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Para ver as meninas

resenha de Meninas, de Liudmila Ulítskaia

Sem título, Gabriela Godoi

A publicação de uma primeira autora na Coleção Leste da Editora 34 foi festejada, e com razão. Aos vinte anos da mais recente febre russa — datada a partir da publicação de Crime e castigo pela mesma coleção em 2001 —, e com autores clássicos como Dostoiévski e Tolstói já razoavelmente cobertos no mercado brasileiro por boas traduções diretas, é mais recente o interesse das editoras por autoras/es do século XX e, em particular, do período chamado de pós-soviético. O volume Meninas, de Liudmila Ulítskaia, chega num momento de descoberta por parte do mercado editorial, não só da literatura russa contemporânea, mas também das obras de autoria feminina dessa tradição.

Também é notável que o período tenha um bom número de escritoras excelentes e consagradas. Uma amostra dessa produção feminina aparece nas coletâneas Nova antologia do conto russo, organizada por Bruno Gomide, e Antologia do humor russo, com organização de Arlete Cavaliere, além da publicação de volumes de autoras como Svetlana Aleksiévitch e Liudmila Petruchévskaia. Talvez a lacuna mais gritante nas traduções brasileiras seja Tatiana Tolstaia, cuja coletânea de contos No degrau de ouro chegou a ser traduzida por Tatiana Belinky nos anos 1990, mas está fora de catálogo atualmente. Nesse sentido, também é importante lembrar do trabalho de professoras e pesquisadoras — como Raquel Toledo e Denise Sales, para dar dois exemplos — que vêm se empenhando em trazer para o debate brasileiro autoras do cânone feminino russo.

Liudmila Ulítskaia é considerada um expoente da literatura russa contemporânea, além de ser uma das vozes mais ativas na crítica ao governo russo atual. Nascida em 1943, é geneticista de formação e chegou a trabalhar em um laboratório, mas foi demitida por uma acusação de participar na difusão de um livro proibido pela censura. Depois disso, exerceu diversos trabalhos relacionados à literatura e ao teatro. Aos 50 anos, já depois do fim da União Soviética, publicou seu primeiro livro.

Seu Meninas, publicado pela primeira vez como parte deste livro de estreia, Parentes pobres, em 1993, aborda o cotidiano de um grupo de pré-adolescentes na Moscou do pós-guerra. A edição brasileira conta com um interessante posfácio do editor Danilo Hora e boa tradução de Irineu Franco Perpétuo, que recria muito bem a agilidade do ritmo e a ironia de Ulítskaia. Trata-se de um ciclo de contos que se complementam, mas que são independentes entre si. Com clara simpatia, a autora percorre as mitologias do grupo de meninas: brincadeiras, atividades escolares, relações familiares, amizades e desavenças. Ulítskaia detém um olhar generoso sobre os últimos anos da infyância para tratá-los com a devida complexidade.

Esse também é o olhar com que a autora apresenta o panorama de uma União Soviética diversa, plural, desigual. A vida soviética figura no livro como um universo rico e contraditório num momento de transição histórica, a um só tempo pulsante em sua diversidade, mas também marcado por tensões de classe, região e gênero.

Esse período da história russa, em que ficava para trás uma turbulenta primeira metade do século XX, com guerras, revoluções e perseguição política, se manifesta em diálogo com o momento da vida das meninas do título, em que, junto com as brincadeiras infantis, começam a lidar com mudanças do corpo, a descoberta da sexualidade e outras questões típicas do processo de amadurecimento. Como bem comenta Danilo Hora no posfácio, temos aqui “o retrato de uma geração [que] não é uma visão panorâmica de eventos históricos, mas um pontilhado das reverberações desses eventos na vida cotidiana”.1

A questão da representação da história, tão cara à tradição literária do país, recebe uma resposta original na obra. O foco narrativo é absolutamente interno à sociedade russa, na medida em que acompanha o olhar infantil das personagens que nunca conheceram nada de diferente. Por outro lado, trata-se de um olhar, por definição, estrangeiro à narrativa oficial — as meninas são parte deste outro, por assim dizer, que só costuma aparecer nos relatos históricos como uma ruidosa ausência: as etnias não russas, as mulheres, as crianças que, vivendo e compartilhando uma experiência histórica (e uma tradição literária) que não as leva em conta, vivem à sua sombra, sem por isso deixar de ter sua própria experiência rica em afetos, complexidades, contradições.

Ulítskaia retraça, assim, as formas sutis ou violentas com que o momento histórico deixa suas marcas na biografia e no corpo dessas meninas. O período formador do grupo se confunde com o processo de transição de uma sociedade que em breve deixaria para trás um momento particularmente duro de sua história. É nesse gesto narrativo que a memória, sempre alvo de revisitas e renegociações, se torna o terreno de reconhecimento dos processos de formação, com suas experiências belas, seus traumas e silenciamentos. A elaboração coletiva, como uma espécie de despedida da infância, é um processo confuso e por vezes dolorido, mas também muito vivo em toda sua potencialidade.


A autora agradece a Drielle Alarcon pelas sugestões valiosas feitas a este texto.