcance do poder público. Nas três teses, o poder público sai de cara limpa e alma lavada na história da escravidão no Brasil.
Neste breve texto, apresentamos uma contranarrativa. Vamos sustentar que o poder público agiu deliberadamente para construir, manter e prolongar desigualdades socioeconômicas de amplo aspecto entre brancos e negros no Brasil. A argumentação enfrentará as teses mencionadas acima em três breves tópicos, sugerindo que o estado da desigualdade racial nasceu de um projeto político montado, pensado e organizado pelas superelites que conduzem os negócios e a economia do país.
Primeiro, vamos demonstrar que o Estado foi protagonista na prática de crimes destinados a instituir um regime de escravização ilegal de centenas de milhares de africanos traficados em violação do ordenamento jurídico nacional e internacional. Depois, ressaltaremos que o fim do contrabando negreiro deu lugar a um massivo comércio nacional de escravizados, politicamente montado sobre um esquema imoral que arrebentou com famílias escravas, destruiu redes de sociabilidade dos negros e, novamente, descumpriu a lei para abastecer com trabalho barato os centros dinâmicos da economia brasileira. Por fim, indicaremos que, nos últimos anos da escravidão, os arranjos legais nacionais sofreram uma remodelagem que visou à criação de um regime de subcidadania para os negros no pós-abolição. Ao longo dessa história, a ação do Estado se deslocou da construção jurídica do escravizado para a construção social do negro, um percurso em que a política pública se racializou para prolongar as regras de sociabilidade da escravidão na sociedade pós-escravista que então se formava.
Descolonização: crise do escravismo na Era das Revoluções
A ideia de que a escravidão não foi mais que um legado involuntário do passado colonial desconsidera a grave crise de legitimidade que a instituição do cativeiro humano enfrentou bem quando o Brasil surgia para o mundo como nação independente no começo do século XIX. Uma crise de múltiplas raízes, que iam do idealismo antiescravista à geopolítica autointeressada de Londres, das revoltas coletivas de escravizados nas Américas às aspirações sociais de afrodescendentes livres por igualdade jurídica com brancos no Atlântico.2
A Grã-Bretanha era uma espécie de ONU informal da época. Era o poder a quem todo país recém-independente pedia reconhecimento diplomático para entrar no clube das nações. Quando o Brasil se separou de Portugal, Londres se valeu dessa alavanca e só reconheceu o Rio de Janeiro depois de condicionar seus bons serviços diplomáticos, militares e financeiros à assinatura de um tratado internacional proibindo o trissecular e volumoso tráfico negreiro transatlântico para o Brasil.
Os escravistas do Brasil também enfrentavam outras forças geradas na Era das Revoluções. Escravizados e negros livres tinham se destacado nas batalhas de independência de quase todas as novas nações do Novo Mundo, e a retórica republicana cavava espaços para a contestação do cativeiro. Em nenhum lugar viveram uma glória tão arrebatadora como no atual Haiti. Mergulhados de corpo e alma numa guerra sem tréguas entre 1791 e 1804, transformaram a ex-colônia francesa, rainha do açúcar mundial, maior joia escravista da economia atlântica, na primeira república negra, livre e antiescravista do continente. O nome do novo país, Haiti, despontou então no horizonte dos escravistas como um sol funesto e condenado que nunca devia ter nascido.
Por fim, da Era das Revoluções também surgiram ameaçadoras formas jurídicas de emancipação escrava, fosse por meio da abolição imediata, fosse pela construção de saídas de emancipação gradual. Entre 1811 e 1821, Chile, Argentina, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela declararam leis do ventre livre. Pela primeira vez na história, a escravidão sofria ataques categóricos de ativistas, juristas, políticos e teólogos, e o Brasil era cercado por um cordão de liberdade.3
Em um primeiro momento, os senhores brasileiros sentiram o golpe. Levado pela maré montante do antiescravismo, José Bonifácio e outros deputados conseguiram emplacar no primeiro projeto de Constituição do Brasil (1823) um artigo prevendo a futura emancipação dos escravos, uma dimensão potencialmente transformadora da nossa história que ainda hoje pouco se menciona. A Constituinte foi dissolvida, e a iniciativa fez água. Mas poucos anos depois, em 7 de novembro de 1831, o Parlamento aprovou uma das leis mais importantes da história do Brasil. O diploma proibia o tráfico negreiro transatlântico declarando livres quaisquer africanos a desembarcar no Brasil dali por diante e criminalizando aqueles que se lançassem no comércio, no transporte e na aquisição desses africanos. No decreto regulamentar do ano seguinte, o poder público previu uma série de formas de fiscalização e aplicação da lei. Era um importante marco normativo antitráfico sinalizando que o antigo comércio de escravos chegara ao seu fim. Ledo engano.
A lei de 1831 nunca foi revogada. Ainda assim, os senhores brasileiros, com apoio do poder público, passaram por cima dela e contrabandearam mais de 740.000 africanos para o país até 1850, quando o seu crime foi finalmente combatido.4
A missão do antiescravismo no Brasil estava longe de ser simples. Nenhum país do continente americano tinha se conectado tão visceralmente com o comércio transatlântico como a antiga colônia portuguesa, sorvedouro que, sozinho, engolira 45% dos escravizados emigrados da África até 1831 — cerca de 4.3 milhões entre os estimados 9,4 milhões de traficados. Não por outro motivo, o Brasil acabaria sendo a nação livre que mais longe levaria o tráfico negreiro transatlântico a despeito da forte agenda internacional que se impunha em chave antiescravista. O poder senhorial foi forte o bastante para contaminar as novas formas políticas e fazer do nascimento do país uma nova oportunidade para a própria escravidão renascer como instituição.
A massa de seres humanos trazidos na marra para o Brasil depois de 1831 é um escândalo a mais de um título. Equivalia a 60% dos cativos que o país tinha em 1822. Mais importante: todas aquelas pessoas vivam uma escravidão ilegal, problema que se estenderia aos seus descendentes. É provável que uma parcela bastante expressiva dos escravizados que viveram no Brasil independente fosse de indivíduos postos no cativeiro em violação da legislação brasileira e dos tratados internacionais que o país tinha assinado — ou então de seus descendentes. Considerando o volume descomunal do contrabando negreiro, não seria absurdo indagar se essa não era a situação da maioria da população negra cativa na segunda metade do século XIX. A escravidão no Brasil, a mais longeva da história ocidental, era, portanto, criminosa. E isso no momento em que ela mostrou seu viço e cresceu com mais vigor.
Política da escravidão: poder público e cleptoescravismo
A escravidão que floresceu no Brasil independente foi organizada por elites conservadoras que atolaram seu corpo e sua alma numa instituição em crise de legitimidade e até mesmo ilegal. Sentindo prazer em escravizar, os donos do dinheiro e das fazendas se socorreram de diversos outros atores sociais — políticos, funcionários públicos, jornalistas, advogados, professores de direito, juízes, dentre tantos outros — para enquadrar a atuação do poder público em uma política da escravidão.5
A base material de sua ação lembra o que temos visto no século XXI. Assim como os mercados mundiais de alimentos e minérios estimulam o arco da destruição da Amazônia, duzentos anos atrás a demanda por café no Atlântico Norte oxigenou a economia escravista do Brasil, principalmente no complexo histórico-geográfico da bacia do Paraíba do Sul envolvendo Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nenhum dos dois fenômenos acontece sem as devidas mediações políticas. Eletrizados em sua cobiça, os fazendeiros defenderam seus negócios em articulação estreita com o poder público. Os senhores de escravos e seus porta-vozes, em particular, se engajaram em uma campanha escravista desarticulando o marco normativo antitráfico, criando mecanismos de controle do judiciário e defendendo publicamente o descumprimento do direito em favor do cativeiro. A partir de meados da década de 1830, as taxas do comércio negreiro transatlântico, agora ilegal, atingiram picos inéditos em sua série histórica:

Dos gabinetes da Regência à pena dos jornalistas, passando por parlamentares e altos funcionários da administração imperial, os políticos deram o seu passo na contradança, reivindicando uma espécie de direito de descumprir o Direito, constrangendo aqueles que buscavam efetivar as leis. Como escreveram os vereadores escravistas de Barra Mansa (RJ) em 1836, então uma das fortalezas dos interesses cafeeiros: “Ai daquele Juiz de Paz, ai daquela autoridade que quisesse neste Município, ou em qualquer outro dos vizinhos, pôr cobro ao contrabando!!! A vingança o seguiria logo de perto, e eles por certo não querem arriscar suas vidas contra tantos, e fazem bem”.6 Para proteger a escravidão ilegal valia tudo: inibição, ameaça de morte, violência física, terrorismo psicológico. O Vale do Paraíba ontem era o Vale do Javari hoje (AM). Ou São Félix do Xingu (PA), onde fazendeiros assassinam e massacram camponeses e extrativistas, mas ainda rondam à solta como grandes predadores.

No coração da barbárie: onde pulsou o lobby político pela escravização criminosa de centenas de milhares de negros. Fonte: Tâmis Parron. A política da escravidão no Império do Brasil.
A exemplo da cobertura que Bolsonaro dá ao desmatamento na Amazônia, os governos imperiais desmontaram e desmobilizaram os aparelhos de vigilância pública contra o crime do tráfico. A Marinha foi afastada do dever de dar caça aos contrabandistas. O Parlamento formou uma espécie de bancada do chicote para calar o antiescravismo. E até o sistema de justiça faria a sua parte. No começo dos anos de 1850, o todo-poderoso ministro da Justiça Nabuco de Araújo, pai do abolicionista Joaquim Nabuco, repreendeu um juiz de Jundiaí (SP) que fez menção de aplicar a lei de 1831. Disse que seguir a lei era de um “rigor contrário à utilidade pública e pensamento do governo”, desrespeitando a prescrição prática “que o governo se impôs com a aprovação geral do país e por princípios de ordem pública e alta política”. Se você acha que não entendeu, a cena é esta mesmo: o ministro da Justiça passando um pito em um juiz que só queria fazer o que aprendeu na faculdade, aplicar uma lei que não tinha sido revogada. Eusébio de Queiroz, chefe da polícia do Rio de Janeiro, defendeu a presunção de escravidão seguindo um silogismo racista do tipo se preto, logo escravo: nada de ficar, portanto, procurando a liberdade nas leis. Isso embora trabalhasse na Corte, onde os pretos e pardos livres eram mais de 40% da população segundo o censo de 1872.7
Após uma hesitação inicial (1822-1831), o Estado brasileiro mostrou para que lado moveria suas peças. Sem muito disfarce, o sistema burocrático nacional descumpriu seus próprios diplomas, normas e instruções, a serviço de um regime de escravização ilegal em que a aplicação da lei dependia do poder de veto e da vontade dos grandes escravistas. É comum falar na força normativa do direito. O que está em jogo aqui é outra coisa: é a força normativa da política. Não se trata do estado jurídico da escravidão previsto num estatuto abstrato e geral. E, sim, de situações de escravidão numa ordem coletiva politicamente organizada, a tutela de um cativeiro fático por arranjos costurados no coração do poder público. Não é escravismo puro e simples, mas cleptoescravismo, o roubo de seres humanos normalizado por determinações de atores investidos do poder público.
Em suma, as instituições jurídicas assumiam uma operação de deontologia legal na qual o texto da lei se subordinava hierarquicamente ao interesse e ao prazer de escravizar corpos negros. Aos negros cabia a escravidão, ainda que ilegal, não a liberdade, ainda que amparada direito.
Nacionalização da barbárie
Mais que uma sociedade com escravos, o Brasil era uma nação escravista. A escravidão era uma totalidade presente nos mais diversos arranjos da vida nacional, com o cativo sendo um protagonista indistinto da vida econômica, institucional e familiar brasileira. Nesse quadro, as mãos dos africanos e seus descendentes realizavam não só a produção e a circulação dos ativos privados, mas também a base de financiamento da máquina pública. O Estado auferia divisas fiscais indireta e diretamente da escravidão. No primeiro caso estavam os impostos sobre exportações de bens produzidos pelos escravizados. No segundo, os tributos sobre compra e venda dos próprios cativos em transações ocorridas dentro do país, a chamada Meia Sisa. Essas transações explodiram quando a oferta transatlântica colapsou, e a demanda por cativos continuou aquecida na fronteira mercantil do café. O resultado foi a montagem de um comércio nacional de escravos que destroçava famílias escravas e dissolvia vínculos de comunidades negras. Incidindo sobre esse novo fluxo, a Meia Sisaganhou importância nuclear para os cofres públicos. No Rio de Janeiro, sua arrecadação dobrou de valor após 1850, quando o contrabando de africanos finalmente desapareceu.
Do ponto de vista social, o comércio nacional de escravos causava deslocamento traumáticos, expulsando trabalhadores de suas cidades, quebrando unidades familiares e dissolvendo vínculos afetivos. Na maior parte das vezes, escravizados eram retirados de trabalhos domésticos e de pequenas atividades urbanas e rurais para ser jogados nas grandes fazendas, onde uma carga descomunal de trabalho, especialização e produtividade os reduzia a uma condição ainda mais desumana. O alto preço dos escravizados depois de 1850 impedia que comerciantes adquirissem grandes lotes, estimulando, assim, o aprofundamento da divisão das famílias, espalhadas que eram para vendas a diferentes compradores. Levados pela sanha de enriquecer sempre, os proprietários preferiam comprar jovens e crianças, o que aumentava a dramaticidade da divisão das famílias e das redes sociais da população negra nacional. Dados do final dos anos de 1860 sugerem que, em algumas regiões, 90% das transações se davam entre jovens: 25% dos traficados eram crianças (até 14 anos), 65% tinham idade entre 15 e 29 anos.8 Além de exibir a crueldade do sistema, o perfil infantojuvenil do comércio revela que boa parte de suas vítimas era provavelmente descendente dos africanos ilegalmente traficados entre 1831 e 1850.
Embora as cenas de separação de pais e filhos despertassem denúncias no Parlamento e na esfera pública, o Estado brasileiro não moveu uma palha contra o barbarismo do comércio interno de escravizados. Em nenhum momento os funcionários da Coroa tentaram provar a origem ilegal das pessoas que eram comercializadas. Isso apesar da abundância de oportunidades para fazê-lo. Por questões de segurança e de ordem social, policiais emitiam em cada porto de saída passaporte indicando de onde o cativo havia sido retirado; e, em cada porto de destino, o traficado se deparava com outro policial, dessa vez responsável por recolher informações contidas em seu documento de identificação. No interior da província, registrava-se a transação em um contrato de compra e venda. O contrato era verificado por um coletor fiscal que finalmente emitia a guia de recolhimento da Meia Sisa. Centenas de milhares de pessoas passaram por esse circuito de verificação, contraverificação, certificação notarial e comprovação de declaração fiscal. Nenhum pio se dava sobre a origem dessas pessoas.9 A preocupação do poder público era outra: a de proteger o comércio, arrecadar tributos e garantir o dinamismo da cafeicultura.
A legislação exigia que servidores públicos fiscalizassem ilegalidades. O Código Criminal, por exemplo, previa penas para agentes que deixassem de cumprir o ordenamento nacional.10 Não importava. Os agentes não fugiam da sua tarefa apenas por propósito pessoal; cumpriam antes o espírito do Estado brasileiro, pelo qual qualquer instituição jurídica poderia ser subvertida em favor da escravidão como baluarte do interesse nacional. A cegueira estatal era de um cinismo tão flagrante que o assunto espocaria de quando em quando na imprensa. Mais do que isso. As principais lojas desse comércio se localizavam nos endereços nobres da Corte, a poucos metros dos braços e olhos da burocracia imperial, como se vê neste mapa, onde os pontos verdes indicam as lojas negreiras da então capital do país nos anos 1860 e 1870:

Lojas dos negociantes de escravos no Rio de Janeiro. Extraído de João Victor Leite, O laço da escravidão: tráfico interno de cativos no Brasil. Universidade Federal Fluminense, 2021.
Só em 1869 o Parlamento finalmente proibiu a venda de escravizados em pregão público e a separação de casais e de filhos menores de 15 anos. Mas o empenho do poder público com o comércio negreiro nacional era grande demais para deixar a norma inalterada. Em 1871, na famosa Lei do Ventre Livre, a bancada do chicote incorporou o espírito de Herodes e derrubou a idade mínima da separação entre pais e filhos de 15 para 12 anos. Na época, o Brasil tinha 115.000 crianças escravizadas na faixa etária (12-15). Uma multidão de meninas e meninos que, da noite para o dia, acordou exposta à ferocidade contábil dos negociantes de escravizados.
Racialização do poder público
Nos últimos vinte anos do Império, a escravidão negra entrou numa crise sem retorno. O processo, traumático e decisivo, foi parte de um movimento mundial mais amplo que incluiu a Guerra Civil e o fim do cativeiro nos Estados Unidos (1861-1865), a maior república escravista do Ocidente desde o Império Romano e até então aliada estratégica do Rio de Janeiro no gerenciamento geopolítico da escravidão.
Crises são parteiras de utopias e distopias. Enquanto negros e abolicionistas sonharam uma sociedade justa entre iguais, as elites brasileiras se adaptaram reacionariamente à nova ordem mundial do pós-escravidão. Exibindo uma notável autoconsciência racial, procuraram modelar as instituições públicas para manter esquemas tradicionais de hierarquia sociais próprias do cativeiro humano. Tudo girava em torno de um só ponto: o Brasil era — como ainda é — majoritariamente formado por afrodescendentes, e a emancipação de massas escravizadas poderia subverter arranjos políticos que haviam dado a estabilidade à vida dos ricos, aos seus costumes, às suas preferências. Era necessário então redesenhar os mecanismos institucionais para que a iminente abolição não representasse um empoderamento da população egressa do cativeiro. Cumpria criar uma espécie de regime de subcidadania em que negros livres não acessassem as mesmas faculdades legais e práticas da elite branca. Em outras palavras, era preciso racializar o poder público numa sociedade pós-escravista. Parodiando um pouco Pasolini sobre a Itália, pode-se dizer que as elites fizeram do Brasil “um país circular à imagem do Leopardo de Lampedusa onde tudo muda para permanecer como antes”.11
De todas as representações que a racialização do planejamento público exibiu, o problema dos direitos políticos é o mais sensível. Para entendê-lo, é preciso retraçar o jogo entre demografia e direito.
Nas diversas regiões do Brasil do século XIX, os brancos não eram a maioria da população total, a soma de escravos, libertos e livres. Muitas vezes, não eram nem a maioria dos que gozavam a liberdade (libertos e livres). No entanto, costumavam compor a maior fatia dos livres. O ordenamento jurídico do Brasil imperial respeitava escrupulosamente essas divisões. As leis que regravam a liberdade negativa (direitos civis) não faziam distinção de libertos, livres, brancos e negros. Eram indiferentes à cor e ao status daqueles que tinham liberdade: color-blind e status-blind. Como dizia a Constituição de 1824, livres e libertos eram cidadãos e não estavam sujeitos a nenhuma distinção senão àquela baseada em “seus talentos e virtudes” (Art. 6, par. I; Art. 179, par. XV). Já as leis que determinavam a liberdade positiva (direitos políticos), a capacidade de intervir na coisa pública, contavam outra história. Embora tratassem brancos e negros livres de modo igualitário, diferenciavam as pessoas segundo seu status jurídico. Livres tinham direitos políticos plenos, libertos tinham direitos limitados. Eram color-blind, mas não status-blind.
Esse arranjo legal incluía e excluía ao mesmo tempo. Se dava à maioria negra dos não-escravos igualdade civil com a minoria branca no plano da liberdade negativa, garantia à minoria branca o controle político sobre a maioria negra na esfera mais elevada da liberdade positiva.
A crise da escravidão altera profundamente esse quadro.
A Lei do Ventre Livre (1871) considerou os futuros egressos do cativeiro livres, e não libertos. Essa fórmula causou certa polêmica, mas passou no Parlamento porque o fim da escravidão ainda parecia uma transição gradual, controlada na estufa do tempo, filtrada pelo ritmo lento dos nascimentos. Mas ela abriu um precedente importante. Numa eventual abolição geral, os futuros ex-escravos também poderiam ser qualificados de livres. Pela primeira vez, os brancos poderiam ser minoria não na população geral (porque isso sempre tinham sido), não na população não escrava (porque isso às vezes também tinham sido), mas na população dos livres, entre aqueles que gozavam direitos políticos plenos e regiam os destinos do país. Diante da ameaça, a visão do establishment mudou. E mudou para pior.
Demonstrando notável autoconsciência racial, as lideranças políticas brasileiras reorganizaram categorias jurídicas e conceitos sociais visando manter seu monopólio racial do poder público. Uma dessas mudanças consistiu em chamar de “libertos” aqueles que a lei considerava “livres”. É o que fez o barão de Cotegipe no Senado imperial em 1880:
O estigma da escravidão não pesa somente sobre aquele que vive sob o jugo dela; ainda depois que, ou pela caridade, ou pelo esforço do seu trabalho conseguiu libertar-se, sempre ao liberto fica a nódoa como ao galé a marca da cadeia que trouxe ao pé.
Esse homem no estado social do país desmoralizará a corporação em que entrar. Não chegou o tempo de vermos um liberto sentado ao nosso lado [no Parlamento]. Esta é a verdade, e se não a dizem é porque temem-se das injúrias: eu não as temo.12
Para Cotegipe, os futuros emancipados deviam ser considerados “libertos”, e não “livres”, porque desse modo os brancos manteriam o monopólio do acesso ao Estado. Um liberto eleito para o Parlamento, nos moldes do que havia acontecido em alguns estados norte-americanos depois da Guerra Civil, era uma visão terrífica.
A racionalidade anti-igualitária deslizava facilmente para discursos raciais. Como lembrou outro político da época, a liberdade gerava a “ruína quase total dos libertos […]. Na luta pela existência, como entrariam essas hordas de selvagens criados na miséria da escravidão e com todos os vícios da raça?”.13 É fácil perceber qual é o jogo em enunciados desse tipo: os oradores se movem naturalmente das categorias jurídicas (libertos) para ideias sociais (raça) a fim de criar ou estabilizar mecanismos de exclusão dos ex-escravos. Como o grilhão a ulcerar para sempre o tornozelo dos prisioneiros, o negro nascido depois de 1871 traria na pele a herança da escravidão ainda que a legislação o declarasse livre. O mesmo estigma deveria marcar aqueles que o abolicionismo libertasse.
A racialização da cidadania saltou da flexão discursiva para as instituições formais com a Lei Saraiva, que reformou o sistema político em 1881. Passando esse estatuto, o Estado firmou procedimentos e regras para a habilitação do voto que, na prática, atacou o direito político dos pobres e dos analfabetos. Até então, homens livres e libertos, mesmo que iletrados, podiam votar contanto que tivessem renda mínima anual atestada mediante declaração oral. A nova lei redefiniu esse quadro. Manipulando o corpo das evidências de renda, substituiu a antiga prática dos testemunhos por ritos burocráticos e cartoriais custosos demais para os pobres. Mas a coisa não parou por aí. Mirando especificamente os futuros ex-escravos, exigiu que aqueles que se tornassem maiores de idade dali por diante soubessem ler e escrever para exercer o direito do voto. Com esse golpe, o índice de participação eleitoral despencou de cerca de 50% do eleitorado masculino para menos de 0,8% da população. Sobrerrepresentados entre os analfabetos e entre os pobres, os negros foram o público-alvo da guilhotina eleitoral.14
Além dos direitos políticos, a racialização também penetrou as camadas judiciais da anatomia institucional do país. Não havia ainda uma nova Constituição (1891), e a República já se apressara para aprovar um Código Penal (1890). Isto é, tipificou como criminosa uma pluralidade de práticas coletivas e ações individuais antes mesmo de consagrar os direitos invioláveis dos indivíduos e dos cidadãos numa nova Carta Magna que substanciava a essência viva de um pacto societário. É como se, para o legislador, a ordem preferisse à nação. Aos que buscavam direitos havia quase quatro séculos, a República brasileira oferecia a violência policial, institucional e simbólica.
No Código Penal da República, sobressai o tratamento endurecido para os casos classificados de “vadiagem”. Até então, a matéria tinha sido regulada em poucas linhas no Código Criminal de 1830. A lei da monarquia, identificando vadiagem como o não exercício de profissão de subsistência quando em plenas capacidades para exercê-lo, prescrevia pena de “prisão com trabalho de oito a vinte e quatro dias” aos vadios e ociosos (cap. IV, art. 295), sem prever nem regrar casos de reincidência. O Código Penal de 1890 rompeu com o que parecia uma complacência passiva do poder público.
Primeiro, alargou a conceituação de vadiagem adicionando à definição anterior o ato de tomar profissão “manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes” (cap. XIII, art. 399). A seguir, estabeleceu novas modalidades de penas. O “vadio” seria agora remetido a “prisão celular por quinze a trinta dias”; deveria assinar termo de ajustamento de conduta obrigando-se a buscar serviço dentro de duas semanas; e, em caso de reincidência, seria deportado para colônias penais “em ilhas marítimas ou nas fronteiras do território nacional”, onde sofreria pena de reclusão de um a três anos (cap. XIII, arts. 399, 400). Dada a sobrerrepresentação dos negros entre os pobres,15 não é difícil perceber que a máquina punitiva do poder público estava mirando desproporcionalmente pessoas negras. Um olhar racializado que se materializa nas próprias palavras do Código Criminal de 1890. O capítulo que criminaliza a vadiagem (XIII) também criminaliza a capoeira, cominando aos seus praticantes penas análogas às dos vadios: “prisão celular de dois a seis meses” e, na reincidência, reclusão nas colônias penais das ilhas marítimas e zonas de fronteira. Acontece que a prática da capoeira era consensualmente associada às comunidades negras. Sem giros nem lacunas, a lexicografia da época explicita o que a lei supõe: “Capoeira: negro sertanejo que assalta o viandante”, diz um dicionário. “Capoeiragem: vida de capoeira, de desordeiro.”16
Em 1901, o governador do estado de Minas Gerais fez um balanço positivo do Código Criminal de 1890, retraçando o impacto da violência institucional sobre a remuneração no mercado de trabalho:
Tem sido empreendida com vigor no Estado a repressão da vadiagem, medida acolhida com aplausos unânimes por parte da imprensa mineira e que tem por fim expurgar as povoações de elementos ociosos e desordeiros, e fornecer à lavoura braços de que ela precisa. Como consequência, já se notou a redução dos salários agrícolas e o notável decrescimento da estatística criminal.17
A contenção física, racialmente enviesada, da mobilidade dos brasileiros coincidiu com o estímulo à circulação dos estrangeiros brancos. À medida que o fim da escravidão se avizinhava, a ideia da imigração branca se fortaleceu em prejuízo de propostas para transformar futuros emancipados numa força de trabalho rural livre por meio da distribuição da terra e da educação universal.18 Nos altos conselhos do poder público, dizia-se explicitamente que era necessário obstar o “crescimento e preponderância da raça africana”.19 No Parlamento se alertava para o risco de “introduzir sangue podre” nas veias brasileiras caso o país não fosse colonizado por brancos.20
Em 1890, já na República, a organização racial do mercado de trabalho ganhou expressão na legislação federal com a chamada Lei Glicério, que simplesmente proibiu a entrada de nativos da Ásia e da África sem permissão prévia do Congresso Nacional. Arrastados à força do sequestro e da barbárie por quase quatro séculos, os africanos não eram mais bem-vindos em uma terra em que a maioria da população era exatamente formada por egressos do continente e seus descendentes. O diploma ainda previu prêmios em dinheiro aos fazendeiros que atraíssem estrangeiros brancos oferecendo em suas propriedades casas de moradia e escolas (cap. V, arts. 31, 32, 33, 34, 35). O mesmo Estado que havia estimulado a separação de famílias negras por prevaricação, força política e legislação, muitas das quais de origem duvidosa e livres segundo a lei, financiava a formação e a educação de famílias brancas com recursos públicos.21 O projeto de embranquecer o país quando sua população livre se tornava maciçamente negra aparece consagrado na introdução de Oliveira Viana ao Censo nacional de 1920. Um texto cheio da esperança de arianizar o Brasil combinando a imigração de europeus com o desejado encolhimento da população negra, supostamente sujeita a baixas taxas de natalidade e altas taxas de mortalidade.22
As estatísticas do mercado de trabalho do fim do século XIX sintetizam a racialização da cidadania, do código criminal e das leis de imigração. Nos setores de maior remuneração, como indústria e comércio, a mão de obra negra recém-egressa do cativeiro não ultrapassava a faixa dos 20% ou 30% nos anos de 1890 a 1894, ao passo que estava sobrerepresentada no serviço doméstico e no trabalho agrícola.23 Os melhores postos de trabalho passaram rapidamente para estrangeiros brancos trazidos pela política migratória que o Estado subvencionou no fim da monarquia e durante a República.
Com a Constituição republicana de 1891, o percurso regressivo da cidadania iniciado no Império manteve sua direção. Embora eliminasse o censo eleitoral (renda para o voto), manteve o dispositivo que privava os iletrados de direitos políticos (art. 70, par. 1º, inciso 2º). Em articulação com a cláusula dos analfabetos, a Constituição ainda converteu em cidadãos brasileiros todos os estrangeiros residentes no país que não se opusessem à sua naturalização automática, ato que passou a ser conhecido como a “Grande Naturalização” (art. 69). Pela combinação dos artigos 69 e 70 da Constituição de 1891 com o decreto n. 528 de 28 de junho de 1890 (Lei Glicério), os estrangeiros naturalizados eram brancos em sua totalidade e podiam votar se alfabetizados, mas os analfabetos nascidos no Brasil, majoritariamente negros, não receberam condições para exercer o mesmo direito. Na distribuição do poder político entre os membros da comunidade, o princípio da raça se sobrepôs ao princípio da nacionalidade.
Do clepto ao criptoescravismo
Não.
A escravidão dos negros no Brasil não é herança involuntária do colonialismo português. Seu prolongamento no século XIX não decorre só do poder privado que um Estado passivo tinha de tolerar. As diferenças raciais no século XX não foram mantidas só pela mão invisível do mercado. Em todos esses momentos, o poder público, nas mãos dos donos do dinheiro, interferiu na sorte e no destino da população negra escravizada e livre.
O Brasil, uma pátria escravista, se fez independente numa quadra perigosa para o cativeiro. O país se veria cercado por um cordão de liberdade, abolição e emancipação gradual feito pelas novas nações americanas. Na arena externa, o Rio de Janeiro esbarrava no poder diplomático e militar da Grã-Bretanha, tendo de aceitar o fim do comércio negreiro transatlântico. Se 1822 expôs o Brasil à necessidade de ceder à pressão britânica e de insculpir valores liberais na sua constituição nacional — questões que potencialmente poderiam varrer a escravidão da sua vida social —, sua elite soube transformar o desafio em oportunidade, e entendeu que a sua autonomia política também lhe dava controle total sobre a modelagem das suas instituições jurídicas. Em contraste com seus pares escravistas como os sulistas dos Estados Unidos e os colonos de Cuba, os senhores do Brasil comandavam uma nação escravista de soberania plena. Eles tirariam partido disso até as últimas consequências: usaram o Estado para escravizar ilegalmente centenas de milhares de africanos até 1850 (cleptoescravismo) e para garantir a dissolução de famílias cativas entre 1850 e 1880 (nacionalização da barbárie).
Porém, o jogo ameaçou virar de novo com a abolição no fim do século XIX. Aqui é preciso dar um passo atrás para uma melhor visão de conjunto.
A era do liberalismo, que potencializou a escravidão, também trouxe uma tensão dialética própria do nacional-escravismo. Um país a pactuar sua alma com a escravidão também encarava, afinal, o risco de ver a supressão do cativeiro como um pesadelo antinacional. Em 1888, o Brasil seria uma nação de maioria negra livre, uma África fora da África, onde os negros poderiam inverter a ponta do chicote e dominar politicamente os brancos. A visão de uma nação regida pela cidadania negra tirava o sono de uma elite cuja ação se vocacionava em um único sentido: explorar mãos, pés e braços de pretos e indígenas, fazendo das terras brasileiras um ativo para viver a gorda festa da bonança do capitalismo. A abolição não era um problema político para o Brasil. Era o fim do projeto político brasileiro.
A partir dos anos 1880, as elites se reapropriaram então de princípios de direito público, havia décadas manipulados para relativizar a lei em favor do trabalho forçado ilegal, para controlar corpos negros livres. A lei eleitoral de 1881 e a Constituição de 1891 esbulharam de poder político a maior parte da população, afetando a mobilidade social dos seus descendentes, suas possibilidades de casamento para fora de sua classe, suas chances de alcançar heranças e patrimônios de outros grupos sociais. O Código Penal republicano passou a controlar a transição sociopolítica, garantindo que a força policial mantivesse negros livres “no seu devido lugar” de subcidadania e baixa remuneração. O direito público se tornaria, então, um dos mecanismos pelos quais se reproduzem as relações de produção das desigualdades sociorraciais no pós-escravidão. Foi por meio dele que o cleptoescravismo se metamorfoseou em criptoescravismo: uma mentalidade escravista até certo ponto encoberta, mas profundamente arraigada na sensibilidade socioinstitucional do Brasil.
Essa estratégia entrou fundo no século XX. A criminalização da vadiagem passou para as constituições seguintes da República. E o direito dos analfabetos ao voto só foi restaurado com a emenda constitucional n. 25 de 15 de maio de 1985. Por 104 anos, a representação política brasileira, núcleo vivo da organização do poder público, representou desproporcionalmente interesses da população branca, numa espécie silenciosa, porém brutal, de regime de apartheid. Os estadistas que conceberam, discutiram e desenharam o modelo institucional do poder público no Brasil durante a escravidão e sua crise terminal tinham plena ciência do que faziam. Todos eles sabiam que estavam transformando a experiência transitória do escravo no cativeiro em uma maldição secular sobre o negro na sociedade livre.24 Ao menos em suas formas elementares, o escravismo brasileiro sobreviveu à escravidão no Brasil.