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Além da reparação: sobre a tortura na Bienal de Berlim1

I Can See You, Sajjad Abbas, 2013, Bagdá, Iraque.

Na décima segunda Bienal de Berlim, vítimas iraquianas de tortura e abuso sexual tiveram suas imagens ampliadas e organizadas num labirinto de armadilhas grosseiras. As paredes desse labirinto reproduzem fotografias feitas por soldados estadunidenses na prisão de Abu Ghraib, que foram vazadas em 2004, um ano após a invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos. Diz-se que essa edição da Bienal está centrada no engajamento decolonial, oferecendo “reparação… como uma forma de agência” e “um ponto de partida… para um diálogo crítico, para que possamos encontrar juntos maneiras de cuidar do agora”. No entanto, a Bienal tomou a decisão de transformar em mercadoria as fotografias de corpos iraquianos ilegalmente presos e brutalizados sob a ocupação, exibindo-os sem o consentimento das vítimas e sem qualquer contribuição dos artistas iraquianos participantes da Bienal, cujos trabalhos foram instalados nas proximidades sem que tivessem conhecimento. A quem pertence a agência nessa forma de “reparo”? Certamente não às vítimas iraquianas nas fotos, tampouco aos artistas iraquianos que participaram da Bienal ou aos espectadores iraquianos que foram retraumatizados por essa insensível reencenação de um dos crimes de guerra mais notórios dos Estados Unidos.

No museu do Hamburger Bahnhof, um dos espaços expositivos da Bienal, entro em uma sala com Sajjad Abbas e Layth Kareem, dois dos três artistas iraquianos que participam desta edição. Eu apresentei o trabalho de Abbas e Kareem à Bienal, emprestei uma pintura do artista Raed Mutar para a exposição e contribuí com textos sobre seus trabalhos para o catálogo. Conheci cada um desses artistas pela primeira vez em Bagdá, onde viveram e fizeram as obras selecionadas entre 2011 e 2014, período imediatamente posterior à retirada das forças de ocupação liderada pelos norte-americanos. Na intervenção pública, no vídeo e na pintura, os artistas abordam inequivocamente o consumo de sua ruína-como-humanidade e tratam da impossibilidade de transmitir o quanto isso os afeta.

Vejo o trabalho cortante e vasto de Abbas, Kareem e Mutar, e uma cortina. A segunda metade da obra de Abbas está do outro lado; eu tenho que passar pela da cortina para ver o restante de sua instalação. Ao fazê-lo, sou presenteada com uma instalação de Jean-Jacques Lebel intitulada Poison Soluble [Solúvel em veneno]. Ela é feita de imagens impressas em tamanho real: a pele carbonizada, os membros e os rostos encapuzados dos homens iraquianos torturados ​​e assassinados em Abu Ghraib.

Vejo uma soldado mulher e branca sorrindo diante do arranjo de corpos empilhados e meu olhar está ao mesmo nível que uma pessoa sem rosto forçada a segurar seus órgãos genitais. Vejo um cadáver, os mortos ainda aguardando. Esperando para que possam consentir, pela primeira vez, pela milésima vez e desta vez não é exceção. Sou forçada a vê-los mais uma vez apenas para acessar a segunda metade do trabalho fragmentado de Abbas.

Na saída desse labirinto cruel está I Can See You [Eu posso ver você], 2013, de Abbas, uma imagem de seu olho impressa numa enorme faixa, originalmente instalada num prédio em frente à Zona Verde em Bagdá que foi pintado com as palavras do título. O trabalho promove um poderoso julgamento sobre as forças militares dos Estados Unidos, sua embaixada de bilhões de dólares, seus tomadores de serviço, governos ilegítimos e intermediários de corporações que, até hoje, invadem, pilham e esgotam cada pedaço de carne e de solo dos quais conseguem espremer alguma coisa — sangue, dinheiro, prêmios. O olho de Abbas e os riscos físicos e políticos que ele assumiu para montar o trabalho encarnam a persistência violenta da agência e da responsabilidade. É a antítese das cenas hediondas e voyeuristas atrás da cortina. Vejo o olho e me viro para Abbas. Tudo o que posso dizer é que eu sinto muito. Que eu deveria ter desconfiado desse mundo da arte que vê nossa carne como cultura.

À direita da pintura de Mutar e abaixo da primeira parte do trabalho de Abbas havia um aviso de gatilho, destinado àqueles que entrassem em Poison Soluble. Quem colocou esse aviso escolheu posicionar trabalhos de jovens artistas baseados em Bagdá ao redor da instalação de Lebel e logo depois dela. Esses artistas foram convidados para participar de uma exposição na qual não podiam ver o próprio trabalho, ou o de seus pares, sem que fossem obrigados a atravessar um espaço cujo potencial de “desencadear reações negativas ou retraumatizantes” os organizadores reconhecem.

Não há nada no trabalho que aponte para informações desconhecidas, para qualquer coisa que já não tenhamos visto. As imagens que inundaram a mídia global há duas décadas apenas tornaram visível a capacidade dos Estados Unidos de fazer com que o mundo odeie o corpo iraquiano e abuse dele. Imagens de amarras, eletrocussões e estupros em massa reforçam a antiga imagem do árabe, do iraquiano, como um animal: descartável por um lado e, por outro, algo a ser controlado, combatido. O trabalho em questão não fez nada além de reforçar e amplificar essas táticas.

Kareem e eu participamos de uma conversa no programa público da Bienal. Nossa fala final aborda sua obra em vídeo — feita com amigos e outros moradores de Bagdá que compartilham sua experiência de viver com o constante espectro da violência — em contraste com o trabalho sobre Abu Ghraib, que reproduz o poder assimétrico inerente às fotos sem qualquer respeito ou reflexão. Kareem responde informando calmamente ao público que alguns de seus familiares foram presos em Abu Ghraib. Ele indica aquilo que está faltando no aviso amarelo brilhante sobre o gatilho, na entrada: “Eles não consentiram. Eu não posso aceitar isso”. Minutos depois, Kader Attia, o curador-chefe da Bienal, está no palco, com uma justificativa para a inclusão do trabalho: deveríamos entender que as fotos precisam ser vistas para que mudanças políticas possam ocorrer.

Acontece que Kareem, eu e o resto do mundo já vimos essas fotos. No auge de sua circulação, durante os primeiros anos da ocupação do Iraque pela coalizão, não houve nenhuma consequência, política ou o que quer que seja, fora do Iraque. As imagens permanecem online e no registo público de fotografias “icônicas”. Em Berlim, elas só estão maiores e ainda mais descontextualizadas. Elas são interpretadas no aviso como um “estímulo para se engajar em movimentos antirracistas e antiguerra”. No entanto, a base para a ação política não está em nenhum lugar dessa apresentação de imagens, tampouco há uma empatia em relação à dor imensurável e contínua que infligem. As fotografias de mulheres iraquianas estupradas e torturadas naquela mesma prisão nunca foram divulgadas. Talvez essas imagens pudessem parecer obscenas demais, capazes de atrair a opinião pública para a ocupação de uma maneira que, quem sabe, tivesse alguma importância. Se as fotos dessas iraquianas estivessem disponíveis, teriam sido usadas como “estímulo”? Ainda vale a pena servir-se da catástrofe iraquiana e de suas vítimas como arte política?

A prática dos artistas — Sajjad Abbas, Raed Mutar e Layth Kareem — é informada por suas experiências demasiadamente reais em resistir a essa violência. No entanto, seus trabalhos foram usados por uma autoridade curatorial que não os considerou como aliados da exposição, ou como cidadãos iraquianos que jamais concordariam em compartilhar o mesmo espaço com aquilo que foi feito em Abu Ghraib. Não houve qualquer respeito aos sujeitos dessas imagens, o que tampouco foi estendido aos artistas iraquianos cujos trabalhos foram usados num espetáculo de tortura e cuja confiança na Bienal foi rompida. A conexão estabelecida entre os artistas iraquianos da mostra e os iraquianos submetidos a torturas físicas e sexuais acabou por transformar suas obras de arte numa sórdida vitrine para os corpos rompidos de seus concidadãos.

O resultado solapa a intenção original de seus trabalhos, assim como a magnitude das atrocidades, apenas fornecendo outras provas de que a luta para valorizar a vida dos iraquianos continua nas esferas política e cultural. O resultado de tudo isso é uma tristeza familiar. Os artistas iraquianos devem perguntar, quando são convidados para participar de exposições, se a premissa curatorial determina que haja vítimas de tortura nas proximidades?

Antes de entrarmos no museu, estávamos felizes em compartilhar nosso trabalho em Berlim, onde vivem muitos iraquianos da diáspora e onde há muito tempo ouve-se dizer sobre o apoio aos artistas e sua atração pela capital alemã. Mas nós, e todos os iraquianos que conhecemos e que viram o trabalho em questão, ficamos profundamente transtornados e nos sentimos traídos por essa inserção. Pela insistência na insensibilidade e na desvalorização da experiência iraquiana vivida. Experiência formada por uma coalizão de nações que empreende décadas de violência globalmente sancionada contra residentes civis, resultando em mais de um milhão de iraquianos mortos e outros milhões em fuga. A discussão dessas imagens e o legado da guerra no Iraque vão muito além desse evento, mas, depois de muitos pensamentos e reflexões, nossa participação exige essa resposta em relação à questão da Bienal, sobre como “cuidar do agora”.

Sabemos que pelo menos uma curadora, Ana Teixeira Pinto, renunciou à equipe da Bienal de Berlim devido à sua objeção a mostrar Abu Ghraib. Sajjad Abbas conseguiu retirar sua obra daquele museu após um mês de negociações. Está exposto publicamente em outro edifício, do outro lado da cidade. Raed Mutar solicitou que sua obra também fosse realocada. Nada disso foi suficiente para que a liderança da Bienal pudesse reconsiderar a inclusão do trabalho ou reconhecer os direitos dos artistas iraquianos de serem consultados e ouvidos. Mas as vozes dos iraquianos existem e, como afirmou o artista Layth Kareem, ele é uma dessas vozes. Nós também. E nos posicionamos firmemente contra a reprodução negligente dos crimes do invasor.

Também assinam:

  • Sajjad Abbas
  • Jananne Al-Ani
  • Khyam Allami
  • Zahra Ali
  • Rheim Alkadhi
  • Bassim Al Shaker
  • Sinan Antoon
  • Omar Dewachi
  • Amir El Saffar
  • Ali Eyal
  • Abdulrahman Hameed
  • Layth Kareem
  • Sarah Munaf
  • Raed Mutar
  • Ali Yass