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A grande madre

Ulysses Boscolo de Paula

O bordão de Meloni é: “sou Giorgia, mulher, mãe, italiana”. Com 26% das cadeiras parlamentares conquistadas na eleição de 25 de setembro passado, seu partido, Irmãos da Itália (Fratelli d’Italia, sigla FdI), tornou-se majoritário e ela assumirá como a primeira-ministra (trata-se da primeira primeira-ministra, pois nunca houvera premiê mulher na Itália) mulher da história da Itália e a primeira liderança nacional fascista desde a queda de Mussolini, metralhado pela Resistência em 1945.

A oratória privilegiada de Meloni conseguiu apaixonar e envolver as plateias ao redor de uma pauta de tutela do cidadão, do emprego e da tradição italianos. Meloni realçou o quão importante é resistir às dissolvências pós-modernas da dita “conspiração de gênero”, do consumismo e da diluição do cidadão concreto às estatísticas. Ao declarar que não somos números, Meloni fez uma campanha escudando a identidade, o direito a se ter uma, e a politização dela diante da tirania multicultural. Quando uma inflamada oradora defende a identidade italiana, está defendendo sobretudo uma concepção conservadora do catolicismo, modelada pela sagrada família de Cristo. A identidade nacional é inseparável da Igreja Católica Apostólica Romana, nação dentro da nação, com 2 mil anos de existência, contra apenas 150 da Itália unificada. Segundo Meloni, a família italiana — isto é, estritamente católica e “natural” — encontra-se sob assalto de todos os lados, ilhada em meio ao mar de perversidade liberal.

Em primeiro lugar, a nacionalidade estaria sendo ameaçada pelos afluxos de imigração, a constante chegada de estrangeiros e a mais alta taxa de natalidade dos não cidadãos. Os residentes sem cidadania correspondem atualmente a 14% da população da Itália. Em segundo lugar, para Meloni, a Itália estaria sendo assolada por ondas de islamismo, o que alteraria a identidade profunda do país. Em uma das falas provocativas na campanha, Meloni disse que se a Itália precisa de trabalhadores para tarefas menos qualificadas, que os vá buscar entre os refugiados venezuelanos — esses, sim, “bons cristãos”. Além de se opor ruidosamente à educação sexual nas escolas, que faria lavagem cerebral na cabeça das crianças, a despeito da família “natural” e de papéis claros de gênero, Meloni encampa ainda outra teoria conspiratória, a da “Grande substituição”, que ficou por ser um dos cavalos de batalha retóricos do primeiro-ministro húngaro de extrema direita, Viktor Orbán. Em terceiro lugar, no painel das tribulações nacionais, Meloni elenca a corrosão dos fundamentos da economia produtiva ou real, aquela dos bons patrões e trabalhadores italianos. O inimigo aqui é o regime de rentismo improdutivo, comandado pelas elites da União Europeia, através dos capitais fictícios do Banco Central Europeu (BCE), mas também a concorrência desleal praticada pelas grandes economias asiáticas. Quando se refere aos banqueiros podres de rico e yuppies globalistas do norte, Meloni utiliza uma expressão inconfundível: “plutocracia financeira”, o mesmo termo de fundo antissemita do fascismo histórico.

Mas não basta se ater ao que Meloni e seu partido dizem e propõem. O mais importante é compreender por que suas performances ressoaram no eleitorado e nos setores importantes do poder econômico estabelecido, levando à rápida ascensão eleitoral do FdI, de 4% a 26% em apenas quatro anos. Para explicar a reemergência do fascismo, é preciso retomar uma série de antecedentes materiais próprios da Itália, no quadro mais geral dos antagonismos em condições pós-modernas.

A economia italiana está à deriva desde a eclosão da crise do capitalismo global de 2008, que se prolongou na crise da dívida soberana europeia (2010–12). A taxa média de crescimento anual do PIB do país, entre 2010 e 2019, não superou 1%, cerca da metade da média europeia no mesmo período. O capitalismo na Itália se organiza de maneira rígida, adensado numa faixa de empresas médias concentradas no norte mais industrializado. É comandado por elites provincianas e engatado em estruturas hereditárias e territorializadas, com baixa mobilidade social. Sem dinâmica em prol da inovação, não articulou uma estratégia de inserção na matriz da integração europeia e, mais em geral, nos fluxos desterritorializados da globalização do século XXI. Na última década, as várias “coisas novas” que apareceram na cena política (Renzi, Movimento Cinco Estrelas, Salvini) decepcionaram uma após a outra, sem conseguir reunir as forças sociais para uma agenda de retomada.

A perda progressiva de competitividade da Itália pressionou pela deflação salarial, buscada para recuperar o caráter competitivo pelo outro lado da equação, isto é, da compressão do capital variável. A inflexibilidade, o tradicionalismo e a queda do salário desarmaram a estrutura de incentivo, o que agravou a hemorragia da juventude mais dinâmica e qualificada, em busca de melhores postos de trabalho mais ao norte do bloco europeu ocidental. Enquanto isso, a intensificação do afluxo de imigrantes oriundos do norte da África e do Oriente Médio, através do Mar Mediterrâneo, especialmente com o acirramento da guerra civil líbia em 2017, impactou ainda mais a configuração dos salários. O aumento da xenofobia e o não reconhecimento dos direitos dos imigrantes — inclusive de uma fração significativa de filhos e netos, nascidos e criados em solo italiano — provocaram menos a expulsão em massa do que a inclusão diferencial nos espaços de concorrência por remuneração e condições de trabalho. Reforçou-se a pressão geral pela redução da massa de salário, já que os trabalhadores sans papiers ou de “cidadania temporária” detêm menos poder de barganha ante os patrões e empregadores e menos ferramentas para travar a luta por direitos. A falta de reconhecimento institucional repercute, no mundo social, num modo particular de inclusão social, dada pela precarização e insegurança pessoal e laboral.

Ulysses Boscolo de Paula

A compulsão estrutural pelo esmagamento dos salários em todo o espectro de qualificações, associada à rigidez histórica da propriedade, bem como a posição secundária da Itália em relação aos dínamos industriais e financeiros do eixo França-Alemanha, terminaram por aquecer o caldeirão de tensões e ressentimentos no bojo da sociedade segmentada. Os diferentes gradientes de apropriação da renda e as coordenadas díspares de sua disputa levaram a acirrar a disputa intraclasse, nos umbrais da empregabilidade flexível. Isso se deu especialmente entre as três últimas camadas da composição social do neoliberalismo semiperiférico. A última camada, composta pelos imigrantes precarizados de 1ª, 2ª ou 3ª gerações, encontra dificuldades de toda ordem para acessar os serviços públicos e sustentar-se no mercado de trabalho de baixa qualificação, equilibrando-se no limiar da sobrevivência. A penúltima camada, formada por cidadãos italianos sem ocupação ou em condição de invalidez/economicamente inativa, tornou-se dependente de um sistema de welfare cada vez mais sucateado. Tal camada cresce na medida do avanço do desemprego estrutural, uma propensão de longa duração. O antepenúltimo segmento é composto de um extenso grupo precarizado e amorfo, espalhado pelo setor de serviços, que inclui pequenos empreendedores, microempresas familiares, autônomos, funcionários uberizados ou de McJobs.

No início da pandemia, que atingiu a Itália de maneira particularmente violenta, a voltagem dos conflitos se elevou, levando as tensões à beira de uma generalização do tumulto. Revoltas estouraram em algumas metrópoles, como Nápoles, em outubro de 2020. Ao longo de 2020, o PIB italiano tombou 9%, com especial sequela no setor de serviços. Depois das tentativas frustradas de sair da recessão, em fevereiro de 2021, a resposta da classe política foi transigir com um governo de frente ampla. Decidiu-se colocá-lo sob o comando de Mário Draghi, um tecnocrata sem partido. O primeiro-ministro então escolhido era sem partido, não porque seria antissistêmico, mas por ser arquissistêmico. Presidente do BCE entre 2011 e 2019, Draghi é uma figura credenciada perante as elites europeias e atlânticas. Esperava-se que ele poderia obter os melhores termos para os pacotes de refinanciamento da economia italiana pela União Europeia, por meio de repasses a fundo perdido e empréstimos de longo prazo, no âmbito do programa europeu de retomada Next Generation EU.

Apesar das expectativas, a dita “Agenda Draghi” falhou no concerto de políticas sociais, por exemplo, com o fiasco da implementação da Renda da Cidadania (RC), a primeira do gênero no país. Na prática, a RC não passou de uma renda mínima para cidadãos abaixo da linha de pobreza, com cobertura restrita a 10–15% da população no Sul e 1–5% no Norte da Itália, muitas condições para a recepção do benefício e uma burocracia inamistosa. Com o arrefecimento da pandemia, a razão de ser do governo de consenso nacional desapareceu. A acomodação dos interesses e vaidades se tornou impraticável levando à implosão do governo Draghi, em julho de 2022. Durante aquele período, Meloni e seu partido mantiveram-se fora da coalizão, criticando os acordões e concessões. Isso permitiu a Meloni não só se apresentar nas eleições de setembro passado como a nova “coisa nova”, que o Movimento Cinco Estrelas não conseguiu ser; como também a única política remanescente que é “antissistema”, ocupando também o lugar anteriormente ocupado por Salvini, já que o líder da Liga integrou a frente ampla.

Ulysses Boscolo de Paula

A reverberação da plataforma do FdI com a situação socioeconômica aconteceu na medida em que a ameaça ao italiano viria de duas direções. Por um lado, vindo de cima, a partir das elites financeiras globais/europeias e do rentierparasitário e especulativo, em detrimento dos interesses da economia real que empregam e mantêm a renda no território nacional. Por outro lado, vindo de baixo, a partir dos sem ocupação, das minorias contempladas por programas sociais e de imigrantes em geral (esses 14% que não podem votar). Os três grupos competiriam com o cidadão puro-sangue, subtraindo-lhe o justo emprego. Portanto, as ameaças vêm de cima e de baixo, sempre de fora em relação ao núcleo mobilizador do voto nos Irmãos da Itália, uma maioria esparsa e ansiosa por aceitar soluções rápidas. A plataforma meloniana foi convincente porque reuniu capitalistas e trabalhadores territorializados na cidadania nacional. Seu interesse comum consistiria em resistir ao assédio pelos fluxos da globalização, seja na falta de condições para alcançar a indústria 4.0 do eixo franco-alemão, seja em disputar com o competidor asiático e seus preços de mão de obra ditos “ridículos”.

Em contrapartida à tendência, Meloni sustenta a qualidade do prodotto italiano, a tradição da fábrica local, o patrimônio das camadas proprietárias médias e a renda do trabalho devida às empresas familiares. Defende o firme e forte, contra os fluxos e redes. Além disso, Meloni rechaça a ampliação da Renda da Cidadania, pois o programa seria divisor da nação e não incentivaria o trabalho produtivo. Em vez disso, ela assinalou a via do emprego por meio da nacionalização sucessiva dos circuitos econômicos e o fim da progressividade da carga tributária, na forma do flat tax ou imposto de taxa única. A agenda a favor do capital nacional agregou apoios relevantes do poder econômico e garantiu a coalizão com as demais forças políticas eleitas à direita, como Salvini, da Liga, e Berlusconi, da Força Itália. O objetivo programático consiste em desonerar as empresas e empreendedores, além de “desburocratizar” a atividade econômica, a fim de remobilizar a produção em termos próprios, italianos.

Os Irmãos da Itália relacionam-se com o fascismo histórico por contiguidade e não por semelhança ou analogia. Descendem por linhas tortas, porém contínuas, do Movimento Social Italiano (MSI), o partido autointitulado “neofascista”, fundado em 1947 e que albergou os veteranos e ex-funcionários da República Social de Saló. O MSI jamais atingiu mais de 5% nas preferências eleitorais durante o período do segundo pós-guerra, permanecendo pouco relevante no cenário institucional. Na década de 1990, com o redesenho do marco da vida político-partidária e a entrada na Segunda República italiana, o MSI converteu-se em Aliança Nacional, anunciando o divórcio com o legado de Mussolini. Na ocasião, declarou-se “pós-fascista” e não mais “neofascista”. Depois de algumas inflexões, fusões e cisões, a Aliança Nacional desaguou nos Irmãos da Itália, fundado em 2012.

Na juventude, Meloni participou de agremiações fascistas e foi achado um vídeo dela com declarações simpáticas a Mussolini. Ela passou a campanha negando o vínculo histórico com o fascismo, atribuindo-o a arroubos juvenis. De qualquer modo, os vídeos vazados não parecem ter produzido efeitos eleitorais. Algumas figuras do FdI são bem menos discretas do que Meloni, emulam a saudação do Império Romano (ou seja, fascista), de modo que ela terá dificuldade de contar com quadros próprios na administração. Vários membros dão declarações caricatas e, no contexto da Europa Ocidental, seriam inapresentáveis na composição do gabinete de governo. O FdI ainda conta em suas linhas com dois membros da família de Mussolini, uma sobrinha e um bisneto — o que seria inimaginável na Alemanha, se fossem descendentes ostentando o sobrenome Hitler.

O fascismo de Meloni/FdI se dá noutros termos, em relação ao histórico. Na pós-modernidade, as condições mudaram de modo irreversível. O fascismo é sempre um problema de desejo, do porquê as pessoas são levadas a desejar o esmagamento de sua subjetividade, o rebaixamento geral das condições de viver juntas, relacionar-se e produzir. Ainda assim, a maneira como o fascismo relaciona-se com o campo social varia em função da maior desintegração e escalonamento de segmentos. No presente caso italiano, o agente roteador do fascismo pós-moderno é a família. Não é que a defesa moralista da família seja acessória ou superestrutural em relação ao programa material de transformações, mas é que as empresas, os partidos, os empreendimentos, tudo passa a ser reorganizado como família. A própria Itália é repaginada como uma grande família, para a qual Meloni se apresenta como a grande mãe. Dá-se assim a compenetração entre economia e moralidade, que os Irmãos da Itália representam como saída política para a crise. É um familismo generalizado que se irradia pelo campo social, deslocando os antagonismos na imagem de um interior ameaçado, diante do exterior ameaçador e ofensivo. O fascismo é menos resultado negativo da atomização ou de ideologia individualista (que ele contesta), do que proposta restaurativa para comunidade e gregarismo de punhos fechados. O nome do partido é referência ao hino nacional, da época do Risorgimento. Mas o termo “irmãos”, nas falas e pronunciamentos, adquire uma conotação reativa e defensiva e, nas entrelinhas, ligeiramente ameaçadora.

Ulysses Boscolo de Paula

Aqui, verifica-se novamente a incidência da condição pós-moderna das dinâmicas sociais. A imagem deslocada do conflito de classe condiciona um inimigo externo difuso, mais afeito a forças ocultas, ondas indiferenciadas e conspirações perversas. A figura do inimigo é deitada sobre um continuum de ameaças, operação nas quais se constata a proximidade com as tecnologias de guerra do século XXI, da War on terror às guerras híbridas contra as “revoluções coloridas”. A fluidificação do inimigo, mas também o inimigo é a fluidificação, ao que se responde com as identidades puras e duras. Reverberam desse modo os medos na crise dos diversos segmentos intermediários, até a antepenúltima camada já citada, como também das elites provincianas e tradicionalistas, sobretudo no norte industrializado, onde o FdI obteve as maiores votações. Hoje, não há mais squadracce ou multidão fascista nas ruas, como na época de Mussolini, quando o projeto de poder era pautado pelo conservadorismo corporativista à frente da modernização fordista de massa. Nas coordenadas atuais, a disseminação dá-se à distância, por ressonâncias, em cada pequeno âmbito confirmando o poder de quem já tem poder e reproduzindo os desníveis históricos na Itália contemporânea. Assim, o fascismo prolonga a matriz familista no quadro da vida social como um todo. O equacionamento das diversas divisões e antagonismos concretiza-se por meio da “transcendentalização” do complexo familiar, que toma o lugar de outras linhas organizativas ou lhes dá novo sentido.

A eleição de Meloni é duplamente perigosa. Por um lado, indica o grau elevado de socialização do familismo político. Por outro, o de institucionalização dos microfascismos, que passam a ressoar entre si, numa vibe comum. A aposta de Draghi é domesticar a potente oradora e neutralizar as derivas fascistas em estado ativo. É por isso que o banqueiro neoliberal está atuando como fiador da vitoriosa e introduzindo Meloni ao milieu das elites europeias e atlânticas. O ritualizado sistema parlamentar italiano só costuma se mover por composições e transigências, ainda mais por estar integrado à institucionalidade da União Europeia. É cedo para dizer se o sistema pode frear Meloni e anular o que há de desejante na “coisa nova” — ou por ela será hackeado e dominado. De fato, não existem condições para um assalto frontal às instituições, ao modo da Marcha sobre Roma de 1922. Ainda assim, pode ser bem-sucedida uma estratégia de erosão paulatina, inspirada pela lenta caminhada autoritária de desmanche da democracia liberal na Hungria, com Orbán. Meloni já declarou ser favorável à passagem ao presidencialismo e à concentração (“desburocracia”) dos poderes executivos.

No fascismo italiano histórico, de 1922 a 1945, as colisões de forças sociais e a canalização dos desejos foram provocando violências contra minorias, delitos contra estrangeiros, purgas de opositores e marchas de intimidação e brutalização, até produzirem o grande crime. Mais uma vez, não o cabe suscitar à memória. Em 2022, o movimento fascista global ganha uma inédita face, uma face feminina, maternal e competitiva. Essa é a única coisa realmente nova, pois o resto é velho e encarquilhado. O fascismo reinstalado num país que jamais superou o próprio passado nem soube lidar com ele, e onde a sagrada família alcança um sentido difícil de desentranhar.

— Lecce, 11 de outubro de 2022.