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Gabriel Boric e os 50 anos da Unidade Popular

Iván Candeo

Com o apoio de mais de 4,6 milhões de eleitores no segundo turno, Gabriel Boric, concorrendo pela coalizão de esquerda Apruebo Dignidad, tornou-se o presidente mais votado da história do Chile. Porém, seu oponente de ultradireita, José Antonio Kast (Partido Republicano de Chile), conseguiu cerca de 3,6 milhões de votos com um discurso que defendia a herança da ditadura de maneira muito mais explicita do que a grande maioria dos políticos de direita o fizera nos últimos quinze anos. Assim, situado temporalmente próximo ao aniversário de 50 anos do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, o pleito eleitoral de 2021 e o momento histórico no qual ocorre sugerem que a sociedade chilena viverá uma batalha pela memória em meio à efeméride. A ruptura histórica que pôs fim à Unidade Popular (UP) de Salvador Allende (1970–1973) e deu início ao regime de Augusto Pinochet (1973–1990) ainda é fruto de disputas discursivas e simbólicas, nas quais a reivindicação dos legados tanto do projeto socialista-popular-democrático como daquele neoliberal-autoritário é um ponto fundamental para compreender a projeção de futuro elaborada pelas distintas forças políticas contemporâneas.

Se à primeira vista a tensa eleição do ano passado indica a permanência de uma cisão nos modos como o Chile lida com seu passado, o processo político pelo qual passa o país desde o chamado estallido social, designação para o conjunto dos protestos massivos que tiveram seu auge em outubro de 2019, apontam para uma reconfiguração da memória sobre a Unidade Popular e a ditadura que ancorou debates desde a redemocratização do país, iniciada em 1990 no governo de Patricio Aylwin. Em um texto sobre o tema publicado no aniversário de trinta anos do golpe, o sociólogo Manuel Garretón1 diagnosticava que a direita chilena, de modo geral, reconhecia as violações dos direitos humanos cometidas sob Pinochet, mas remarcava uma suposta herança positiva da ditadura: o neoliberalismo, transformado em política de Estado a partir dos anos 1970, graças à participação dos chamados Chicago Boys na elaboração do programa econômico pinochetista.

Percebe-se que, desde o começo do século XXI, já eram raros os políticos de direita que defendiam em público a ditadura em seu conjunto. De modo geral, preferiam destacar como legado positivo as reformas econômicas neoliberais. Os mais conservadores resgatavam também o legado do principal ideólogo do regime, Jaime Guzmán, arquiteto da Constituição de 1980 e o fundador de um dos dois principais partidos de direita do país, a Unión Demócrata Independiente (UDI). Em relação a Pinochet, no final de sua vida, as provas de corrupção e malversação econômica contra ele e a sua família — o chamado “Caso Riggs” — marcaram o afastamento dos partidos de direita de sua figura. Curiosamente, esse espectro político pareceu mais escandalizado pela corrupção da ditadura do que pela repressão, que continuou sendo relatada como fruto de ações supostamente esporádicas e realizadas por alguns indivíduos, mas que não constituiriam uma política de Estado.

Os governos da Concertación de Partidos por la Democracia, por sua vez, foram responsáveis pela instauração de uma política de memória dos crimes da ditadura que significou avanços no reconhecimento oficial do terrorismo de Estado e na instauração dos primeiros lugares de memória no Chile. Porém, essas políticas — com amplos desdobramentos e evoluções nos últimos trinta anos — não se traduziram na condenação sistemática dos perpetradores nos tribunais de Justiça, apesar das históricas sentenças judiciais contra alguns deles. A Concertación representou uma quebra clara com a ditadura em matéria de direitos humanos e estabeleceu como princípio a defesa dos valores democráticos; também foi responsável pela diminuição da pobreza e por programas de inserção social de centro-esquerda. No entanto, seus sucessivos governos adiaram a ruptura com o modelo neoliberal. Para alguns pesquisadores, como Peter Winn,2 essa coalizão teria, inclusive, ampliado os investimentos estrangeiros no Chile, gerando um crescimento econômico acompanhado de uma concentração da riqueza que em nada teria contribuído para combater a enorme desigualdade social chilena. A Concertación teria, assim, fortalecido um modelo excludente e gerador de sérios problemas sociais.

Em outro texto sobre a memória chilena relativa à Unidade Popular e à ditadura, escrito por Anne Pérotin-Dumon,3 a historiadora afirmou que a principal questão da história do tempo presente do Chile seria, justamente, o debate sobre o modelo econômico estabelecido durante a repressão e seu custo social na atualidade. Os exemplos desses autores, que escreveram sobre a memória há mais de uma década, apontam na direção de que a insurreição social chilena contemporânea e as tensas disputas eleitorais de 2021 são processos que mobilizam debates e fraturas presentes, no mínimo, desde a abertura política, mas que também passaram por importantes transformações nos últimos anos. Assim, uma análise que considere os modos pelo qual o Chile contemporâneo se articula com os processos sociais, as representações e as disputas do passado é pertinente para pensar não apenas na importância da vitória de Gabriel Boric no pleito eleitoral como também nos desafios que o novo presidente vai enfrentar em meio à efeméride do evento histórico mais traumático da história chilena recente.

Ultradireita e memória da ditadura

Em meio à campanha eleitoral, o candidato Kast foi associado à emergência de uma nova direita de caráter populista e fortemente dependente das redes sociais, que já havia sido vitoriosa em outros países com nomes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Embora tenha sido membro do tradicional partido da direita chilena conservadora UDI, Kast concorreu por um novo partido de ultradireita fundado em 2019, o Partido Republicano de Chile. Suas propostas foram marcadas pela defesa de um programa econômico extremamente neoliberal, um discurso social de cunho católico-reacionário e um polêmico flerte com o passado ditatorial. Em novembro de 2021, num encontro com a imprensa estrangeira, Kast deu declarações que contribuíram para o rechaço internacional à sua candidatura: “Há uma situação que marca uma diferença com o que ocorre em Cuba, Venezuela e Nicarágua. Creio que a Nicarágua reflete plenamente o que não ocorreu (na ditadura de Pinochet): foram feitas eleições democráticas e não foram presos opositores políticos.”4 Para além de negar as conhecidas violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado chileno (exílio, prisões, torturas e assassinatos), Kast defendeu, nesse mesmo encontro, a Constituição de 1980, caracterizando-a como um mecanismo de “transição para a democracia”.

Assim, o discurso eleitoral de Kast buscou recuperar uma memória positiva da ditadura e reivindicar o texto constitucional que está sendo substituído após o estallido social. Esse posicionamento constitui um projeto alternativo à direita representada por Sebastián Piñera, que embora tenha sido fortemente responsável pelo aprofundamento das políticas neoliberais, havia procurado se afastar da herança autoritária. O próprio Piñera, que se tornou o primeiro presidente de direita após a redemocratização, em 2010, afirmou que teria votado “No” no plebiscito de 1988, que pôs fim à ditadura. Dessa forma, os milhões de eleitores chilenos de Kast, em 2021, votaram por um candidato não apenas de direita, mas que foi assumidamente favorável ao “” no final dos anos 1980 e que já declarou, em 2017, que se Pinochet estivesse vivo votaria por ele. Portanto, a nova ultradireita chilena pouco tem de inovadora, evoca um discurso saudosista e reacionário, de cunho antidemocrático. Compromete-se, por sua vez, com a manutenção do sistema econômico neoliberal, com o autoritarismo e com a Constituição de 1980 — escrita durante a ditadura, ratificada em um plebiscito sem garantias e considerada o legado mais institucional desse passado repressivo no tempo presente.

Memória das lutas sociais

A vitória de Boric pode ser vista como uma consequência imediata da insatisfação demonstrada no estallido social. Porém, ambos são processos diferentes que não devem ser confundidos, pois o estallido se caracterizou por uma maior abrangência — com a participação de setores que muitas vezes entraram em conflito entre si — e abarcou desde grupos antissistema aos defensores da democracia direta. Apesar dessas particularidades, o programa do presidente eleito dialoga expressamente com demandas dos movimentos sociais que estiveram no centro dos protestos de 2019, incorporando propostas voltadas às mulheres, aos povos originários, às reivindicações estudantis, à revisão do sistema previdenciário, ao caminho na direção de um modelo econômico ecologicamente sustentável. Assim, se é verdade que o projeto de Boric é bastante distinto daquele levado a cabo nos anos 1970 pelo governo de Salvador Allende, ambos se estruturam no diálogo com os movimentos sociais e na incorporação de demandas populares. A memória da Unidade Popular não pode ser diretamente vinculada à imagem do jovem presidente chileno, que promove ideais de renovação comprometidos com as mudanças que devem se seguir à aprovação da Nova Constituição. Seu discurso de posse, aliás, procurou evitar polarizações e caminhar na direção de um consenso social, cuja evocação dos tempos da Unidade Popular e da ditadura para nada contribuiriam: “Compatriotas, serei o presidente de todos os chilenos e chilenas. Daqueles que hoje votaram por esse projeto, daqueles que elegeram outra alternativa e também daqueles que não foram votar.”5

No entanto, desde os protestos do estallido, o passado da esquerda chilena esteve presente na evocação de símbolos, nas performances e no imaginário que tomaram as ruas do país. Mais do que o programa político específico da Unidade Popular ou das decisões concretas empreendidas pelo governo Allende, os movimentos que sustentaram a vitória de Boric se alimentaram da memória coletiva positiva a respeito dessa aliança de esquerda que chegou ao governo de forma democrática em 1970 com o objetivo de transformar os alicerces da sociedade. Esse imaginário foi misturado com outras memórias mais recentes, como a “Revolta dos pinguins” (2006), o movimento estudantil de 2010 — origem política de Boric ­—, o levante popular de 2019, assim como as pautas atreladas ao feminismo, aos movimentos subalternos, à reivindicação dos povos originários etc.

Enquanto a memória do governo Allende era mesclada com outras memórias no campo da esquerda, a campanha eleitoral da direita usou uma memória negativa da Unidade Popular para criar um discurso de terror diante da possibilidade de “repetição da história” no Chile e do “retorno ao comunismo”. Assim, esse componente atuou, possivelmente, para que a nova força política que chega agora ao poder evitasse uma vinculação (mesmo que simbólica) mais direta com o projeto que levou Allende ao poder —, evocando apenas uma memória difusa desses tempos. Uma associação entre Boric e a UP poderia ser prejudicial para a esquerda chilena contemporânea porque alimentaria o discurso do terror da direita e poderia dotar de saudosismo um movimento que se caracteriza pelos princípios de juventude e novidade. Nesse contexto, o que esteve mais abertamente em jogo foi, sobretudo, uma revisão do projeto de país posterior a 1990.

“Não são 30 pesos, são 30 anos.”

Como se sabe, os protestos de 2019 tiveram como motivação inicial o aumento de 30 pesos na passagem de metrô de Santiago, que caiu como uma gota transbordante numa população insatisfeita com o alto custo de vida no país. “Não são 30 pesos, são 30 anos” se tornou o lema da expansão das demandas sociais. Essa frase menciona o período que se iniciou com a redemocratização, ou seja, os anos em que o Chile foi majoritariamente governado pela Concertación (1990–2010) e sua herdeira, a Nueva Mayoría (2014–2018), com exceção dos dois mandatos de Sebastián Piñera (2010–2014; 2018–2022). Os protestos, dessa forma, rechaçaram as políticas econômicas e sociais da coalizão de centro-esquerda e da direita liberal, clamando por uma ruptura radical com o modelo neoliberal herdado da ditadura e pela revisão de suas consequências para a população chilena. Também pressionaram pelo fim da Constituição de 1980, a estrutura jurídica que serviu de alicerce para o Chile contemporâneo.

O Estado, sob o comando de Piñera, reagiu com extrema violência. Entre 18 de outubro de 2019 e 5 de novembro de 2020 foram registrados 3.383 casos de violações de direitos humanos pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos, apesar de a pandemia de covid-19 ter desmobilizado o clima de insurgência social6 a partir de março de 2020. Durante os protestos, o presidente recorreu ao estado de sítio como forma de controlar o levante. As ações repressivas foram rapidamente associadas por grande parte da população ao passado autoritário da ditadura, levando mais de 1 milhão de pessoas às ruas no dia 25 de outubro de 2019, auge das manifestações populares. Nesse contexto, a canção de Víctor Jara, “El derecho de vivir em paz”, gravada durante a Unidade Popular (1971) em solidariedade ao povo vietnamita, tornou-se uma espécie de hino pacifista dos protestos.7 Passou a ser entoada nas marchas e, posteriormente, nas janelas das casas que buscavam dar continuidade ao estallido durante o confinamento decorrente da pandemia. Os vídeos de milhares de pessoas cantando como Víctor Jara voltaram a circular nas redes sociais após a vitória eleitoral de Boric. O músico assassinado pelos militares após o 11 de setembro e sua canção engajada se converteram na trilha sonora da perspectiva de um novo Chile, que não nega seus laços com as lutas do passado.

Por um poder popular

Há 50 anos de sua eleição, a figura de Salvador Allende exerceu na insurreição popular um papel menos importante do que seria de se esperar. Outros símbolos ficarão na memória de quem viveu o estallido: a bandeira mapuche, as performances feministas, a já citada canção de Víctor Jara. No entanto, é interessante notar, em primeiro lugar, a ênfase que os protestos deram na possibilidade de um poder popular, presente nos discursos, nas frases e até nas propostas do programa de Boric (baseado no princípio da horizontalidade). Também é possível ressaltar o rechaço à violência estatal como marca constituinte do atual fenômeno social, que estabelece um vínculo entre a luta das organizações sociais do período da ditadura e os movimentos sociais do presente. Por fim, o entendimento do Estado como agente voltado à diminuição das desigualdades sociais esteve presente tanto na Unidade Popular como na perspectiva dos movimentos sociais do Chile contemporâneo.

A recente indicação dos ministros chilenos é uma nova mostra da reconfiguração de diferentes discursos que se misturam no projeto de Boric. Há uma presença majoritária de mulheres — fato inédito no Chile e na maior parte do mundo, com a exceção de alguns poucos países, como a Espanha; as principais lideranças estudantis dos anos 2010–2011 estão em ministérios chaves; muitos docentes ocupam postos de grande responsabilidade, como o Ministério da Educação. Por outro lado, a presença de socialistas no governo e de Mario Marcel como principal responsável pela economia mostra a necessidade de Boric de alcançar entendimentos com a antiga Concertación e de se mostrar moderado.

No que diz respeito ao dever de memória, a escolha da socialista Maya Fernández Allende como ministra de defesa é, sem dúvida, o símbolo mais forte e ousado realizado até agora. As forças armadas chilenas responderão diretamente à neta do ex-presidente Salvador Allende. O peso dessa escolha é tão grande que já pode ser indicada como um dos marcos dentro da elaboração de uma memória oficial da Unidade Popular e da ditadura no Chile contemporâneo, que poderá ser promovida pelo Estado no aniversário de 50 anos do golpe de Estado que se aproxima. Embora o papel de Boric nesse contexto seja fundamental para o modo como o país lidará com seu passado, a chave da reconfiguração do Chile atual e da superação da herança institucional da ditadura não está com seu governo, mas sim com a Convenção Constitucional responsável pela elaboração de uma nova carta magna. A rememoração do 11 de setembro será marcada pela promessa de ruptura radical com o passado.