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Por uma esquerda que não se envergonhe de ficar sem nome

Toda vez que minha mãe caprichava na cozinha, meu pai acionava uma de suas brincadeiras favoritas. Adotava um tom de voz solene e anunciava: “quando chegar a lei comunista, já teremos tudo preparado”. A ideia era abrir um restaurante, com minha mãe na cozinha; “o Marcelo será o garçom”, continuava ele, “enquanto eu fico no caixa, calculando os lucros”.

Claro que tudo era palhaçada, mas algumas coisas se revelavam ali. Por incrível que pareça, nos anos 1960 e 1970 do século passado era muito comum a ideia de que “o mundo caminhava para o socialismo”. Essa certeza obviamente acabou — mas persiste, sem dúvida, a ideia de que o socialismo, o comunismo ou o que quisermos, pode ser “instituída” por força de um ato político. Na brincadeira do meu pai, advogado na época, haveria uma “lei comunista”; o termo usual, entretanto, era o de “revolução socialista”, ou, para simplificar, “revolução”.

Em seu comentário ao livro de José Maurício Domingues, Uma esquerda para o século XXI, Cícero Araújo indaga, a meu ver com muita coragem, se ainda vale a pena usar a palavra “socialismo” para indicar o que as forças de esquerda pretendem como transformação da sociedade. Se a oposição entre igualdade e desigualdade social continua, obviamente, a fazer sentido, haveria a considerar que a ideia de um polo capitalismo-socialismo não parece ter sua existência tão garantida assim.

“O socialismo”, diz Araujo, “se propunha a transformar as instituições básicas da sociedade industrial, colocando o trabalho no centro de sua reorganização e elegendo, por isso mesmo, as classes trabalhadoras no centro dessa empreitada”. Os valores do trabalho, continua, “ocupavam o centro do palco, o que gerava uma ‘tração’ na sociedade” — algo que não vemos mais atualmente.

Gostaria de ir um pouco além. Mesmo que admitíssemos uma oposição ainda nítida entre “capitalismo” e “socialismo”, isto é, mesmo que estivéssemos, digamos, em 1922 ou 1972, desconfio que haveria um erro quase conceitual na ideia de uma “revolução socialista”, ou como poderiam imaginar os mais pacíficos, na ideia de “instituir-se o socialismo” pela via eleitoral.

A razão de minhas reservas talvez seja um pouco simplória, mas vá lá. Não me parece possível falar em “revolução socialista” porque tampouco existiu, na história europeia moderna, uma “revolução capitalista”. Houve, isto sim, “revoluções burguesas” ­— e mesmo estas tiveram seus recuos e avanços, sendo difícil dizer quando se completaram a ponto de contentar o gosto do freguês. Mudanças no poder político, mesmo bruscas, tiveram momentos de acomodação, levando décadas e décadas para se consolidar. Já o surgimento de um novo modo de produção foi assunto de séculos, não se deu por decreto, nem graças à ação voluntária e organizada de um protagonista social. Interesses específicos de comerciantes, artesãos, industriais, foram impondo mudanças e novidades, ao custo de muita luta, ao universo dos privilégios feudais. O capitalismo se fez, de crise em crise, de brecha em brecha, como uma nova espécie surge ao longo de suas mutações genéticas, sem criacionismo ou design inteligente.

Ninguém — nem uma classe trabalhadora plenamente organizada — pode “instituir” o socialismo, nem dizer no que consiste; e muito menos garantir que seja “democrático” ou “autoritário”. Querer um “projeto pronto”, seja lá que nome tenha, já é, na minha opinião, conceder no rumo de uma mentalidade burocrática: não se desviem do plano, companheiros.

O que existe é a luta contra injustiças, desigualdades e exclusões políticas. Se um movimento pressiona em favor do ensino gratuito nas universidades, e tem sucesso, pode-se dizer que “socializou” o ensino superior — e não há razão para dizer que, com isso, está-se apenas atendendo à demanda específica, setorial, dos jovens. Se o movimento negro introduziu novas pautas ao conjunto das lutas pela igualdade, isto não significa que “pautas identitárias” substituíram a ideia de um projeto geral de transformação da sociedade. Significa apenas que aquele projeto não era tão geral quanto se pensava.

Quando se abandona o paradigma da “lei comunista”, de um “modelo” a ser formulado primeiro na teoria e depois levado à prática, é natural que se preste atenção a muito mais demandas, sempre renovadas, que nascem “de baixo para cima”. Pautas “socialistas”, como a criação do imposto de renda, o voto universal e o ensino básico gratuito, foram vitoriosas — e se, mesmo assim, o capitalismo prosseguiu seu curso, também é verdade que se “socializou” em comparação ao que havia antes.

Certamente, a ideia de estatizar os supermercados Pão de Açúcar ou de impor um controle dos sovietes operários sobre o Banco Itaú não parece produtiva ou desejável no atual estágio das lutas sociais. A questão da propriedade privada não está menos em pauta, contudo, quando se fala na necessidade de romper com as patentes de remédios, socializar (esta é a palavra) os lucros das empresas de software ou mudar (não me perguntem como) as regras do mercado financeiro.

Evidentemente, é o poder do Estado que deve ser orientado nesta direção — e acaba sendo, não tenho dúvida. Leis contra o assédio sexual e o assédio moral, políticas de cotas para minorias raciais, controles sobre doações privadas a campanhas eleitorais, demarcação de territórios indígenas, proibição de uso de agrotóxicos, foram e continuam a ser objetivos de lutas concretas e possíveis. São particulares, são identitárias? O que as unifica é estarem contra os interesses do capital.

E é neste ponto que também fico pensando no que diz Cícero Araújo sobre a questão do meio ambiente. Sem dúvida, políticas contra o aquecimento global terão de envolver limites aos padrões de consumo vigentes nas sociedades avançadas. Será que, com isso, estaremos correndo o risco de dar trela ao que ele chama de “uma ética de tipo sacrificial”, com prejuízos para uma contínua expansão da autonomia dos indivíduos?

A questão é das mais interessantes — em especial quando prevalece a retórica segundo a qual “a salvação do planeta depende de você”. Eis que me ponho a economizar água e a gastar mais com detergentes ecológicos… ou passo a ser vegetariano. Mas o fato é que não, a salvação do planeta não depende de mim. Depende de decisões políticas que possam punir e redirecionar as verdadeiras fontes de agressão ao meio ambiente. Nesse sentido, impor, pela via legislativa, novos impostos sobre o uso do plástico é tão “sacrificial” quanto instituir um imposto sobre heranças. A questão é saber quem arca com o sacrifício — e, mais uma vez, a luta contra a desigualdade e a injustiça se coloca, com toda a simplicidade que há em sua falta de teoria, em sua falta de projeto, e em sua falta de nome terminado em “ismo”.