Identidade não é sinônimo de identitarismo
Resenha de O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias, de Élisabeth Roudinesco1

Amor fati, Milena Contreras
Em O eu soberano, livro mais recente de Élisabeth Roudinesco, assistimos a um sobrevoo que nos entrega um quadro de época. Vertiginoso. Temos personagens, minibiografias e um enredo matizado pela tentativa de descrever um sintoma; de um lado, os heróis (Sartre, Fanon, Césaire, Lévi-Strauss etc.), do outro, os anti-heróis (decolonialismo de modo geral) e, por fim, o mal devidamente encarnado na extrema direita. Receita do sucesso. Mas, ao contrário do que afirmou Silvia Lippi, em um artigo que igualmente causou furor na França,2 e cujo interesse excede um comentário acerca do livro de Roudinesco, não é verdade que, para a autora, toda a particularidade é fascista e sim que o particularismo atomizado e uma identidade pensada como fim em si mesma. Ou seja, o identitarismo.
Sejamos honestos; o identitarismo tornou-se um fenômeno, negá-lo com a candura de uma tiete em nada altera a coisa em si. Claro, se um quadro visa representar o real, ainda assim é uma representação que visa reduzir o impacto causado pelo nosso contato com o real. E, no que diz respeito à redução, o livro comete várias. A começar pelo fato de não organizar bem a fronteira onde se inicia a identidade ou onde ela termina em identitarismo. Sem essa clara distinção, não se leva em consideração que uma afirmação da identidade não é imediatamente uma afirmação identitária.3 Não se percebe que a afirmação da identidade trata da busca de reconhecer-se a si diante da nadificação proposta pela racialização da vida social ou das formas normativas da sexualidade, que organiza a visibilidade e a álgebra do poder. Que hoje isso fique de lado na maioria dos debates, que se confunda identidade com identitarismo, só desnuda mais um sintoma de época. O livro dá os traços gerais desse processo, no entanto, não leva em consideração de maneira clara a diferença entre um e outro.
Deve-se afirmar, porém, que a identidade é limitada, trata-se de uma ilusão subjetivamente necessária4 que organiza nossa fantasia de si. Atravessar a fantasia não significa um contato com a realidade pragmática — no sentido de que, ao final da experiência, teremos nosso si recuperado e nossa completude de volta —, significa identificar-se com a fantasia que se faz de si próprio (com aquilo que dizem que sou e aquilo que digo que sou). É por ela que elaboramos o contato que temos com a realidade.5 Nesse sentido, a identidade só se efetiva por meio da identificação organizada no mundo social, estruturando nossa fantasia de si. Ela nos entrega aquilo que ilusoriamente temos como um eu.
Se o atravessamento da fantasia permite lidar com essa ilusão e observar o quão ilusório é uma definição essencial que se faça do nosso eu, dada a contínua experiência com o outro, o identitarismo é a rejeição ao atravessamento. Ele ergue um eu essencial e não relacional. É exatamente por isso que a cultura identitária assume, como diz Roudinesco, o lugar da cultura do narcisismo.6
Roudinesco, porém, não faz esse exercício porque não se pergunta sobre o que ocorre com aquele que foi identitarizado, jogado na camisa de força de uma definição racial ou sexualmente não normativa. Mesmo não deixando de citar aqueles que, a esse respeito, trouxeram grandes contribuições — como Fanon, Césaire, o próprio Sartre etc., —, essa constitui a maior fraqueza do seu livro. Um exemplo disso é que a própria noção de “negritude”, evocada pela autora, não é devidamente comentada: a negritude é a construção de um si que nega o si construído pelo colonizador e permite a afirmação da negritude não definida pelo imaginário colonial. Negação da negação? Evidentemente! É, portanto, a afirmação da identidade já fissurada pela virtualidade, cujo pressuposto é a criação e a abertura.
Em seis capítulos, Roudinesco perfila todo o acúmulo teórico e político da querela identitária. Isso torna difícil submeter a uma análise sistemática os confrontos potenciais entre a identidade como organizador da própria política e a perda do potencial político quando a identidade se torna um fim em si, e, portanto, transforma a política em gestão identitária da diferença. Pós-colonialidade, interseccionalidade e o que mais foi elaborado nos porões da produção acadêmica são postos em perspectiva. Muitos nomes são mobilizados e teorias são confrontadas. Na obra são desdobrados, um após o outro, os traços paradoxais da formulação identitária e, posteriormente, o seu alcance político-social.
Nem tudo são espinhos. A força da argumentação aparece quando Freud é convocado à cena. Roudinesco demonstra a preocupação de um debate que atravessava a realidade biológica, social e psíquica para pensar a sexualidade e, efetivamente — queiram ou não, seus adeptos ou detratores —, pôs em xeque os mitos fundadores da clivagem entre os sexos. Freud, nos lembra ela, de maneira avant la lettre considerou a bissexualidade central na formação da sexualidade e, portanto, a ideia de uma espécie e de uma raça reduzidas à biologia foram por ele rechaçadas. Foi ainda o primeiro a considerar a fixidez da identidade um delírio, sem abandonar a ideia de que a construção social e a psíquica participam da estruturação da identidade que governa a noção de um eu.
Assim, Roudinesco chama de “deriva identitária” o reducionismo propiciado pelo pseudofechamento da identidade que organiza um narcisismo das pequenas diferenças cujos impactos sociais são extremamente negativos e perigosos. No percurso, analisa teorias que se intervertem no seu contrário; ao tentar escapar da própria posição da identidade, tais defesas teóricas normalizam-se como só mais uma identidade. Isso será algo demarcado ao longo de toda a obra, sobretudo quando analisa a produção teórica a partir da década de 1980 que, através do multiculturalismo estadunidense, trouxe a esperança de pertencimento étnico. “Foi certamente essa hiperetnização — ou hiperseparatismo — que levou às derivas identitárias”, diz ela.7
Com as justiças e as injustiças próprias a um balanço do tempo presente, temos uma verdade nas linhas de Roudinesco: a identidade como horizonte “político” em fins do século XX e início do século XXI não é mero acaso. A identidade, no capitalismo tardio, está sob a insígnia da diversidade para debelar qualquer ato político, ou melhor, para simular um ato político enquanto realiza, na verdade, a administração da identidade.8 O resultado é uma mistificação do seu significado dada a capacidade de o capitalismo redirecionar os antagonismos sociais absorvendo-os através de uma cultura em que a diferença seja consolidada como estanque. Em suma, a identidade foi tornada identitarismo pela forma de gestão social no capitalismo de crise. Isso não significa que a identidade seja descartável, mas o seu uso, pela gestão da crise, traduz-se no ato de debelar qualquer possibilidade de insurgência. Recai-se no paradoxo da tolerância liberal — toleramos aquilo que não precisamos partilhar e que pode ficar no seu lugar — contra o reconhecimento — reconhecemos aquilo no qual estamos necessariamente implicados.
Parte disso podemos deduzir das linhas de Roudinesco. Os alvos polêmicos do seu livro são as tentativas unilaterais que acabam por apagar ou ignorar as lutas anticoloniais e as teorias que se contrapunham ao colonialismo, os famosos inventores da roda (como ela mostra, mesmo Césaire é posto na mira de estudantes decoloniais que passaram a lhe dar lições sobre o que significa ser colonizado!). Funcionando como reserva de mercado acadêmico, porém, a identidade acaba por fechar-se sobre si. Isso nada tem a ver com aquela singularidade ilustrada por aqueles que não têm lugar determinado no todo social, daqueles que estão no lugar-de-fora, e, por isso, são representantes da verdade dessa totalidade social e organizadores da verdadeira política.
O livro exibe, assim, uma alteração radical no terreno das lutas social e política no início do século XXI: no capitalismo de crise, e na estrutura neoliberal de gestão, há o conhecimento por parte de todos da cisão entre a igualdade formal do direito e a realização dela. O capitalismo, e a mentalidade que o gere, reconhece a lógica excludente da falsa universalidade do direito. Isso não serviu, contudo, para pô-lo em xeque senão para combater ativamente essa cisão por meio da implementação ativa de uma rede legal que vise a identificação dos problemas específicos de cada grupo. São as chamadas “políticas da identidade”, utilizadas como um debelador de insurreição que inviabiliza qualquer gesto político.
Claro, o problema para Roudinesco não reside aí, mas no suposto excesso que a reivindicação da identidade por grupos organizados acaba por efetivar. Refletindo com alguma parcimônia se percebe, porém, que o problema é exatamente o contrário; falta o excesso que torna a singularidade universal. O real problema não é a reivindicação da identidade, mas acreditar que a identidade em si é a finalidade do gesto político. Assim, o limite de sua análise está em recolocar um universal abstrato como finalidade última da política, imputando o peso do reconhecimento da universalidade ideológica do capitalismo nas costas dos movimentos sociais. O limite da análise de Roudinesco é não dar conta que a forma de debelar a insurreição através da organização das identidades estanques, legalmente distribuídas no espaço de cobertura do direito, é um modo próprio ao capitalismo tardio. Assistimos a toda uma retórica sobre a Revolução Francesa e os valores laicos perdidos, uma nostalgia que não leva em consideração a data de validade das conquistas humanistas demasiadamente francesas. Há, ademais, a ausência de uma reflexão sobre como o modo de demanda particular pode organizar uma condensação de oposição global contra o poder. Sem isso, por mais que autora toque as paredes do labirinto, ela não percebe que o que o modo de gestão do capitalismo de crise impõe é justamente a impossibilidade de universalização das demandas particulares.
A tensão entre identidade e identitarismo, portanto, não é tocada em toda sua profundidade. A autora passa ao largo da percepção de que o momento da política se efetiva quando uma demanda particular (de raça, de gênero etc.) ultrapassa os interesses específicos do grupo e a partir disso reestrutura a totalidade do espaço social. Quer dizer, transcende-se a particularidade e, ao invés da disputa no quadro identitário, surge a solidariedade e o atravessamento que implica o outro. Em certo sentido, essa possibilidade de atravessar a especificidade em direção à singularização da demanda se trata da passagem que vai da reforma à revolução.
Evidentemente, há um contraste radical desse processo frente àquilo que chamamos de “política da identidade”. Presa no quadro neoliberal de dissuasão do conflito, a política da identidade trata da afirmação particularista da identidade e do lugar do indivíduo no interior da estrutura social. Efeito do capitalismo globalizado, como aliás mostra Roudinesco, a proliferação de identidades fluidas e em constante transformação é imaginável somente na ordem globalizada: “de um extremo a outro, o ‘identitarismo’ está presente: identidade contra identidade. Depois da queda do muro de Berlim e do trinfo mundial do capitalismo globalizado”,9 o capital passa a ser o gerente da demanda específica.
Que se diga, porém, sob toda essa articulação teórica, que coloca em perspectiva diversos autores “identitários” contrapostos aos críticos que entendiam a particularidade como uma passagem, repousa uma preocupação importante: o fortalecimento da extrema direita. E aqui o livro de Roudinesco ganha importância como um balanço de época. Enquanto parte do progressismo advoga pelo antirracismo racialista, a extrema direita — fora do catecismo e longe de ser pega na chantagem da metafísica hierárquica do sofrimento virtuoso — simplesmente põe em ação o racismo racialista. Enquanto o progressismo busca lugares seguros para os grupos específicos tratarem suas dores de forma narcísica e sem a intervenção do outro, a extrema direita advoga pela construção de muros, fronteiras e espaços destinados aos imigrantes, aos muçulmanos, aos negros etc.
A extrema direita e a direita conservadora foram hábeis em tomar para si o imaginário elaborado pelo identitarismo que, não nos esqueçamos, mais do que sintoma de um grupo, ou de um movimento social específico, é uma forma de administração do capitalismo de crise. Sua dimensão fascistizante é evidente. Roudinesco nos mostra isso com diversos exemplos que vão do fundamentalismo ao neonazismo que grassa por toda a Europa. O impasse, portanto, continua; como ultrapassar a chamada “política da identidade”, do identitarismo neoliberal criticado a plenos pulmões por Cornel West, em direção a uma política emancipatória que leve em consideração as identidades forjadas pelo racismo e pelo patriarcalismo e elabore a solidariedade? Eis a tarefa!