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Entre o Eu e o Outro, o mistério e a paixão

Uma conversa sobre Lygia Fagundes Telles com Tamy Ghannam e Nilton Resende

Lygia Fagundes Telles, Adriano Rampazzo

Falecida no último dia 3 de abril, Lygia Fagundes Telles, autora de uma vasta e importante obra, formou várias gerações de leitores, não apenas deixando a eles e ao futuro uma rica contribuição com a literatura brasileira, mas também formando, com esses leitores e com a própria arte, um pacto de identidade literária.

Por meio de seus textos, Lygia nos abriu enigmas, e, por meio das relações humanas, forjou a matéria-prima do mistério de seus personagens. Fez alquimia com as formas aparentemente simples da escrita, portanto, as mais difíceis, onde o belo mora nas sensações, não nas pretensões.

A conversa a seguir celebra Lygia Fagundes Telles através daquilo que de mais valioso um escritor pode ter: seus leitores. A Revista Rosa conversa com a crítica literária Tamy Ghannam e com o professor Nilton Resende, ambos especialistas e leitores inveterados da obra da escritora.


Lucas Figueiredo Silveira — Antes de tudo, como vocês chegaram à obra de Lygia Fagundes Telles?

Tamy Ghannam — Eu frequentava a biblioteca pública do meu bairro quando adolescente, buscando livros cujos títulos me atraíssem, carente de maiores referências literárias com as quais me guiar. Um dia, passeando desnorteada pelas estantes, como costumava fazer, encontrei As meninas e pensei que, sendo eu uma menina, certamente me identificaria com a narrativa dessa tal autora que até então desconhecia. Assim foi que caí pela primeira vez numa armadilha lygiana, pois, ao contrário do esperado, o que se apresentava naquele romance era muito além do que minha meninice poderia captar. Logo abandonei a leitura da obra, complexa demais para mim, e não pensei mais nisso. Anos depois, quando já cursava Letras, esbarrei outra vez com Lygia Fagundes Telles nas estantes de uma biblioteca pública e foi como se escutasse um chamado, um convite misterioso para o desafio de contatá-la novamente. O livro era Antes do baile verde, que me fisgou por completo, e do incômodo da fisgada se fez o encantamento: como podia essa autora entrar assim tão fundo na gente, no que há de tão escondido que nem mesmo nós reconhecemos, e, de uma hora para a outra, tirar tudo do lugar, deixando-nos, por fim, sozinhas a lidar com a bagunça provocada pelo que ela escreveu? Assim me apaixonei de vez por ela.


Nilton Resende — Cheguei à Lygia através da Revista do Livro, que era uma publicação do saudoso Círculo do Livro. A cada três meses, eu recebia a revista, com obras de todos os gêneros, de diversas nacionalidades… Por uns dois anos, o título As meninas me chamou a atenção; ele, a capa, a sinopse… Até que um dia finalmente eu o tive nas mãos. Li e me apaixonei. E, depois, Ignácio de Loyola Brandão escreveu uma crônica sobre a Lygia num dos números da mesma revista. Então, já apaixonado pelo livro, eu me apaixonei por ela. Isso foi na primeira metade de 1987 — desde então, a paixão nunca arrefeceu.

LFS — Vocês são os criadores do perfil @bibliotecalygiana no Instagram, cujo objetivo é falar sobre “livros dela e sobre ela, eventos, artes e projetos lygianos”, como podemos ler assim que acessamos a página. Como é isso de difundir a obra dela na internet? Como os leitores-internautas acolheram o projeto de ler os livros de Lygia e publicar fotos utilizando a hashtag #eu­leio­lygia­f­telles?

TG — Nilton e eu nos conhecemos a partir de Lygia Fagundes Telles e nos tornamos amigos por conta do amor que sentimos por ela. Esse afeto comum nos aproximou em níveis muito profundos e, como duas criaturas lygianas por excelência, completamente movidas pela paixão, um dia decidimos — ao lado do nosso querido Carlos Eduardo Queiroz, numa feira literária organizada por ele e tendo Lygia como homenageada — dar um jeito de espalhar essa paixão por aí, reunir outras pessoas também tomadas pelo fascínio que a literatura de Telles provoca e, primordialmente, contagiar novos leitores. Um perfil no Instagram pareceu a melhor ideia, algo relativamente simples de executar e eficiente para nosso intuito. Desde que começamos, em 2018, não só nossa amizade se fortaleceu, com Lygia nos entrelaçando, mas também nosso entendimento de sua obra ganhou outras dimensões. O trabalho com a Biblioteca Lygiana e a interação tão positiva e entusiasmada dos internautas nos projetos que propusemos, como a leitura coletiva #eu­leio­lygia­f­telles e as homenagens de aniversário à autora, nos mostraram que Lygia Fagundes Telles está cada vez mais viva, e suas palavras, mais reveladoras dos conflitos que nos estremecem individual e coletivamente.


NR — A Lygia, a sua obra, os seus leitores… tudo isso é algo que a gente não tem como abarcar ou mensurar. Sempre há pessoas lendo-a, pessoas de todas as idades. Mas também há muita gente que ainda não a conhece. Isso é interessante, porque nos mostra como os grandes livros não morrem, pois sempre haverá alguém que um dia tomará um desses livros na mão pela primeira vez e se encantará; e a partir de então, uma nova relação terá início. É um mistério, um bonito mistério que se alonga.

LFS — Aproveitando o gancho da pergunta anterior, que de alguma forma nos abre espaço para começarmos a falar de sua obra, por que Lygia preferiu e praticou mais a narrativa breve à longa? São quatro romances contra mais de uma dezena de livros de contos.

TG — Diante dessa pergunta, só me cabe especular. Lygia costumava dizer que o conto é a fotografia de uma árvore — mas há alguém atrás da árvore. Essa impressão de algo latente mobilizando os textos faz parte de toda a produção lygiana, inclusive dos romances, mas a estrutura necessariamente enxuta do conto, se bem manipulada, pode vir a intensificá-la, e Telles sabia disso. Exímia leitora de contistas exemplares, como Machado de Assis e Edgar Allan Poe, duas referências declaradas, e provavelmente também por isso, ela deu corpo a certa técnica narrativa muito própria e aprendeu a dominar suas formas e contornos de modo a fazer com que nós, leitores de seus contos, sejamos capciosamente transportados àquele retrato, reconhecendo-nos, não sem susto, como o tal alguém que se esconde detrás dos troncos no jardim selvagem em que sua literatura se situa.

Talvez tamanha intensidade só mesmo uma forma breve seja capaz de encerrar.


NR — Em mais de uma oportunidade, em entrevistas, Lygia falou de como, durante sua infância, sempre escutava histórias de terror contadas por suas babás; histórias que lhe davam bastante medo. Também falou que, para amenizar seu medo e, de algum modo, transferi-lo para o outro, passou ela mesma a contar histórias para seus amigos. Assim, a narradora nasceu do exercício de um tipo de texto muito próximo ao conto, as histórias de terror contadas através de gerações ou inventadas no calor da hora (ou no frio da noite), e que, sabemos, têm uma grande preocupação quanto ao efeito sobre o ouvinte (que no futuro seria o leitor). Efeito cujo sucesso dependeria não apenas do que se contava, mas de como se contava: o que mostrar de início, o que esconder, a que elementos dar ênfase, que ritmo imprimir, quando dar determinadas informações, de que modo finalizar… Esses aspectos, essas preocupações tão presentes nas narrativas orais de terror, eu acho que certamente foram o laboratório da contista, fazendo com que logo cedo ela sofresse, experimentasse, estudasse o que era tão afim a esse gênero do qual futuramente ela se tornaria uma mestra.

LFS — As narrativas lygianas têm, com frequência, tramas que deslocam a banalidade do cotidiano. Há sempre uma estranheza no ar, ou algo estranho acontecendo — como um passeio em um cemitério abandonado ou um moço que toca saxofone à noite em uma praia deserta. Uma estranheza que já podemos perceber pelos títulos nada convencionais: Ciranda de pedra, Conspiração de nuvens, Seminário dos ratos, As horas nuas, Durante aquele estranho chá e por aí vai… Vocês também percebem isso? Se sim, o que representa essa estranheza nos textos de Lygia?

TG — Esse estranhamento me fez companhia desde a primeira vez em que li um texto lygiano e segue me acompanhando em toda nova releitura. É certo que em cada texto ele se manifesta de maneira singular e pode vir a representar algo bastante específico, mas, de modo geral, me parece que a estranheza é a própria base das histórias de Lygia Fagundes Telles, tão arraigada que muito naturalmente se faz parte do modo de narrar e ambientar da autora. Lygia se dedica a perscrutar o oculto em conteúdo e forma, a caminhar sobre um solo lamacento e movediço no qual se esconde qualquer coisa de essencial que teimamos em enterrar sob camadas de um verniz civilizatório que, na literatura lygiana, se desgasta, não cabe, desmancha, restando-nos encarar, como num espelho, a carcomida cara de pau de suas personagens, tão frágeis quanto qualquer ser humano de carne e osso. Muito da estranheza dos escritos de Telles vem dessa revelação oblíqua daquilo que há de mais escondido, baixo e original de nós mesmos. E isso se manifesta de diversas maneiras.


NR — Acho que os textos da Lygia são histórias de terror, mas de um terror cotidiano, pois não é preciso que haja a intromissão do sobrenatural para que experimentemos o medo, para que tenhamos receio do que pode vir a acontecer, para que sintamos que não temos controle sobre o que nos cerca e sobre nós mesmo, para que estejamos sempre em contato com o desconhecido. Acho que ela renova a história de terror, atualizando, de certo modo, a obra de Edgar Allan Poe, de quem ela foi uma grande leitora. Ela nos diz que os enigmas estão, todos os dias, lado a lado conosco.

LFS — Há também figuras, imagens, símbolos, objetos e cores muito recorrentes em seus textos, como a cor verde, a presença de anões, as formigas, o saxofone. Essas pequenas obsessões ajudam a formar uma espécie de “microcosmo lygiano”?

TG — Uma das características de que mais gosto na obra de Lygia Fagundes Telles é o estabelecimento de um microcosmo que a seus leitores mais afeitos é dado investigar. A recorrente aparição de determinados elementos em diferentes escritos os promove a símbolos com significados próprios, com sentidos que as histórias nos indicam como desvendar e a compreender enquanto parte de um projeto literário maior. É como se cada uma dessas pequenas obsessões fosse um elemento narrativo com sentido particular, atuando a favor dos efeitos que os textos e a obra geral pretendem transmitir. A cor verde e o saxofone, por exemplo, são alguns dos princípios que regem a feitura do microuniverso lygiano, tijolinhos dessa construção, digamos assim. Quanto mais frequentamos esse microuniverso, melhor os reconhecemos.


NR — Essas recorrências dão forma ao mundo de Lygia, que é um mundo próprio, com leis próprias, códigos próprios. Quando abrimos um gibi da Turma da Mônica e começamos a ler uma história, entramos nesse mundo específico, com traços característicos, bordões, ações… Há coisas que não caberiam ali. E isso não significa que tudo é previsível, mas que há um mundo tão coeso e coerente que conseguimos perceber quando algo seria estranho a ele. Assim acontece no mundo ficcional de Lygia, paulatinamente construído por décadas. Nele, objetos, gestos, espaços exercem a função de conarradores, dizendo-nos o que as personagens teimam em esconder. Para seu leitor contumaz, a presença desses elementos a cada novo texto lido dá a ele um sentimento de reconhecimento de mundo e também de afirmação ou reafirmação do pacto — o pacto que Lygia tencionou fazer ao construir esse mundo, com tais aspectos, e que o leitor aceitou, ao visitá-lo reiteradas vezes.

LFS — Um dos romances mais conhecidos de Lygia, talvez o mais conhecido, As meninas, foi lançado em plena ditadura militar porque na época o censor responsável pela leitura achou o livro muito chato e liberou sua publicação. Como vocês avaliam a atuação de Lygia, enquanto autora e cidadã, durante este período da história do país? E mais: a obra de Lygia, de alguma forma, nos ajuda a entender ou a pensar o Brasil do século XXI?

TG — Lygia era uma mulher corajosa. As meninas é uma prova disso, romance lançado em plena ditadura militar brasileira, contendo um relato de tortura que passou incólume pelos censores, nesse episódio que você recontou e que ela adorava lembrar. Também foi ela a responsável, na época, por entregar ao chefe do gabinete do Ministério da Justiça um manifesto assinado por mais de mil intelectuais brasileiros contra a censura ditatorial. Sinto que hoje estamos todos precisados dessa coragem encarnada pela autora e sua obra. A literatura e seus agentes, especialmente, precisamos desse tipo de coragem para continuar existindo no país.

Ainda que em maior parte centrada na perspectiva bastante específica de protagonistas de classe média, a literatura de Lygia nunca deixou de lado o social que a circunda, nem de lançar olhar às misérias que não necessariamente a competiam — a menos não a título de experiência, mas certamente a nível de interesse e indignação.

Obras como As meninas, Seminário dos ratos e “A confissão de Leontina” são exemplares nos quais se entreveem as raízes sólidas de um Brasil erguido sobre múltiplas violências, a partir dos quais reconhecemos que tais violências se perpetuaram. São textos que, de alguma forma, nos incitam a combater tudo isso com coragem. Por isso é que acredito que a leitura de Lygia Fagundes Telles é fundamental para pensar culturalmente o Brasil dos séculos XX e XXI.


NR — A obra de Lygia ajuda-nos a nos entendermos como pessoas e como país. Lembremo-nos, por exemplo, de Ciranda de pedra, cuja protagonista é uma criança que mais de uma vez emite falas racistas, dizendo que a empregada da casa é “feia”, “ruim”, afinal ela é “preta”… e que ao morrer quer ser anjo, “mas um anjo branco”, porque ela vai pro céu. “Todas as manhãs [as flores] eram regadas pelos anjos louros que passeavam de mãos dadas, em bandos. Todos louros? É, todos louros, até Isabel que morrera preta mas que no céu virou branca, muito mais bonito anjos só brancos, podiam soltar os cabelos até os ombros, como Otávia. Ser preto era triste e no céu só tinha que ter alegria.” Diversas vezes a menina, que vem de uma família abastada, com governanta alemã, mostra ser preconceituosa. Mas, ela é uma criança, e esse preconceito ela certamente aprendeu com os adultos, aprendeu com a alta burguesia.

A obra de Lygia tem predominantemente personagens burguesas, e elas são preconceituosas, como é muito preconceituoso o nosso país. Não há, em seu mundo ficcional, a ilusão de que somos iguais e vivemos pacificamente.

LFS — Há uma passagem de A obscena senhora D, de Hilda Hilst, que, desconfio, Lygia é a personagem. Diz a protagonista, Hillé: “Eu ria muito quando minha amiga L arrumava os pés, lixava aquelas unhas com tanto cuidado, o dedão era o preferido, ficava lindo o dedão, eu dizia: Ó L, alguém vai te chupar o dedão? Então ríamos”. Gostaria que vocês comentassem um pouco a relação de Lygia com seus pares.

TG — O Nilton certamente vai saber falar melhor, porque teve contato afetivo com elas duas, mas creio que Lygia era uma amiga e tanto. Sua relação com Hilda Hilst, pra mim, é uma das amizades mais bonitas do cenário cultural brasileiro. E é fascinante como, neste caso, a literatura se deixa contaminar pela realidade e traz “a amiga L” como uma possível referência à amiga Lygia Fagundes Telles, quase como se nos desse licença para observar pela fechadura um pouquinho do que eram intimamente as duas. Gosto de poder desconfiar dessa possibilidade.

Tenho a impressão de que, no geral, Lygia esteve muito ligada aos seus pares literários — ficamos sabendo de algumas dessas ligações em seus textos memorialísticos e em fotografias, por exemplo. Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Caio Fernando Abreu, Ignácio de Loyola Brandão e Nélida Piñon foram seus amigos. Ela era uma escritora atenta e afeita a quem mais fizesse literatura.


NR — Lygia sempre prezou muito por suas amizades, e era também bastante prezada. Para ilustrar isso, lembro um fato: numa manhã, na Flip de 2004, eu fui me encontrar com ela no hotel em que estava hospedada, para conversarmos enquanto tomávamos o café da manhã. Num jornal, havia saído uma crítica bastante negativa em relação ao último livro da Nélida Piñon. Eu estava com o jornal e perguntei se ela havia lido o texto. Daí, ela me disse que já estava sabendo e não queria falar daquilo, porque havia sido uma crítica um bocado feroz, e ela ficava muito triste quando destratavam um amigo ou a obra de um amigo; ela sofria junto.

Além da Hilda, Clarice, Erico e Drummond, cuja amizade é conhecida por todos, ela também amava muito o Ricardo Ramos (filho de Graciliano Ramos), a quem ela chamava de irmão. Ela falava muito do Antonio Candido e do Darcy Ribeiro, cujas inteligências ela sempre elogiava. E falava também do carinho por Jorge Amado, Zélia Gattai, João Ubaldo Ribeiro, que estava doente e lhe deixava um pouco preocupada. A Tamy falou do Caio Fernando Abreu, e me veio a lembrança de como a Lygia sempre o visitou durante o período em que ele esteve internado no hospital Emílio Ribas; ela preocupava-se muito com ele, com a doença, com a solidão. Ela era afetuosa, generosa e de uma grande empatia para com o outro.

LFS — Logo após sua morte, um debate acendeu as redes sociais: após pesquisas em arquivos, a verdadeira idade da autora foi revelada. Lygia nasceu, na verdade, em 1918 e não em 1923, como ela costumava dizer. Para vocês, o que esse detalhe biográfico significa exatamente? Que perdemos a chance de comemorar seu centenário em 2018? Que se trata de mais um sintoma da sociedade machista em que vivemos, na qual as mulheres sempre devem parecer mais jovens do que realmente são?

TG — Só ela conhecia suas razões para esconder a verdadeira idade, mas podemos alcançar algumas sugestões. Lygia Fagundes Telles era uma mulher. E há um longo ciclo de apagamentos na história das mulheres. Na história de artistas mulheres. Atrizes. Escritoras. Qualquer coisa pode ser motivo para não lê-las, não valorizá-las: “ah, só escreve livros femininos”, “essa aí não tem classe suficiente” ou “ela é muito velha”. Às mulheres é preciso ser jovem e, por isso, mentir a idade quando ela avança, dizem. A velhice pode ser um repelente, como sugere a própria literatura lygiana, com tantas personagens idosas solitárias, ilhadas, mas lúcidas em suas loucuras. Para mim, o que fica disso é uma questão: que tipo de sociedade formamos, que provocamos mulheres geniais a mudarem sua data de nascimento?


NR — Podemos considerar isso, sim. Mas prefiro pensar que ela, como uma enorme ficcionista, soube manipular não apenas o tempo em seus textos, mas o tempo em torno de sua própria vida.

LFS — Com uma obra consistente e múltipla, Lygia Fagundes Telles esteve presente na cena literária brasileira por sete décadas — talvez a atuação mais longeva na história de nossa literatura. Para vocês, pessoalmente, qual é o legado que ela nos deixa?

TG — Acredito que, assim como sua obra, seu legado também é e será consistente e múltiplo. Inesgotável. Mas se há algo de definitivo nele, é que Lygia nos ensinou a apostar na paixão. A não ignorar nossos impulsos básicos, por mais vis que possam parecer, pois devemos encarar quem somos por inteiro. A confiar na vocação e seguir em frente. “Que seja então corajosamente.”


NR — Há diversas respostas que podemos dar aqui, mas escolho três: uma em relação à literatura; outra em relação a seus leitores; outra em relação a um leitor em particular, que sou eu mesmo. Começo pela terceira, dizendo que um legado da obra de Lygia sou eu mesmo, pois fui “construído” como pessoa através de sua obra. Nela, aprendi sobre mim, sobre minha família, sobre nossos afetos, tão fortes, tão frágeis, tão inclassificáveis. Na segunda resposta, digo que a literatura de Lygia é importante para o leitor porque, mais do que revelar algo, ela reafirma a impossibilidade de apreensão, o mistério que é cada um de nós, o mistério que envolve nossas relações. A obra de Lygia amadurece-nos, porque não finge estar nos dizendo algo, descortinando alguma verdade. Ao contrário, ela nos mergulha num mundo todo coberto de véus, como se dissesse: “tudo é véu, e não tente compreender o outro; apenas, assuma o mistério — afinal, a razão é apenas uma de nossas faculdades, é apenas uma das formas de nos acercarmos do mundo”. E Lygia parece querer desentronizar a razão o tempo todo, afirmando que há muita coisa no mundo que ela não consegue alcançar.

A minha primeira reposta é esta: Lygia legou-nos uma literatura feita como quem constrói uma obra de artesania… lentamente, pesando cada elemento, vislumbrando seus possíveis efeitos… Ela era uma narradora de obras cujas fábulas, por si mesmas, já tornariam seus textos muito interessantes, mas que buscava fazer com que também o modo de narrar fosse objeto de atenção. E digo “modo de narrar” referindo-me mesmo à categoria do narrador. É também uma literatura muito teórica a dela, com muitas reflexões sobre o fazer literário, mas sem isso ser explicitado. Não há em seus textos a metaliteratura que vemos em tantos textos, jogando um holofote sobre si mesma. Em sua obra, a reflexão sobre a literatura é como tudo o que ela escreveu: sutil, elegante, felina, ao ponto de estar junto de nós e não percebermos. Além disso, Lygia deixa lições para quem quer escrever: a paciência, a revisão de si, o diálogo com outros autores, a busca de não se repetir, o desafiar-se a cada nova obra. Lygia publicou seu romance mais radical aos 71 anos de idade, depois de ter tomado posse na Academia Brasileira de Letras, quando muitas pessoas poderiam acomodar-se; publicou seu livro de contos mais ambicioso aos 77 anos de idade; publicou aos 82 anos um livro de gênero híbrido, misto de “invenção e memória”. Sempre renovando-se, sempre incansável. E agora, eterna.