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Políticas do verniz

Uberê Guelé

Nos antigos Salões de Paris, vernissage não era apenas a véspera do dia em que uma exposição se abria ao público, como hoje, mas era também o momento em que os/as artistas literalmente envernizavam suas telas. Em 1667, a Academia Real de Pintura e Escultura de Paris havia apresentado a primeira exposição “semi-pública” de arte, o que ocorreria de maneira irregular até 1737, quando os salões passaram também a admitir visitantes independentemente de seu estrato social. E é claro que a convivência não seria bem aceita pelas classes mais altas, como reclamou um cronista francês da época:

[…] não há como respirar senão numa profundeza de calor […] um ar fétido que, impregnado de atmosferas diferentes de indivíduos de espécies muitas vezes malsãs, que devem, a longo prazo, produzir estrondo ou causar pestilência […]. De resto, esta mistura de todos os estamentos, de todas as categorias, de todos os sexos, de todas as idades, da qual reclama o arrogante dândi ou a mulher vaporosa, é um golpe […]. Ali, o retirante pobre impunemente roça o mais alto aristocrata; a mulher do peixeiro troca seu perfume com aquele da dama de qualidade, o que a faz premer o nariz, a fim de evitar o forte cheiro de conhaque barato em seu caminho […] enquanto o artista escondido na multidão desvenda seu significado e dele tira proveito.1

Esse talvez seja um dos primeiros e mais explícitos relatos que tratam de um pressuposto normalmente silenciado, mas bastante persistente, segundo o qual museus e galerias seriam espaços reservados apenas aos especialistas, connaisseurs, colecionadores e uns poucos amadores. Não deixa de ser curioso que, ainda no século XVIII, o artista seja retratado como aquele que se esconde na multidão — tema que ficaria célebre com o flâneur de Baudelaire2 — e que, supostamente livre das amarras sociais, “tira proveito” dos acontecimentos. Ou seja, idealmente, nem os convivas, tampouco os artistas presentes num vernissage, fazem parte das classes trabalhadoras.

Se, com a “pestilência” da atual pandemia, os vernissages foram proibidos — ou, pelo menos, bastante restritos — há quem diga que a arte será uma espécie de “salvação”, algo capaz de suspender a profunda violência e a desigualdade que estruturam as sociedades e, quem sabe, indicar-nos uma saída: arte como um “exercício experimental da liberdade”, para citar a expressão de Mário Pedrosa, atualizada por alguns comentadores contemporâneos.

Parece haver um sentido contemporâneo para o vernissage, que renova a antiga literalidade. Trata-se de um verniz que acentua as cores da superfície de uma obra de arte, deixando-a mais brilhante, atraente, em alto contraste. Em termos mais amplos, pode-se dizer que se trata de uma política contemporânea do vernissage, que celebra a diversidade de artistas e artistes acolhidos/as/es institucionalmente, ao mesmo tempo em que museus, galerias, universidades e outros espaços mantêm um quadro bastante pálido nos altos escalões.

O verniz, ao mesmo tempo em que deixa as cores mais vibrantes, é um material bastante utilizado para a preservação da estrutura de uma obra, a fim de protegê-la contra intempéries e outros agentes externos (e indesejados). O verniz metafórico opera de maneira semelhante: ao mesmo tempo em que acentua as cores da superfície — artistas/es representadas/es —, protege o âmago de sua estrutura interior, que permanece intacta. Não por acaso, são raras as instituições de arte comandadas por pessoas “diversas”. É como se a “mulher do peixeiro”, referida na carta do século XVIII, fosse autorizada a expor suas obras; a artista, porém, dificilmente ficaria incógnita na multidão, como “verdadeira” artista, ou chegaria a ser diretora da Academia.

Em 1926, o Nouveau Petit Larousse Illustré já trazia ambas as definições do material: “Verniz. Revestimento com o qual cobre-se a superfície de certas obras a fim de preservá-las da ação do ar, da umidade, ou para dar-lhes brilho”. Em sentido figurado, o mesmo dicionário informa: “Brilho, aparência brilhante: cobrir seus vícios de um verniz de elegância”. Passados quase cem anos, esta qualidade segue bastante apreciada: aquela de cobrir a branquitude de um verniz de diversidade (o dicionário Houaiss sugere o sinônimo “delicadeza”). No circuito da arte contemporânea o verniz pode, perversamente e por contraste, acentuar o poder daqueles que o detêm — afinal, o diverso é uma categoria relacional: diverso em relação a quem? Ou ainda, para usar as palavras de Beatriz Nascimento: “A ‘aceitação’, a ‘integração’, a ‘igualdade’ são pontos de vista do dominador”3.

Por outro lado, a diversidade de pontos de vista e maneiras de estar no mundo importa. Conviver com o contraditório, com o diferente, inclusive nas instituições — como se refletissem a sociedade multifacetada, sem distorções numéricas em favor dos grupos privilegiados — importa. Mas não basta abrir as portas da exposição à “mulher do peixeiro”, ou apenas representá-la sem maiores consequências depois do fim da exposição.


Parece haver um paralelismo de interesse entre o debate público que se realiza a partir de exposições, seminários, lançamento de livros etc. e as Décadas Internacionais propostas pela ONU — a Organização das Nações Unidas —,4 como bem notou a pesquisadora Renata Figueredo, no âmbito de um grupo de estudos sobre Beatriz Nascimento e compostagem5. Entre 2015 e 2024, a Década Internacional dos Afrodescendentes parece ter coincidido com o interesse de instituições de grande porte por exposições e programas públicos que representassem esta parcela da população, em escala internacional. Para citar alguns exemplos: Soul of a Nation: Art in the Age of Black Power, Tate Modern (2017), Crystal Bridges Museum (2018) e Brooklyn Museum (2019); Histórias afro-atlânticas, Masp (2018) e Museum of Fine Arts Houston (2021); Posing Modernity/ Le Modèle Noir, de Géricault a Matisse, Wallach Art Gallery (2018) e Musée d'Orsay (2019); Slavery, Rijksmuseum (2020, em formato presencial e online) etc.

Já entre 2022 e 2032 a ONU dará início à Década Internacional das Línguas Indígenas, o que coincide, por sua vez, com o crescente interesse pelos povos originários e o debate sobre a crise climática. Para citar dois exemplos, a 34ª Bienal de São Paulo (2021) foi marcada pela presença indígena e, a um mês de seu encerramento, pela morte trágica do artista Jaider Esbell, aos quarenta e dois anos. Neste ano de 2022, o coletivo ruangrupa assumirá curadoria da 15ª documenta de Kassel; em 2018, junto de outros dois grupos baseados em Jacarta, o ruangrupa havia fundado o Gudskul: Contemporary Art Collective and Ecosystem Studies. Em 2021, este “caiu” uma posição no ranking Power 100 da Art Review, e o segundo lugar foi ocupado pela antropóloga sino-estadunidense Anna Tsing, que publicou The Mushroom at the End of the World, um ensaio sobre as possibilidades de vida nos escombros do capitalismo, que toma um tipo de fungo como ponto de partida para a reflexão.

É evidente que todas as iniciativas citadas são relevantes; o que causa estranhamento, na verdade, é que há uma cisão entre povos indígenas e afro-diaspóricos, como se apenas os primeiros tivessem uma relação estreita com a natureza, o meio ambiente, o território. Depois de séculos de extrativismo climático e humano, as instituições — incluindo a arte — parecem se voltar às populações autóctones numa estranha celebração, que ressoa como uma cínica transferência de responsabilidade.

Nas palavras de Esbell,

[…] as pessoas têm dois momentos para os povos originários. Primeiro, eles não servem mais. Ou eles têm que salvar o mundo que os brancos destruíram. […] Como se pudéssemos de fato salvar o mundo sozinhos, como se o mundo tivesse salvação que dependesse unicamente de nós.6

Por outro lado, africanos e africanas que foram arrancados à força de suas terras, e seus descendentes nascidos deste lado do Atlântico, histórica e insistentemente buscaram criar e recriar suas raízes com a terra, além de terem sido impedidos de assentarem-se como cidadãos em diversos momentos, antes e depois da abolição. Para citar apenas um exemplo, os artigos 17 e 18 da Lei nº 9 da província da Bahia aprovada em 1835 (curiosamente no dia 13 de maio) eram explícitos:

Artigo 17: fica proibida aos africanos libertos a aquisição de bens de raiz [terras e edificações] por qualquer título que seja, e os contratos [já existentes] a respeito serão nulos.

Artigo 18: é proibido a qualquer proprietário, arrendatário, sublocatário, procurador ou administrador alugar ou arrendar casas a africanos libertos que não se apresentarem munidos de autorização especial para isso, que seja dada pelo juiz, sob pena de incorrerem na multa de 100 mil réis.7

Populações afro-diaspóricas, ameríndias e, mais recentemente beiradeiros8, têm muito mais em comum do que parece à primeira vista, tanto no que diz respeito à outridade — às vezes perversamente reforçada pelas instituições brancas de arte —, quanto em sua relação com a terra.

A grande historiadora dos quilombos no Brasil, a já citada Beatriz Nascimento, propõe que essa associação de homens, mulheres, crianças e animais “se forma mais na necessidade humana de se organizar de uma forma específica que não aquela arbitrariamente estabelecida pelo colonizador”, recusando a interpretação tradicional que entende a formação de quilombos como uma simples ação reativa. Assim, interessa pensar: por que instituições como a ONU e os grandes museus insistem em separar tais categorias, “africanos”, “afro-diaspóricos”, “indígenas”, “meio-ambiente”, “natureza” etc.? Dito de outra forma, a quem interessa a habitual taxonomia colonial, que cataloga seres humanos como objetos isolados de contexto? Numa entrevista para a revista Manchete, de 1976, Nascimento estabelece que

O próprio Quilombo colonial não era apenas reduto de negros, embora estes representassem a maioria da população, mas, pela sua origem social, integrava negros e outros oprimidos, índios por exemplo, e mulheres brancas. […] é ao organizar sua própria sociedade que o negro se afirma e se torna autônimo10.


Estudos arqueológicos recentes vêm demonstrando que a floresta amazônica foi cultivada, construída pela ação humana11. Ao contrário do senso comum que imagina uma natureza “intocada” ou “virgem” — metáfora sexista que pressupõe sua violação em nome do “progresso” —, esta foi sendo criada ao longo de séculos, numa contundente justaposição entre “natureza” e “cultura”. Ou melhor: “natureza” como “cultura”, o que além do mais mostra os limites dessa divisão conceitual. “São, portanto, esses primeiros grupos humanos nômades na Amazônia os responsáveis pela criação da Cultura Tropical e pelas profundas transformações da paisagem”, para citar as palavras da artista e pesquisadora Anita Ekman Jaxuca12. A partir dessa perspectiva, não há como não notar a profunda equivalência entre as duas acepções que carrega a palavra cultura: aquela das construções simbólicas de uma sociedade e a de cultivar a terra.

Assim, a floresta pode ser entendida como um vasto monumento, um sítio arqueológico da maior importância, passível inclusive de tombamento pelas instituições responsáveis: Iphan, Unesco etc. o que, nesse caso, contribuiria ativamente para a preservação ambiental, para (muito) além do habitual discurso. Se, há alguns anos, argumentava-se que as culturas amazônicas não seriam tão “desenvolvidas” como outras que construíram cidades ou impérios — à imagem e semelhança do colonizador-arqueólogo —, isso se daria pela falta de evidências materiais. Mas qual evidência material poderia ser maior e mais vasta que a Amazônia?

Numa época de profunda crise, em que a sobrevivência dos seres humanos está francamente ameaçada, as instituições de arte têm falado pouco sobre as implicações branco-coloniais que formam sua estrutura. Talvez o verniz contemporâneo da diversidade apenas atualize sua antiga função, a de preservar fósseis mortos nos museus — com a diferença de que agora ameaça toda a espécie.