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Apesar de tudo, a informação continua querendo ser livre

Resenha de O capital está morto, de McKenzie Wark

Sou eu o infeliz que traduz as bulas
o operador de câmera do programa 1001 Noites
um dos moderadores
a serviço da madame miséria
controlo um contêiner no quebec
componho as espirituosas mensagens de erro
sou eu o parecerista
o tarefeiro o faz-tudo
eunuco para toda obra
[…]
integro a equipe responsável pelas cruzadinhas do jornal
embora não acredite nos Correios
trabalho aqui há onze anos incompletos
eu tive uma ideia
inventei uma nova caixa

— “Ocupações”, Ismar Tirelli Neto

Well, I was hoping in my hoping
to recall what I had found
Well, I was dreaming in my dreaming
God knows a pure view
As I laid down into my sleeping
I commit my dream to you

— “People have the power”, Patti Smith

Sem Título #5, da série Provas de Trabalho, Pedro Victor Brandão

“Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações antigas e cristalizadas […]; as relações que as substituem tornam-se obsoletas antes de se consolidarem. Tudo que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado […].”1 A famosa passagem do Manifesto comunista mal parece leitura de um tempo que passou. Ainda assim, ele passou. Nosso cotidiano mostra isso de todas as maneiras possíveis. Podemos, até onde for conveniente, insistir que esse mostrar nada mais é que jogo de aparências que oculta a essência (de nome “capitalismo”). Mas o que significa, realmente, a atualidade de um texto? Está no nível da descrição, no sentimento que produz, na sua potência criativa, ou em outro lugar? Até onde a experiência dessa atualidade vem do esforço de sentir o acolhimento de palavras firmes e participar de uma glória passada?

Posso, talvez, chamar “atual” o texto que me permite não ter de lidar com o que, em primeiro lugar, lhe deu uma vida agitada, fervilhante, imprevisível até, poder de tocar não como um carinho gentil, mas como pessoa querida e distante que nos chacoalha no momento certo, quando nada mais parecia nos tirar da inércia que arrasta todos os dias que não se diferenciam. De onde veio o Manifesto? De uma tela capturada, fixa na mente brilhante do homem? E como poderia, se assim fosse, ser mesmo um manifesto, a forma textual que só funciona bem entre uma ação e outra, sopro de vida, no intervalo para investir com força ainda maior? E como participaria dessa força se, de maneira radical, não se intrometesse furiosamente em sua própria realidade, em seu mundo — se parte desse mundo não o ouvisse/lesse e acolhesse sua intromissão e sua fúria?

No Manifesto, Marx e Engels apresentam a sociedade burguesa como um “feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou”.2 O texto deve se intrometer precisamente no meio desse descontrole, oportunidade aqui e ali de ação política. Também é verdade que, algumas décadas atrás, a feitiçaria burguesa resolveu mexer com o que não devia, libertou mais do que o que podia controlar. Em O capital está morto, Wark quer nos fazer pensar sobre o que mais pode se voltar contra a burguesia; só que dessa vez isso se dá na forma de uma classe que põe um fim ao capitalismo sem trazer o sonho comunista. “Daí a necessidade do gesto, do experimento mental, que declara: o capital está morto. Está morto como Deus antes dele e, tal qual ocorreu com essa descoberta, esse anúncio é tratado, no ‘mercado de ideias’, como loucura”3 A figura nietzscheana do louco, em Gaia ciência, responsável por anunciar a morte de Deus por mãos humanas, logo se convence de que fala para uma audiência imprópria: sua antecipação das consequências a longo prazo de uma filosofia que não exige valores absolutos e razões divinas fala de algo monumental demais para a limitada compreensão de seu tempo — “[eu] venho cedo demais […] o corisco e o trovão exigem tempo, a luz das estrelas precisa de tempo; os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos”.4 Por isso, o anúncio de Wark é oferecido como experimento mental e não como descrição da realidade; assim, finalmente, talvez seja visto e ouvido depois de muitas tentativas: e se o que temos agora for pior do que capitalismo? Vamos supor, suspender juízos, ver até onde isso vai — esse é o compromisso.

Se o domínio da burguesia enquanto classe se dá pela propriedade dos meios de produção, o que acontece quando surge uma forma de exercer propriedade sobre os meios de organizar esses meios? A resposta, claro, está no livro; até certo ponto, não é bem um experimento mental em curso — o texto nos entrega a própria “realidade extramental”, digamos assim, como evidência de que há classes para além do que vê o marxismo dos séculos passados (apesar da repetida insistência de Wark até o fim de que é apenas um e se…). De volta ao problema da feitiçaria: agora e já há algumas décadas, essas forças liberadas no e pelo capitalismo o fizeram sucumbir a uma nova classe dominante, não ao socialismo (daí o sentido de “pior”). Ela pode abrir mão de fábricas, máquinas, e mesmo do trabalho assalariado. A informação entra em cena de maneira inédita: pode ser usada para a construção de modelos preditivos e perfis de consumo, sistemas de monitoramento, para gerenciar cadeias de suprimento e o próprio trabalho, dentre outras coisas, tudo englobando o planeta a partir de computadores locais. Nas mãos da nova classe, estão as tecnologias necessárias para controlar e organizar fluxos de informação, inclusive na forma de “propriedade intelectual”.5 Outras fontes de riqueza, outros meios de explorar e exercer dominação.

Essa nova classe, Wark a nomeia “vetorial” — ela transforma o espaço global e faz surgir uma topologia que permite ligar quaisquer pontos por meio de uma atividade econômica, feita mais eficiente por meio do processamento de dados. “Todo o potencial do tempo e do espaço se torna objeto da classe vetorial.”6 Ter os meios de produção já não basta para ditar os rumos da economia global: até mesmo os capitalistas se tornaram reféns dos que controlam vetores. O que seria dos containers empilhados entre a vista e o horizonte, dos caminhões que rasgam o silêncio da madrugada pelas estradas, dos labirintos de caixas em depósitos abarrotados de violações trabalhistas sem os centros de processamento de dados e os servidores em fileira — e os sistemas que tudo isso organizam? Não há crescimento possível para uma empresa sem o que a classe vetorial oferece em termos de escala e ritmo e eficácia. Somam-se a tudo isso os algoritmos, perfis de consumo, o marketing digital, a construção da marca e de sua presença em redes sociais e por aí vai.

Desmanchar o sólido em excesso resultou em formas mais e mais abstratas de produção, controle, exploração. E a fidelidade a Marx — e não ao marxismo acadêmico — exibida por Wark exige uma classe do outro lado: esta recebe o nome “hacker”, decisão talvez curiosa, porém consistente com a cultura que emergiu no MIT dos anos 1960, em que superar limitações (de software ou de hardware) por meio de toda sorte de experimentação era uma forma de criação. A classe hacker, diz Wark, tem como tarefa básica produzir algo novo a partir do mesmo (ao contrário do que normalmente sai de uma fábrica). Novos conceitos, novas percepções, novas sensações, novas formas — são várias as inovações formais convertidas em propriedade e roubadas de nós diariamente. Da produção artística à pesquisa científica em laboratórios, dos trabalhos criativos com nomes curiosos em língua inglesa aos freelas de programação, do ghostwriting à criação de conceitos que Deleuze e Guattari dizem caracterizar a filosofia; sempre que uma nova informação — reconhecida como tal por leis de “propriedade intelectual” — surge, pode fazer lucrar a classe vetorial. E tudo o que é novo depende mais e mais de infraestruturas digitais, tecnologias e programas e outros recursos que não nos pertencem — por enquanto (e, talvez, alguns deles não devam pertencer a ninguém).

Além disso, usar os mais variados serviços faz de cada pessoa fonte de informação: dormindo, indo de um ponto a outro, comprando livros marxistas, expressando irritações bobas, e até elaborando um tuíte que critica o Twitter — a classe vetorial faz do cotidiano trabalho não remunerado para empresas que organizam o espaço digital. A informação quer ser livre, “mas está acorrentada em toda parte”, diz Wark.7 Se parece que circula de outro modo, é porque, a cada acesso a uma informação, temos a experiência de conseguir algo que, de outra forma, não teríamos como; saem de cena os vendedores de enciclopédia Barsa, entra a Wikipedia e um vasto oceano de informações sobre absolutamente tudo, desde que exista (ou não). Mas, cada acesso, cada informação nos coloca em uma relação assimétrica: enquanto pesquisamos a agência bancária mais próxima, do outro lado, um aglomerado enorme de informações é processado para alimentar uma rede que não está disponível para nosso uso (compensação: os dados serão usados para nos dar serviços cada vez melhores, prometem ao nosso senso consumista de livre-arbítrio).

Então: novas classes, novos meios e novas relações e novas forças de produção, multiplicidade sobreposta, nada surpreendente, de fato — “Mesmo a escravidão não está extinta”.8 O livro de Wark não é sobre a existência de coisas, mas sobre como são organizadas e qual seu lugar em um espaço de produção que já extrapola a própria Terra. O que o capitalismo trouxe como dominante não foi embora, só perdeu esse status — isso do ponto de vista global, importante lembrar. Em uma cidade toda dedicada à produção fabril de mercadorias, tudo se dá como sempre se deu; mas tudo ali está ao alcance da classe vetorial, localizável em sua topologia. Se “[a] burguesia submeteu o campo à cidade”,9 a classe vetorial submeteu campo e cidade e o que mais existir a um espaço informacional. Isso significa, também, estar à mercê das formas de extração de informação da classe trabalhadora para fins de controle, gerenciamento e até redução de sua capacidade de bloquear a produção e, dessa maneira, produzir desordem: otimizar por meio da informação também pode ser reorganizar fluxos e tornar irrelevantes locais específicos de produção e privilegiar outros. O vetor é facilmente deslocado. Por outro lado, há também, agora, a possibilidade de bloquear a organização da informação que organiza os meios de produção — a classe hacker tem de se aliar a outras classes para afetar a produção de modo significativo (superando sua dispersão e a dificuldade de se perceber uma classe apenas e não grupos profissionais variados que mal se enquadram nas duas classes que, muitas vezes, nos dão a entender que são as únicas existentes: burguesia e proletariado).

Ou seja, tudo pior, mais complicado, mais abstrato, mais disperso. Se o que temos não é mais capitalismo, nós é que perdemos. O longo “experimento mental” de Wark nos tira do realismo capitalista presente no marxismo para que, tirando os olhos do horizonte fechado sobre si, possamos ver o que está diante de nós: se o fim do capitalismo só pode ser imaginado como início do comunismo, e este não se mostra aqui e agora, isso não significa que vivemos a eternidade capitalista, variando qualificações e prefixos e modificadores em geral que nos dão máscaras do Mesmo (necrocapitalismo, capitalismo cognitivo, o que mais der a sensação de diferença no campo das aparências).

Claro, a classe hacker tem de produzir nova informação; quando não deixa de lado a descrição da essência de nosso mundo como “capitalista”, sobra arrumar uma nova forma de qualificá-la. O livro de Wark é um esforço de reunir esforços anteriores de produzir novidade de outra forma: encontra sua distinção anunciando uma nova morte. Se a crítica é um “gênero menor dentro da indústria cultural”,10 o livro não pode ser outra coisa — do excesso de referências do tipo que lembra um filme da Marvel à promessa de novidade em todo um outro nível que não a mesmice que nos entedia ou remete de volta ao mais que familiar, ainda que no campo da crítica (com toda a retórica do tipo nenhum-deles-entende-o-que-entendi), O capital está morto é também outro tipo de anúncio: dos limites do texto quando produto de certa indústria. Isso vale para a textologia marxista — “a fé na exegese da palavra escrita do arquivo como forma de conhecimento”11 — e a transformação da obra de Marx e Engels em objeto destituído de performatividade, também apoético. Por outro lado, Wark é parte da classe hacker, como eu, como você provavelmente, e nosso sistema nervoso tem de produzir. Ainda assim, há formas e formas de lidar com a textualidade — “Palavras precisam se conectar à vida cotidiana em toda glória e vulgar idiotice”.12 O experimento mental assume o tom do anúncio sem deixar de incorporar, o que fica claro na paráfrase de Marx e Engels que encerra o livro, a forma-manifesto: é a organização que deve acompanhar o texto que acompanha o cotidiano. Por isso, pouco importa o regime acadêmico de verdade e os estilos literários que lhe correspondem: há um mundo a ganhar, não apenas descrever.

Mas se há um mundo a interpretar no processo, deve ser o nosso: retornar a Marx e Engels é ver o que seus conceitos tornavam pensável, assim como a relação entre sua poética e uma luta para pensar/viver no presente a ser transformado — outros tempos exigem de nós que, assim como Marx, não sejamos marxistas: “E se tomássemos essa afirmação no sentido de Marx não ser um daqueles que simplesmente tomou uma linguagem e uma forma poética extraídas de seus antecessores como algo dado?”.13 A provocação de Wark pode até soar como eco da exigência de nova informação que ela tão bem analisa — mas, como a tarefa de Marx e Engels e tantas outras pessoas foi produzir uma ambiguidade no interior do capitalismo, ver na classe explorada mais do que exploração, no mundo criado pela burguesia mais do que seu domínio; então, a classe hacker também pode fazer o mesmo, fazer mais que alimentar sistemas de informação. Por outro lado, pode ser difícil imaginar um livro como mais que produto a ser consumido quando olhamos para o modo como a produção se organiza como um todo (e também há a terrível conversão de textos em objeto infinito de exegese na academia). Isso não muda o fato de que podemos enriquecer nossa ação/organização política por meio deles — é algo que está em nosso poder.

Tudo pode ser muito mais do que o que normalmente é, ainda que não seja tudo o que precisamos — e textos certamente não podem nos dar tudo (é um erro categorial exigir isso deles). A questão é até onde pode haver diferença recorrendo ao mesmo, geração após geração. Ou, também: o que temos feito e escrito, qual a relação entre nossa ação e nossa escrita, se é o nosso tempo que deve ser vivido e transformado. A vitalidade do Manifesto não estava na repetição do herdado, mas também não estava na distância com relação a uma realidade vivida por quem sofria a exploração daquela época, daquele mundo — é a perspectiva dessas pessoas que mostrava o que devia ser pensado por meio dos conceitos. Assim, ao demandar atenção à perspectiva de pessoas que não se encaixam nas classes usuais do marxismo, Wark, mais do que qualquer outra coisa, nos lembra de onde vem a atualidade de um texto que deva desempenhar a mesma função que a obra de Marx e Engels.

O que sabemos em excesso é como permanecer na derrota; ganhar o mundo é uma questão aberta.