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Os judeus brasileiros e Bolsonaro

Javier Mebarak

A campanha presidencial de 2018, a qual acabaria por eleger Jair Bolsonaro presidente da República, teve seu início como que antecipado por um evento insólito, ocorrido em abril de 2017, no clube A Hebraica do Rio de Janeiro. Lá, num anfiteatro lotado, com cerca de 300 pessoas, Bolsonaro fez um dos seus discursos mais virulentamente racistas. Atacou os índios brasileiros, dizendo que suas reservas estavam sobre muitas riquezas minerais, acrescentando: “precisamos mudar isso”. Garantiu também que, se ganhasse as eleições, não demarcaria nenhum centímetro de território de reserva indígena. Também atacou de modo particularmente vil os negros quilombolas brasileiros, dizendo que “não fazem nada” e que, por isso, seriam obesos — referindo seu peso em arrobas e acrescentando que, em sua opinião, não serviriam “nem para reprodutores”. Esse discurso, feito num clube judaico, em frente à bandeira de Israel e acompanhado de gritos de “mito” por uma parte do público, de fato, chocou o Brasil. Ele circulou muito nas redes sociais, chegando mesmo a ter mais de 1 milhão de visualizações no Youtube.

Nas bolhas virtuais de esquerda, que são as que o autor destas linhas mais frequenta, não tardaram a surgir comentários preconceituosos: “esses judeus são todos racistas”; “os judeus não aprenderam nada com seu sofrimento”; “os judeus são ricos e capitalistas, por isso estão com Bolsonaro”; “esses judeus pertencem ao capital financeiro internacional, por isso são cosmopolitas e não fazem parte do povo brasileiro”, etc. E, após as eleições, por incrível que pareça, ainda surgiram comentários do tipo: “foram os judeus que elegeram Bolsonaro”, não obstante o fato de que a comunidade judaica brasileira seja sabidamente minúscula, com um total de cerca de 100 mil pessoas. Tais afirmações, para mim, foram chocantes, mas, infelizmente, não foram surpreendentes. De fato, como militante que sou, há mais de 20 anos, da causa do fim da ocupação israelense dos territórios palestinos, da criação de um Estado Palestino soberano e da paz justa entre ambos os povos, essas acusações não me soaram nada estranhas. Ocorre que, geralmente, na esquerda, a palavra “judeu”, em circunstâncias similares, costuma vir substituída pela palavra “sionista”. A novidade era, então, que, dessa vez, essa substituição estava sendo dispensada, e a comunidade judaica brasileira era atacada de forma direta e sem subterfúgios.

Entretanto, tanto antes quanto depois do episódio da maldita palestra na Hebraica carioca, surgiram muitos fatos que refutam as condenações em bloco aos judeus brasileiros: a) cerca de um mês antes, Bolsonaro tentara palestrar na Hebraica de São Paulo, um clube muito maior e mais relevante do que a Hebraica do Rio de Janeiro. Mas sua palestra foi suspensa como efeito de um abaixo-assinado de mais de 2.700 judeus; b) no dia da palestra da Hebraica do Rio, havia tantos judeus na porta do clube quanto dentro do anfiteatro. Eles, que iam de jovens militantes de movimentos sionistas de esquerda a veteranos militantes da causa da democracia em nosso país, gritavam palavras de ordem como: “vergonha!”, “judeus não apoiam fascistas”, ou ainda: “judeus sionistas não apoiam fascistas”. A presença ostensiva e barulhenta desses judeus foi também foi filmada e postadas nas redes, porém acabou sendo amplamente ignorada, não obtendo nem uma pequena fração das visualizações dos judeus que estavam dentro do clube, apoiando Bolsonaro; c) Mesmo antes da palestra do Rio, já havia se formado no Brasil um grupo político cujo nome é “Judeus contra Bolsonaro”. Esse grupo, com mais de 10 mil inscritos, tem atuado durante todo este terrível período de governo Bolsonaro. Ele existe ainda hoje e constitui uma das bases da carta de apoio de parte da comunidade judaica brasileira a Lula, divulgada pela coluna da jornalista Mônica Bergamo no jornal Folha de São Paulo. Existem ainda muitos outros fatos que comprovam que a comunidade judaica brasileira não é homogênea — como, aliás, nenhuma comunidade o é — e que, parte dela, lutou e ainda luta contra a ascensão do fascismo em nosso país. Para uma lista mais completa, remeto o leitor ao artigo de Daniel Douek, denominado “15 fatos que mostram que a comunidade judaica não apoiou Bolsonaro”, publicado no Opera Mundi.

Ao escrever este comentário e divulgar tais fatos, pretendo modestamente contribuir para combater o antissemitismo em nosso país. Sobretudo aquele que aparece no campo político ao qual pertenço: a esquerda brasileira. Contudo, devo admitir que não sou muito otimista quanto ao efeito positivo que a divulgação destes fatos pode ter no combate ao antissemitismo. Isso porque os preconceitos, geralmente, possuem profundas motivações psicológicas, bem como mecanismos que os protegem ante a refutação factual. Um deles funciona por isolar a “essência” do judeu na figura que comprova e reforça os preconceitos. Assim, todos aqueles que contrastam com essa essência, aparecem como “judeus diferentes”, quer dizer, judeus que não são como os judeus realmente são. Ou, ainda, judeus que são mais parecidos “conosco” do que com os verdadeiros judeus, etc. Nem é preciso dizer que os mesmos mecanismos psicológicos de isolamento e blindagem operam igualmente sobre todos os grupos alvos de preconceitos: negros, índios, LGBTs, mulheres, árabes, etc. Albert Einstein certa vez disse que um dos dramas da humanidade é que se tornara mais fácil desintegrar um átomo do que desintegrar um preconceito. Este breve comentário, sem muitas ilusões, pretende ser apenas uma pequenina contribuição nesse sentido.