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Quando uma belga pesquisa a Tarifa Zero no Brasil

VALOR --- NAO VALHO NADA / OU VALHO TUDO / TUDO OU NADA / TUDO VALE / VALE A PENA / SE A PENA / VALE

Comunicações & Concorrências, Néstor Gutiérrez

Há cerca de três anos, embarquei numa jornada. Uma jornada que me levou a pesquisar o sistema da Tarifa Zero no Brasil, para minha dissertação de mestrado.1 Como toda boa aluna, comecei levantando a literatura sobre o assunto. Queria entender por que várias cidades e administrações locais ao redor do mundo implantaram a Tarifa Zero no passado, e também de que modo essa política funciona, como é financiada e como impactou a população. Uma primeira e importante descoberta, que quero compartilhar com vocês, leitores, é que, embora a Tarifa Zero seja um tema muito controverso, com uma avalanche de argumentos favoráveis e contrários a ela, trata-se de algo pouco estudado. Existem poucos trabalhos analisando em detalhes o que acontece em cada região, em cada país, em cada experiência. Assim, não há nenhum balanço compreensivo de todos os programas de abolição de tarifas em escala mundial.2 Só recentemente uma equipe de pesquisadores da Bélgica e de Luxemburgo assumiu a tarefa de encontrar respostas para questões sobre a Tarifa Zero que até agora estavam sem resposta. Identificaram-se experiências, abandonadas ou ainda em vigor, de Tarifa Zero completa3 nos Estados Unidos, Brasil, Portugal, Espanha, França, Bélgica, Luxemburgo, Itália, Eslovênia, Grécia, Sérvia, Romênia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Dinamarca, Suécia, Ucrânia, Geórgia e China.4

Nos artigos acadêmicos que pude encontrar sobre a Tarifa Zero numa perspectiva internacional, descobri que existem alguns padrões regionais no que concerne às razões pelas quais autoridades municipais a adotam, com três tipos principais de argumentação.5 Nos Estados Unidos, por exemplo, a justificativa é geralmente mais econômica. O objetivo da iniciativa é incrementar o afluxo de passageiros em redes de transporte público subutilizadas, estimular a economia, reduzir custos operacionais e assim por diante. Na Europa, os motivos são em geral de natureza mais ecológica e/ou sociopolítica: reduzir o uso de carros ou encarar o transporte público como um bem coletivo, ao qual todos devem ter acesso incondicional. Uma autoridade municipal pode também adotar a Tarifa Zero como política de mobilidade devido a uma combinação de prioridades e objetivos. No Grão-Ducado de Luxemburgo — o primeiro país do mundo a zerar as tarifas de transporte público —, a medida foi adotada para reduzir os congestionamentos de tráfego. Isso representou uma diminuição do tempo economicamente útil que era gasto no trânsito (raciocínio econômico) e também uma redução na poluição (objetivos ambientais). Na Polônia — país onde se identificou o maior número de casos de Tarifa Zero —, a maior parte dos municípios a implementou seguindo argumentos ecológicos e/ou sociais. Curiosamente, enquanto se verifica um claro aumento de interesse pelo tema entre autoridades locais, raramente ele é discutido em nível nacional.6 Dunquerque, na França, pode servir como exemplo de uma cidade em que esse aspecto social desempenhou um papel importante na implantação da Tarifa Zero em 2018. Antes da Tarifa Zero, existia um sistema pelo qual famílias de baixa renda podiam recorrer a vales-transporte mensais com preço menor.

No que diz respeito à “coloração” política das administrações locais, a Tarifa Zero tem sido adotada tanto em lugares com mais tradição socialista, quanto nos de ideologias mais liberais. Além disso, muitas municipalidades mantiveram a Tarifa Zero quando passaram de administrações de esquerda para outras de direita, ou vice-versa — Agudos (SP) é um desses casos. Em resumo, “a Tarifa Zero não pode ser rotulada como uma política ‘de esquerda’, ou ‘de direita’, ‘conservadora’, ‘progressista’, ‘socialista’, ‘verde’, ou ‘liberal’”.7

Com essas considerações em mente, voltei-me para o cenário no Brasil. Perguntei-me qual dos três tipos de argumentação prevalecia no Brasil: tratava-se de motivar os usuários de carros a aderir ao transporte público, reduzindo o efeito estufa e a poluição? Queriam reduzir os custos para os provedores de transporte público — cobrar tarifas também custa dinheiro8 —, ou queriam facilitar o transporte para trabalhadores e consumidores, de modo a incrementar a produção e o consumo em cada localidade? Ou a meta era facilitar a mobilidade para todos, de modo que a cidade e seus serviços pudessem ser acessíveis a todos? Ou existia uma combinação das três ordens de argumento?

Desde as manifestações de junho de 2013, a Tarifa Zero vem sendo discutida amplamente, e a partir de múltiplas perspectivas, por todo o país. Mesmo assim, surpreendi-me ao saber que não havia nenhum panorama compreensivo a respeito de onde existia Tarifa Zero no país. Naquele momento, o livro de Daniel Santini — Passe livre — As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização — era provavelmente o levantamento mais detalhado, incluindo informação sobre experiências que não foram adiante. E, como aponta Daniel Caribé9 em sua tese de doutorado, praticamente nenhuma pesquisa foi feita tentando entender por que prefeituras brasileiras implementaram a Tarifa Zero.

Assim fiquei, presa na Bélgica durante a pandemia da covid-19, pesquisando casos de Tarifa Zero no Brasil. A covid-19 trouxe dois desafios à minha pesquisa. Em primeiro lugar, eu não podia viajar para o Brasil e falar com pessoas no local. Eu estava começando a perceber que minha tarefa seria difícil, quando não impossível, sem ir até lá. Em segundo lugar, a pandemia iria mudar tudo radicalmente. Centenas de municípios ao redor do mundo suspenderam temporariamente as tarifas em resposta à pandemia: mais de 262 nos Estados Unidos10 e mais de 60 na Europa. Por um lado, as tarifas foram abandonadas para diminuir o risco de contágio, através de um menor contato físico entre condutores e passageiros. Por outro, a iniciativa de zerar o preço das passagens se fundamentava na ideia de oferecer o transporte público como um serviço universal, acessível a todos num período de dificuldades. A pandemia ofereceu, portanto, uma oportunidade para testar a Tarifa Zero, assim como a hipótese de que regimes de passe livre podem tornar as redes de transporte público mais resistentes a crises repentinas — em oposição às alegações frequentes de que a Tarifa Zero desestabiliza as redes de transporte público ao reduzir as receitas obtidas pelo serviço.11

O caso do Brasil é interessante nesse aspecto. Aqui, o sistema do transporte público é fortemente dependente da tarifa paga pelos passageiros (ver adiante), enquanto as empresas são remuneradas conforme o número de usuários, e não pelo custo real do sistema.12 Já tinha ficado claro que a falta de fontes de financiamento mais estáveis (como verbas federais) estava causando uma crise no setor. A pandemia agravou e acelerou essa crise, com muitas empresas de transporte indo à falência; isso intensificou o debate sobre os subsídios federais (ou melhor, sobre a falta deles). Em algumas cidades, o transporte público foi parcialmente suspenso, e em outras (como Salvador), a prefeitura teve de encampar os serviços de transporte oferecidos por empresas particulares. Nesse sentido, a situação do momento criou novos parâmetros, levando mais pessoas a cogitar se a Tarifa Zero não seria uma solução realista. Parece existir um consenso, nos setores políticos que se situam do centro à esquerda, que subsídios são em certa medida necessários. Contudo, parece na verdade limitado o debate sobre até que nível esses subsídios devem chegar.

Enquanto estava escrevendo minha dissertação, experimentei alguns momentos de insegurança, pensando em qual era a autoridade que eu tinha para pesquisar a Tarifa Zero no Brasil. Descobri que tratar do assunto como uma não brasileira (e escrevendo numa casa bem longe de lá) tinha duas vantagens. A primeira é que a situação me forçava a ser criativa. A segunda, que me dava uma perspectiva diferente. Assim, procurei todos os especialistas em Tarifa Zero e jornalistas que consegui, para que me abastecessem de informação sobre os casos existentes. E, como um cão farejador, segui toda pista de “caso de Tarifa Zero” na internet, navegando por sites de notícias, blogs, sites e leis municipais, para confirmar a existência da Tarifa Zero numa lista de municipalidades, que aliás continua a crescer. Enquanto minha dissertação discute cerca de 30 casos, sabemos agora que no Brasil pode haver mais de cem.13

A primeira descoberta reveladora que fiz foi a de que, em 2019, cerca de 90% dos sistemas de transporte público no Brasil eram pagos pelos usuários. Para se fazer uma comparação, na região da Flandres, onde cresci, o peso das passagens pagas pelos usuários corresponde a cerca de 15% do que recebe a empresa de transporte público. Os 85% restantes são subsidiados pelo governo (ou seja, com dinheiro de impostos).14 Quando o serviço é basicamente pago pelos usuários, isso significa que quando os custos sobem (por exemplo, devido a aumentos no preço do combustível), ou quando o número de usuários diminui (por exemplo, quando não podem mais pagar, ou quando passam a usar carro), o preço da passagem sobe para quem continua fazendo uso do sistema.15 Essa dinâmica acaba alimentando o círculo vicioso das tarifas que sempre aumentam. O modo de se calcular a tarifa também determina que no caso da maioria das concessões surge um sistema de “subsídios cruzados”, no qual os passageiros que pagam vêm a arcar com o preço das concessões. Isso exacerba as desigualdades sociais, quando, por exemplo, os trabalhadores informais — que estão entre os habitantes mais pobres das cidades —terminam pagando pelo direito dos idosos ou estudantes mais ricos de viajarem de graça.16 O transporte público já toma uma boa parcela dos orçamentos familiares no Brasil, especialmente nos setores de baixa renda.17 Algumas famílias brasileiras gastam até um terço de sua renda em passagens de ônibus.18Uma pesquisa realizada em 2015 calculou quantos minutos um trabalhador médio precisa trabalhar para pagar por uma passagem de ônibus, comparando capitais brasileiras com outras capitais do mundo. Maceió (AL) encontrava-se no topo da lista, com 15,5 minutos, seguida por 14,8 em Belo Horizonte e 13,3 em São Paulo, comparando com 11,3 minutos em Londres, 5,8 em Nova York, e 4,5 em Paris. No fim da lista estava Buenos Aires, com 2,6 minutos.19

Minha segunda revelação ocorreu quando notei que as experiências brasileiras não se acomodavam às lentes “europeias”. Ao me questionar se as prefeituras brasileiras implementaram a Tarifa Zero por motivos ambientais, sociais ou econômicos, cheguei à conclusão de que a resposta era: nenhum deles. Ainda que movimentos sociais como o Movimento Passe Livre e defensores da Tarifa Zero, como Lúcio Gregori, lutem pela Tarifa Zero a partir de um ponto de vista social, na realidade a maioria das prefeituras brasileiras a implementaram por necessidade, num momento em que não existia, ou era insuficiente, o transporte público no município. Com efeito, em cidades menores não é lucrativo operar uma empresa de transporte público. De modo a contar com algum nível de transporte público na cidade, a administração municipal decide oferecê-lo. E só depois de descobrirem que cobrar as passagens não vale o investimento, decidem deixá-las de graça. Sabendo disso, vi por que razão era tão difícil, quando não impossível, encontrar dados que respondessem a questões como a de qual tinha sido o impacto da iniciativa. Simplesmente não foram coletados.

Obviamente, a implantação da Tarifa Zero dá oportunidade para que uma autoridade municipal ou prefeito faça determinadas declarações (populares) a respeito de por que a iniciativa foi tomada. Mas frequentemente há uma diferença entre o discurso político e a realidade,20 não só no Brasil. Raramente se diz que determinada estratégia foi adotada por razões políticas. A ideia de abolir o pagamento de passagens em Talin, na Estônia — a primeira capital do mundo a oferecer Tarifa Zero para seus habitantes —“originou-se como uma estratégia para ajudar o partido no poder a consolidar sua situação”.21 Oficialmente, o objetivo do projeto era incrementar a mobilidade para todos os habitantes (argumento de inspiração social), ao mesmo tempo em que se estimulava a economia com um aumento da mobilidade da mão de obra (argumento de inspiração econômica). A ideia de implantar a iniciativa teve origem, entretanto, no gabinete da prefeitura, e lançou-se um referendo antes que os especialistas locais em transportes fossem consultados. Pode-se também dizer que iniciativas relacionadas a transporte público têm sempre uma natureza política. Com efeito, o modo com que o sistema é concebido e organizado em uma determinada localidade afeta direta ou indiretamente o acesso dos habitantes (ou de alguns grupos de habitantes) à cidade. Ademais, a inexistência de verbas para a Tarifa Zero é com frequência apresentada como uma questão técnica: a prefeitura não tem dinheiro, e, portanto, não pode oferecê-la. Contudo, como diversas experiências de Tarifa Zero já provaram, há saídas para a prefeitura financiar o sistema, como taxar (mais) algumas empresas ou habitantes. Como afirmado por Gregori e outros (2020), “A decisão política é que deve estabelecer as condições sob as quais os técnicos devem trabalhar”.22

Se a minha pesquisa trouxe mais questões do que respostas, alguns resultados preliminares podem ser enumerados. Em suma: ainda que o contexto de cada municipalidade seja diferente, descobri que na maioria dos casos a Tarifa Zero não foi uma política planejada. O oferecimento da Tarifa Zero frequentemente coincidiu com o início de um sistema de transporte público na cidade ou com o colapso do que já existia. Algumas cidades implementam a Tarifa Zero a partir de uma perspectiva competitiva, com o objetivo de atrair empresas e empregos. Pode haver também o desejo de recuperar a economia local, especialmente nas zonas centrais de cada cidade. Com algumas exceções, o sistema da Tarifa Zero é geralmente financiado com o orçamento já existente da prefeitura; não se criam novas taxas sobre os habitantes ou empresas. Desde a publicação de minha dissertação de mestrado, muita coisa aconteceu no mundo da Tarifa Zero. Em 2021, Caucaia (CE) tornou-se a maior cidade a adotar a Tarifa Zero no Brasil. Em Minas Gerais, as cidades de Caeté, São Joaquim de Bicas, Mariana, Cláudio, Ouro Branco e Santana do Deserto seguiram esse caminho. Em outros estados, Formosa (GO), Itapeva (SP), Itararé (SP), Tietê (SP), Paranaguá (PR), Quatro Barras (PR) e Tanguá (RJ) implantaram a Tarifa Zero em 2021 ou 2022. No total, esses sistemas beneficiam mais de um milhão de pessoas. Criamos uma rede de pesquisadores da Tarifa Zero, atualizando-nos regularmente sobre os desdobramentos e eventos no âmbito da Tarifa Zero, no Brasil e no mundo.23 Começamos também uma parceria com a Universidade Federal de Viçosa. No momento da redação deste artigo, estamos empreendendo a análise dos dados que foram coletados por um grupo de estudantes em trabalho de campo. Levaram a cabo entrevistas com prefeitos, vereadores, passageiros, motoristas e cobradores, e viajaram de ônibus em Mariana, Itatiaiuçu, Holambra, Artur Nogueira, Abaeté e Campo Belo. E, last but no least, dois pesquisadores fantásticos — Thais Fernandes Pereira e Daniel Santini (que também colabora neste dossiê) — atualmente trabalham em suas dissertações de mestrado sobre o assunto. Mal posso esperar pelo que eles vão revelar!