Minha esquerda é aquela da unidade popular
original en français
“Ser de esquerda é, antes, pensar o mundo, o seu país, nos seus próximos, e então pensar em si mesmo. Ser de direita é o contrário”. Essa citação do filósofo francês Gilles Deleuze é hoje mundialmente conhecida. Pronunciada em 1988 quando a França era então presidida por François Mitterrand, o primeiro presidente de esquerda da Quinta República, ela nos remete à ideia de universalismo e de partilha, mas é bem vaga no que se refere às responsabilidades que um tal engajamento pressupõe.
Há alguns meses, eu falava sobre isso com meu vizinho, que se diz de direita, e chegamos a um acordo sobre essa definição. Então ser de esquerda, portanto, seria não ser de direita. Que avanço! Mas e aí?
Na noite da última eleição presidencial, em 2017, o total de votos para a esquerda — Jean-Luc Mélenchon (LFI, La France insoumise), Benoît Hamon (PS, Parti Socialiste), Philippe Poutou (NPA, Nouveau Parti Anticapitaliste) e Nathalie Artaud (LO, Lutte Ouvrière) — chegava a 27%. No entanto, em novembro do mesmo ano, o instituto de estatística IFOP pesquisou sobre o posicionamento das francesas e dos franceses em relação à direita/esquerda e apenas 15% dos entrevistados afirmaram ser de esquerda. É a prova de que os números não coincidem e que uma parcela crescente do eleitorado não precisa de etiquetas para fazer sua escolha.
Cinco anos depois, encontramos agora seis candidatas e candidatos no campo da esquerda. Uma grande parte dos franceses, com razão, lamenta tal divisão. São muitas candidaturas, é verdade. Mas é a prova de que “A” esquerda não existe, e de que, por fim, a união da esquerda, tão deseja por alguns, está bem longe de ser a principal preocupação desta eleição.
Convergir para o centro: o naufrágio de um ideal político
O último presidente identificado como à esquerda que a França teve foi François Hollande, do Partido Socialista, eleito em 2012. Se ele não foi o presidente dos ricos, como seu ministro da Economia e sucessor Emanuel Macron, também não foi o inimigo do mercado financeiro que prometia encarnar durante sua campanha eleitoral.
Ele conseguiu provar que um governo de esquerda podia: fazer reformas trabalhistas que reduziram as obrigações legais dos patrões e portanto a proteção dos empregados (lei El Khomri); gastar 100 bilhões de euros que poderiam ter sido direcionados à pesquisa para aumentar a competitividade das empresas e os dividendos dos acionários (CICE, Crédit d’impôt pour la compétitivité et l’emploi); não questionar a reforma da previdência de seu predecessor, Nicolas Sarkozy, que havia aumentado para 62 anos a idade legal para se aposentar; oferecer à extrema direita, numa bandeja de prata, o debate sobre a extinção da nacionalidade francesa aos delinquentes binacionais; reivindicar uma das ferramentas constitucionais mais antidemocráticas, o artigo 49.3, para fazer com que o parlamento adotasse à força uma lei controversa; e, por fim, abrir o caminho para à banalização do regime de Estado de Urgência que não havia sido aplicado desde a Guerra da Argélia, em 1955.
A sequência, nós conhecemos. Em 2017, Emmanuel Macron, antigo ministro e banqueiro, torna-se presidente e aproveita-se dessa situação para continuar, a passos rápidos, o desmantelamento das conquistas sociais. Então, onde está a esquerda? O que prometem todos esses candidatos para que essa crise de sentidos não se reproduza?
A esquerda. A esqueeeeeeerda. Já é bem suficiente se essas etiquetas servem para aqueles que com elas se identificam . A menos de dois meses da próxima eleição presidencial, na qual os três candidatos preferidos são claramente representantes da direita mais conservadora, nossa prioridade deve ser a de trabalhar em um verdadeiro programa de ruptura para dar credibilidade a um projeto de sociedade de partilha de riquezas e de solidariedades.
Se a união das candidaturas que se identificam à esquerda consistir numa convergência ao centro, será o naufrágio garantido de todos aquelas e aqueles que tiverem embarcado nessa ilusão. Essa união permitiria, talvez, a ilusão temporária de um bom resultado eleitoral, mas seria em troca do naufrágio de um ideal político, o que é muito pior.
O momento é para a radicalidade das multidões
O último relatório da ONG OXFAM mostra que, na França, ao longo da pandemia, os bilionários enriqueceram 175 bilhões de euros, o que corresponde a duas vezes mais o valor do orçamento do sistema de saúde público francês. A França é hoje o país de nove milhões de pobres, de oito milhões de pessoas que dependem de ajuda alimentar e de doze milhões de pessoas que sofrem com o frio em suas casas. Os dirigentes europeus lamentam-se do aumento do preço da energia e distribuem ajudas efêmeras para conter o descontentamento social, sem apontar, contudo, a relação de causa e efeito com a privatização de empresas públicas, como a EDF (Electricité de France), que garantiriam a regulação dos preços. Os impactos do aquecimento global multiplicam-se de maneira excepcional, mas nenhum dirigente hoje está em condições de impor uma mudança no sistema de produção e de acumulação de recursos necessários para salvar nosso planeta.
O momento é para a radicalidade, não para os pequenos consensos. E essa radicalidade é possível porque ela envolve a maioria da população.
O antigo vice-presidente boliviano, Álvaro Garcia Linera, conhecido por ter sido um dos principais teóricos do modelo do buen vivir implantado por Evo Morales de 2006 a 2019, fazia, em 2013, uma crítica contundente às esquerdas europeias. Ele as acusava de terem desertado do campo das lutas ao deixarem a União Europeia tornar-se a Europa dos mercados às custas da Europa dos povos, de terem deixado a democracia se reduzir à institucionalidade e de não terem conseguido devolver ao povo a capacidade de gerir seus bens comuns, seus saberes compartilhados e sua organização coletiva.
O exemplo do mal denominado “Estado providência” é a ilustração perfeita para isso. O modelo de Estado de direito francês baseado na redistribuição de riquezas é originário do programa dos “dias felizes”, do Conselho Nacional da Resistência ao fim da Segunda Guerra. Além de um vasto programa de nacionalização e de planificação da economia, ele instituía as conquistas sociais, como as férias remuneradas e a previdência social, visando garantir a todos, cidadãs e cidadãos, as condições de uma existência digna, independentemente dos imprevistos da vida (doença, desemprego, velhice). A previdência social (em francês a seguridade social) criada por Ambroise Croizat, em 1946, não concebia esses direitos como uma “providência” do Estado que devia-se conquistar, mas como o lugar de uma organização coletiva ao qual os diferentes setores da sociedade deveriam participar. Mas as caixas regionais da previdência social geridas pelos assalariados e seus representantes sindicais foram progressivamente deixando espaço para a burocracia do Estado, da qual a social-democracia se contentou. A avaliação das tabelas de ajudas sociais e dos tetos de auxílios elegíveis é deixada a cargo de pessoas que ganham um salário de cinco a dez vezes maior e que se baseiam nos indicadores do crescimento econômico para fazer com que os índices variem.
Não somos consumidores de direitos e de serviços públicos. Devemos voltar a geri-los. É quando nos damos conta de que um entregador explorado por uma plataforma multinacional de entregas em domicílios considera normal não se beneficiar de uma pensão em caso de invalidez ou de impossibilidade de utilizar seu veículo para trabalhar, ou que uma doméstica não se importa mais em ganhar salário abaixo do permitido pela lei, que a urgência se manifesta aos olhos de todos como uma ferida aberta, uma violência irresponsável do nosso modelo social.
Limpar o imaginário para deixar espaço para a organização popular
Reconstruir uma sociedade de fraternidade e de partilha exige de toda pessoa que se reivindique de esquerda de escolher sua luta. Hoje, o modelo neoliberal infiltra-se em todos os setores da sociedade: na relação com o trabalho, ou seja, mais frequentemente, com a subordinação; na organização dos ritmos de vida, nossa maneira de comer ou de escolher nossos lazeres; e, o mais grave, na maneira com a qual a política pública é concebida hoje pelo Estado.
Para ganhar a corrida contra o relógio, face a essa dupla urgência, ecológica e social, é preciso, antes de tudo, varrer do imaginário das “pessoas de esquerda” tudo o que não esteja ligado à nossa luta.
A ecologia compatível com o capitalismo e sem planejamento, que delega às empresas a responsabilidade de tornarem-se ecorresponsáveis para lutarem contra a mudança climática: não!
O Estado contratual do “é dando que se recebe”, que para obter um auxílio social é preciso contribuir com um pouco do próprio bolso: não!
A lengalenga da crise, a que se atribui a necessidade de cortar as despesas, mas que chegará ao ponto de não ter mais o que cortar: não!
A segurança, que se recorre apenas ao bicho-papão da criminalidade, para que não se fale em segurança trabalhista, segurança alimentar ou direito à moradia: não!
A teoria do escoamento, que nos promete que um dia os benefícios fiscais dos mais ricos contribuirão na criação de outra coisa além de empregos precários: não!
O racismo silencioso de todas aquelas e de todos aqueles que não se indignam mais ao ver pessoas racializadas exercerem funções subalternas na sociedade: também não!
Não, e sem silêncios ou insinuações. Não, pois existe hoje um programa de vitória e de ruptura que eliminou tudo isso de seu vocabulário. Convocar uma assembleia constituinte para mudar de República e permitir um novo pacto coletivo unificador, para dar novamente um sentido à política a todos aqueles que não se identificam mais com ela. Organizar uma “bifurcação ecológica“ necessária para responder à urgência climática através de um planejamento guiado pelos princípios da “regra verde”: não consumir mais do que o nosso planeta pode regenerar; proteger os bens comuns, fazendo-os de propriedade coletiva; reformar a agricultura para alimentar a população e aqueles que vivem dela; instituir a partilha de riquezas, taxando aqueles que se enriquecem às custas dos outros; reconstruir o sistema público de saúde para que esteja preparado para as próximas pandemias; reduzir o tempo de trabalho para dar tempo às solidariedades; acabar de vez com as discriminações sistêmicas para fazer povo todas e todos juntos; defender uma diplomacia da paz e da cooperação; romper com todos os tratados internacionais que nos impedirão de realizar essa revolução cidadã.
Em 2018, os Coletes Amarelos (Gilets Jaunes) não eram de esquerda, razão pela qual, vários partidos e sindicatos demoraram para aderir às suas causas. No entanto, com força e determinação, esse grupo foi o primeiro desde Maio de 1968 a conseguir abalar o status quo. Desde então, outros movimentos populares no mundo todo souberam ir ainda mais longe. Como o Estallido Social no Chile, em 2019, que atingiu a correlação de forças necessária para obrigar o governo neoliberal de Piñera a organizar um referendo para convocar uma assembleia constituinte.
O único consenso necessário hoje é aquele que reunirá, numa mesma mesa, os Coletes Amarelos, as empregadas domésticas e todas aquelas que lutam para o reconhecimento de seu trabalho precário, os movimentos feministas que souberam manter erguida a bandeira do #metoo, os professores e os profissionais da saúde em luta contra a quebra do sistema público, as trabalhadoras e os trabalhadores estrangeiros que não vacilam em suas lutas pela regularização de sua residência na França, os jovens criminalizados pela violência policial, os demolidores de estátuas coloniais.
Reunir essas raivas para conquistar a vitória, esse deveria ser o único objetivo dos agentes políticos de esquerda. Para isso, não tenhamos medo do conflito. Ele é necessário para revelar os mecanismos de opressão que devemos erradicar. É desta maneira que nascem as revoluções cidadãs capazes de mudar os rumos da história.