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Tarifa Zero é possível

O FUTURO --- EU TENHO UM ENCONTRO COM O FUTURO BEBE / E EU NAO SEI O QUE VOU TRAZER / EU ME VISTO PARA O FUTURO BEBE / E ELE ESTA CONVIDADO A COMER / E O QUE ESPERAR DO FUTURO BEBE? / E VIRTUAL NOSSO AFFAIR / USAREI MEU BUTTON ‘FACA AMOR NAO FACA GUERRA’ / PARA QUE POSSA ME RECONHECER

Comunicações & Concorrências, Néstor Gutiérrez

Um dos principais elos que sustentam o direito à cidade é o Transporte Público Urbano (TPU), pois a mobilidade garante acesso a outros direitos que vão desde o lazer até a educação e a saúde. Todavia, as cidades, cada vez mais privatizadas, convivem com uma crise dos transportes, agravada com a pandemia, fazendo o ruim ficar pior, com a perspectiva de colapso dos sistemas de transporte coletivo em várias cidades do país.

Devido à queda de passageiros durante o período mais crítico da pandemia, aprofundando a crise no setor, os sistemas municipais, especialmente nas grandes cidades, vêm buscando, junto aos governos locais e ao governo federal, aportes de recursos para que continuem a oferecer o serviço aos usuários. Em 2020 foi aprovado projeto de lei que destinava 4,4 bilhões de reais para municípios com mais de 200 mil habitantes, com a condição de não haver aumento de tarifa. Contudo, o projeto foi vetado integralmente, deixando a questão para os municípios resolverem, sem contribuição da União, ente que mais arrecada e que deveria participar mais, mesmo que a Constituição Federal responsabilize os entes municipais pelo TPU.

Atualmente, aprovado no Senado, tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei que cria o Programa Nacional de Assistência à Mobilidade dos Idosos em Áreas Urbanas (Pnami), garantindo recursos orçamentários da União, cerca de 5 bilhões de reais anuais, para custear as “gratuidades” para idosos nos sistemas de transporte. Foi a solução encontrada pelas empresas de transporte e entidades municipalistas, como a Frente Nacional de Prefeitos, por exemplo, para sanear as contas das empresas de transporte e jogar para frente um problema estrutural, que não se resolverá com medidas conjunturais. Além disso, tal projeto estigmatiza idosos ao passar uma mensagem de que os sistemas estão em crise devido às gratuidades e não graças ao modelo executado, sob a responsabilidade do mercado e não do Estado.

A medida será uma injeção de recursos nas empresas, não para custear as viagens dos idosos, que não ampliam os custos, visto que apesar de a maioria dos contratos serem com base no número de passageiros, os custos são gerados pelos quilômetros rodados. Ou seja, quanto mais lotados os ônibus circularem, mais lucrativa a atividade será, não alterando a margem de lucro pela circulação de pessoas com direito à gratuidade. A medida também amplia a desconfiança no setor, visto que os idosos não passam nas catracas e, portanto, não podem ser mensurados — o cálculo é especulativo, prejudicando ainda mais a transparência em um setor já tão obnubilado.

Queda na demanda por Transporte Público

O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) elaborou um estudo sobre o uso do transporte coletivo e individual constatando a crise agravada pela pandemia, com a redução drástica do número de passageiros, gerando pressão por aumento das tarifas, em contraposição à dificuldade de os municípios arcarem com maior subsídio, visto que houve queda de arrecadação no período, com o aumento do desemprego e o fechamento de comércio e serviços. O estudo demonstra uma queda na utilização do transporte coletivo já há algum tempo, a princípio causada pelo aumento da renda e consequente migração para o transporte individual, até porque foram oferecidos subsídios para esse modal, tanto para a compra de automóveis quanto para a gasolina. Cenário alterado pelo agravamento da crise econômica, dificultando o uso do transporte pela população mais pobre e desempregada.

O Ipea afirma que 89% da demanda por transporte coletivo relaciona-se ao modal rodoviário, o que amplia o problema atual, visto que o diesel acumulou altas significativas nos últimos doze meses, fazendo com que as tarifas praticadas sejam, em média, 4,10 reais. E a situação ainda não se estabilizou, ao contrário, se agravou, visto que não há proposta para a política de preços dos combustíveis que vá além da redução de ICMS, principal imposto arrecadado pelos estados, que é repassado parcialmente para os municípios e responsável por uma parcela do financiamento de políticas importantes, como saúde e educação. Então, além de pouco ou nada resolver para o TPU, agravará a crise da saúde e da educação.

Ainda falando de isenções tributárias, o Inesc realiza um estudo sobre subsídios aos fósseis, em sua quarta edição, calculando todos os incentivos voltados para produção e consumo de combustíveis fósseis, o que no Brasil não é trivial, especialmente com relação ao consumo. Em 2020 foram concedidos 63,32 bilhões de reais em subsídios ao consumo de combustíveis fósseis, o que representa 51% da concessão total, os demais 49% correspondem à produção.

Para o consumo, são considerados como parte desse montante os cálculos realizados pelo Inesc para renúncias envolvendo o PIS/Cofins e a Cide-Combustíveis aplicados à gasolina e ao óleo diesel. É também computado nessa modalidade todo o orçamento da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) e Conta de Desenvolvimento Energético (CDE-Carvão). Ou seja, além de renúncias fiscais, há gastos diretos ou recursos orçamentários.

Ao mesmo tempo em que o governo federal afirma não ter recursos para o transporte público, ao subsidiar a gasolina, ele está contribuindo para o transporte individual. Além do que, há isenção da ordem de 63 bilhões de reais, com baixíssima transparência e participação nas escolhas governamentais acerca de onde e de como investir recursos que sejam devolvidos à população como direitos. Dentro desse montante, há subsídio ao diesel que abastece veículos de carga e de transporte coletivo, ou seja, há, em tese, ganhos indiretos para o TPU. No entanto, como não há transparência, os ganhos ficam para os meios e não para os fins, que seria o beneficiamento dos e das cidadãs que circulam por meio do transporte público.

Então, além de perder arrecadação, o valor dos combustíveis nas bombas não foi reduzido. Ao contrário, vem sofrendo constantes aumentos, até porque, o principal item de composição dos preços não são os tributos, mas a política de preços exercida pela Petrobras, que varia em dólar conforme mercados internacionais — e isso afeta diretamente a inflação.

Com a perda de passageiros, tarifas e diesel nas alturas, as empresas deixaram de atender a uma das cláusulas contratuais, a de atualização da frota de veículos, fazendo com que a qualidade caísse ainda mais (além de lotados, os veículos estão, em sua maioria, com mais de dez anos de uso). O que não ocorreria se os contratos fossem baseados em quilômetros rodados e não por passageiros, pois aí sim os custos do serviço seriam mais transparentes e menos sujeitos às intempéries conjunturais. Algumas cidades, com o agravamento da situação financeira das empresas, já transitaram para essa modalidade. Contudo, grande parte delas estão presas a contratos antigos, cujos prefeitos não se interessam em modificar, pois pensam sempre a curto prazo, ou de quatro em quatro anos, motivados por eleições. Daí a preferência por mudanças conjunturais e não estruturais.

E os recursos federais para além dos incentivos, o que se tem no orçamento para transporte público urbano? Dentro da função urbanismo, que traz as principais ações voltadas para as cidades, há a subfunção “transporte coletivos urbanos”, no entanto a parte que cabe ao governo federal relaciona-se à infraestrutura, como corredores exclusivos para o TPU, por exemplo. Contudo, a execução dos recursos vem sendo cada vez mais reduzida, e a consequência é que se vê mais infraestrutura para automóveis e menos para transporte público ou mesmo para a mobilidade ativa, afetando a qualidade para os usuários, visto que esta ação reduz o tempo de deslocamento por si só, ao não expor ônibus aos engarrafamentos.

E tudo isso para se chegar ao cerne da questão: por que tantos obstáculos para que o transporte coletivo, previsto na Constituição Federal como direito social, seja política pública de fato?

Caminhos para o financiamento da Tarifa Zero

O que ocorre é que nenhum dos entes da federação quer arcar com os custos dessa política; ela não é prioridade, até porque a população que utiliza transporte público é majoritariamente de baixa renda, mulheres, negros e negras. Ou seja, parte da população com direitos sempre violados e jamais priorizada no orçamento público. Os que proporcionalmente pagam mais impostos e menos usufruem das políticas públicas, especialmente das políticas urbanas, como habitação, saneamento, transporte.

Mesmo diante de medidas fiscais que reduzem recursos para políticas públicas — como a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o teto dos gastos — há espaço para priorizações, visto que, no total dos recursos, o corte é único, e não por áreas. O governo escolhe onde cortar e o que não executar, recaindo o ônus sobre as políticas voltadas para a população com maior vulnerabilidade.

Pode-se afirmar que a Tarifa Zero é viável com financiamento público e seu custo não é muito maior que os subsídios ao consumo de fósseis. O Inesc realizou um estudo sobre a viabilidade da medida, sistematizando uma proposta de composição de fundo público para financiamento de transporte para cidades acima de 60 mil habitantes.

A. Proposta apresentada pelo Inesc:

A resposta à pergunta “transporte público, gratuito e de qualidade é possível?” está no estudo “Financiamento extratarifário da operação dos serviços de transporte público urbano no Brasil”. Escrito, a pedido do Inesc, por Carlos Henrique de Carvalho, especialista em mobilidade, o documento, publicado em 2019, apresenta modelos para uma oferta de transporte coletivo de qualidade, com tarifas zeradas ou reduzidas, garantindo seu acesso universal.

O cenário apresentado à época, antes do da pandemia, já era preocupante. Era uma espécie de ciclo vicioso de perda de competitividade do transporte público em relação ao transporte individual. Com o encarecimento das tarifas, houve uma transferência de demanda para o transporte individual e uma oneração do custo do TPU, já que menos pessoas pagam por ele. Com o aumento do transporte individual, houve o crescimento dos congestionamentos urbanos que provocaram um novo aumento de custo para o TPU.

As elevações de custo sempre foram transferidas para a tarifa, provocando uma nova perda de demanda, retroalimentando o ciclo vicioso. O encarecimento do transporte coletivo sempre foi um dos gatilhos desse movimento e, com exceção do período das manifestações populares de 2013, todos os demais períodos analisados nas duas últimas décadas apresentaram reajustes das tarifas acima da inflação. O que só não está ocorrendo no momento por receio de uma convulsão social, em ano eleitoral, por mais esta demanda financeira para uma parcela da população já tão afetada com desemprego e retorno da fome.

Além disso, o uso massivo de transporte individual motorizado, além de retirar investimento em transporte público, provoca outras externalidades, tais como custos dos congestionamentos, os quais, de acordo com estudos internacionais, provocam perdas em cerca de 1% a 3% para o Produto Interno Bruto (PIB). Outro fator importante a ser considerado, foi apontado pelo Ipea, que estimou em mais 50 bilhões de reais por ano as perdas da sociedade brasileira com acidentes de trânsito, com mais de 40 mil mortes e 300 mil internações por ano. Os poluentes veiculares são responsáveis por cerca de 4 mil mortes por ano na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), segundo estudos realizados na USP, e as estimativas da ONU é que morrem mais de um milhão de pessoas por ano no mundo (Blog da Saúde, 2018).

Diante desse quadro, o estudo mostra a composição do financiamento do transporte. Em 2019, eram necessários 59 bilhões de reais para cobrir os custos do TPU. Do montante, cerca de 6 bilhões oriundos de subsídios vindos por meio do orçamento público, e os 53 bilhões restantes eram majoritariamente arrecadados pelo pagamento de tarifas dos usuários, até mesmo a arrecadação do benefício do vale-transporte, que responde por 17 bilhões do valor (10 bilhões dos trabalhadores e 7 bilhões dos empregadores segundo estimativa feita com dados da Relação Anual de Informações Sociais). Uma minúscula fração do total era obtida com receitas não tarifárias originárias em venda de espaço publicitário e exploração imobiliária.

Percebe-se que o ônus do custeio do transporte recai sobre a parcela mais pobre da população, mesmo que os segmentos privilegiados também se beneficiem com a política, seja para transportarem aqueles e aquelas que trabalham para eles, ou pela redução dos congestionamentos, diminuindo o tempo de deslocamento e, em consequência, as externalidades. Além disso, com o modelo vigente, os custos das gratuidades recaem sobre os usuários pagantes e não sobre recursos públicos, visto que os contratos garantem os lucros auferidos pelas empresas.

Para oferecer modelos alternativos, o Inesc buscou fontes não regressivas, visto que o sistema tributário brasileiro é essencialmente regressivo, seus impostos recaem em maioria sobre o consumo, são indiretos, onerando ainda mais a base da pirâmide. Portanto, buscou-se fontes que primavam pela progressividade e tivessem capacidade de compensar externalidades. Foram propostos três cenários, que vão desde o barateamento da tarifa até a Tarifa Zero.

O primeiro cenário é a situação na qual a tarifa média do transporte público (base 2018) seria reduzida em 30%. Nesse caso, calcula-se que haveria um aumento de demanda e custo de 6%. A demanda equivalente chegaria à quantidade estimada de 15,9 bilhões de passageiros por ano, enquanto o custo total dos sistemas chegaria ao valor anual de 59 bilhões de reais. O segundo cenário considera a situação na qual a tarifa média do transporte público é reduzida em 60%, e o custo se eleva em 12%. A demanda equivalente considerada foi de 16,8 bilhões de passageiros por ano e o custo total por ano 62,5 bilhões de reais. No terceiro cenário considerou-se Tarifa Zero nos sistemas de transporte público urbano. Assim, não há arrecadação de vale transporte nem pagamento de tarifa pelos usuários pagantes. O custo neste caso subiria 20%, indo para 66 bilhões de reais, utilizando como base as referências de elasticidade-preço considerada nos cálculos dos cenários anteriores.

Nos três cenários, consideramos como fontes de financiamento o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), a taxação das folhas de pagamento para compensação da perda do vale transporte e a taxação sobre gasolina entre outras fontes. A ideia era demonstrar com dados e números que é possível a criação de fundo de financiamento público para a redução ou a extinção da tarifa.

B. Proposta de Emenda Constitucional

A partir da apresentação do modelo elaborado a pedido do Inesc, foi aberto um debate entre Parlamento e movimentos sociais em busca de soluções que pudessem ser ao mesmo tempo o mais progressivas e eficientes possíveis. A deputada Luiza Erundina reuniu estudos e apresentará, em julho de 2022, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) baseada na contribuição sobre o uso do sistema viário e a ser criada por municípios e pelo Distrito Federal, paga por proprietários de veículos automotores, cujo montante seria destinado ao custeio do transporte público urbano como forma de regulamentar o direito social ao transporte.

A PEC será objeto de audiência pública para que comece a ser discutida primeiramente na Câmara dos Deputados e depois no Senado Federal. A expectativa é que, diante do quadro caótico dos diferentes sistemas de transporte, haja sensibilidade dos congressistas acerca da importância da medida.

Com tais cenários desenhados e a materialização na proposta de Emenda Constitucional, confirma-se a possibilidade palpável de transformar os portais das cidades, ou o transporte público, em direito de fato, não apenas simbólico, mas concreto, garantindo melhores condições de vida para as populações verdadeiramente responsáveis por fazer as cidades girar, até mesmo economicamente, aquelas que colocam as mãos na massa e garantem a vida nas cidades, que são as que circulam no TPU e não aquelas que trafegam em automóveis com vidros escuros, ar condicionado, mirando a vida pelas janelas.

Tarifa Zero já

Medidas para garantir Tarifa Zero são viáveis e já estão dispostas à mesa para discussão, no entanto, é necessário querer mudar, até porque o atual modelo favorece arranjos eleitorais e mantém privilégios aos de sempre, perpetuando poderes e dificultado mudanças estruturais nas cidades.

Além dos arranjos políticos, há a cultura do automóvel, até hoje visto como objeto de desejo e poder, quanto maior e mais luxuoso, maior a ostentação, maior a emissão de gases de efeito estufa, maior o consumo de combustíveis fósseis, maiores os engarrafamentos nas cidades, maiores as externalidades, como os custos gerados para o sistema de saúde.

As políticas públicas precisam ser concebidas no marco da redução de desigualdades e não como aditivo para o aprofundamento delas, como se percebe; áreas como assistência, saúde e educação vêm perdendo recursos e qualidade, até por serem mais utilizadas pela população de baixa renda. A colonização e a escravidão fizeram do Brasil um país segregador, que privilegia o topo da pirâmide em detrimento da base — e a política de mobilidade corrobora esse comportamento.

Transporte público pode, sim, ser público. Tarifa Zero é viável. Então, que a luta continue até a vitória.