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A tensa relação entre Fanon e Mbembe

Frigio, Astrid González

Claro, Mbembe se encharca nas águas fanonianas. Embora a maioria de seus comentadores só enxergue nele o Foucault, a verdade translúcida de sua crítica é turvada pelo rio do terceiro mundo. A aproximação que faz de Fanon, no entanto, não é tranquila. Se se encharca é porque nada e, por vezes, nada contra a correnteza das ideias do martinicano. Numa meditação pouco apurada, pode-se dizer que o que separa a perspectiva de ambos é o tempo histórico. Se Fanon vivia numa época de grandes expectativas, Mbembe vive numa época na qual elas viraram ilusões perdidas. Tudo bem! Está certo! Mas, se meditarmos mais um pouquinho, levando em consideração o massacre francês contra a Argélia e a saída da humanidade da mais sangrenta guerra de sua história, talvez possamos concluir que se trata de uma opção, por parte de Mbembe, mediada pelo fracasso das guerras de libertação nacional e pela ascensão do absolutismo étnico no continente africano. Mas, mais ainda, uma opção sobredeterminada pelos limites metodológicos que organizam sua forma de reflexão. Eis de saída a hipótese do texto que segue.

É sabido que Fanon morreu um ano antes do triunfo da revolução argelina. Com tal triunfo, a França, no seu republicanismo cínico, expurgou da memória pública as barbáries cometidas contra os argelinos, e o nome de Fanon precisou ser dela exorcizado. Ele, entretanto, antes de morrer, alertou contra o nacionalismo burguês, chamou atenção contra a gestão étnica e lutou para desmistificar a racialização política herdada pelo colonialismo. Apesar dos seus apelos, da sua postura intransigente, o caminho mais fácil foi adotado e a vitória da reação marcou a experiência política no continente africano. Mbembe é fruto desse processo. Parece-me que esse encarniçamento com o tempo caracteriza bem a maneira de Mbembe. Do caminho que vai da Necropolítica1 à Crítica da razão negra2 temos um pensamento nômade caracterizado pela experimentação; a tentativa de organizar um quadro geral da experiência de inacabamento do ser negro.3 A sua primeira ofensiva crítica reúne, numa enorme bibliografia, os argumentos do pensamento forjados pelo colonialismo. Ele extrai, ante as questões raciais que evoca, o mapa geral das relações que organizaram o capitalismo e, ao fazê-lo, fornece-nos uma interpretação aguda sobre o deslocamento do centro de gravidade dele no mundo. Segundo suas conclusões, o eixo do capital já não permanece mais na Europa. Ora, uma mudança de parâmetros tão vasta engendra uma reorientação do pensamento. Vemos ela ser destrinchada na trama conceitual de sua obra que coloca o negro e a raça como cernes da modernidade.

É verdade que, avant la lettre, o pensamento de Fanon se debruça na forma pela qual o indivíduo racializado, produto de uma superexploração, constrói sua subjetividade no interior da realidade demarcada por espaços, por lugares, cabíveis à experiência vivida traduzida pela noção de raça. Ao ser legatário dessa noção, Mbembe observa que “o pensamento europeu tendeu a abordar a identidade em termos de seu próprio espelho”. Então, seguindo as veias abertas fanonianas, um pensamento que coloque em xeque essa mistificação tem a possibilidade não só de desnudar as vicissitudes organizadoras da visão de mundo (Weltanschauung) europeia como também torna possível repensar o quadro geral no qual a noção de identidade é condicionada. O simples fato de repensar o caminho feito pelo mestre, sob a forma de uma crítica da razão, revela em Mbembe uma escolha altiva. Entretanto, se o reconhecimento dos limites nos convida a ultrapassá-los, talvez, por estar preso ao paradigma de opressão/resistência foucaultiano,4 Mbembe reduza seu horizonte de perspectiva.

O paradigma foucaultiano se trata da incapacidade de apreensão do excesso que o apego obstinado pela particularidade gera no processo de resistência. Se a opressão e a resistência, apresentados no tensionamento causado pela álgebra do poder, mantêm a reprodução geral da totalidade social, como antagonismos recíprocos que se retroalimentam, tal qual capital/trabalho, a particularidade e a obstinação do apego à demanda particular colocam em perspectiva direta à universalidade abstrata (esfera do direito, distribuição do espaço de visibilidade dos corpos etc.), como aquilo que mantém os limites da álgebra do poder (os lugares e as formas administrativas da vida social normativamente aceitos) e assegura a totalidade social. O apego obstinado à demanda particular gera um excesso, que se coloca para além da resistência, quando ignora o que está estabelecido. Ela arrisca inclusive todo conteúdo substancial em nome do que considera importante. Resiste, portanto, a abrir mão de sua demanda e, por essa resistência, causa um excesso através do choque contra aquilo que está estabelecido como norma. Assim, por essa resistência, a demanda, ao ser reconhecida na álgebra do poder, torna-se uma singularidade universal de ordem genérica, não se trata mais “do meu problema, mas de um problema que é nosso”.5 Um exemplo concreto: o assassinato de Floyd e a resistência que se seguiu operando a demanda de um antirracismo radical, transformou-se numa singularidade universal ao colocar em perspectiva a dignidade humana e, necessariamente, passou implicar a todos. Evidentemente, o processo, que possibilitaria uma efetiva transformação, precisava ser urgentemente obliterado com medidas administrativas (punição do assassino, reciclagem dos policiais, nova delegacia “mais humana” etc.) e com a operação de controle da demanda particular que precisava voltar ao seu particularismo.6 Noutras palavras, o paradigma foucaultiano elimina de vista o vislumbre do excesso causado pelo apego obstinado à demanda. Nesse paradigma, a resistência se torna a reposição do quadro do poder num ciclo ad infinitum porque não admite o excesso de si. A resistência se torna uma lógica de sobrevivência através das micropolíticas, ela se mantém em negação. Assim, elimina-se de vista a possibilidade do excesso da particularidade, que causa a transformação geral da álgebra do poder, por querer ver positivada sua demanda.

Falar de um suposto paradigma foucaultiano é um assunto capcioso mesmo porque, é preciso que se diga, a partir da metade dos anos 1970, Foucault radicaliza sua analítica do poder ao elaborar os conceitos de biopolítica e biopoder. Sua busca era, entre outras coisas, “pensar as modalidades de captura dos fenômenos da vida por parte das tecnologias não disciplinares de poder que intervêm nos códigos da tanatopolítica da soberania”.7 A conclusão desse louvável esforço, porém, permanece limitada à “predisposição das redes jurídicas orientadas a construir a condição de possibilidade” do cuidado que dão arrimo a ideia foucaultiana de governamentalidade. Foucault é um brilhante filósofo do existente, do posto, mas é evidente que se recusa dar corpo ao impossível para supostamente não cair nas armadilhas do poder. Essa limitação é assumida pela sua reflexão.8

Seja como for, retomando o programa fanoniano, sob luz foucaultiana, Mbembe abre caminho para a compreensão do que compõe as formas embrionárias de organização social da modernidade, transversais às construções e conquistas da sociedade contemporânea. Sua descrição é vigorosa. Se por um lado o negro permanece nadificado, por outro, a ideia de raça permanece ligada às catástrofes do século que se seguiu ao colonialismo. Mais do que isso, ela condicionou as formas de existência política nas sociedades modernas. Mas, como explicar o dinamismo e a organização do ideário que entronariam tais significantes no horizonte e nas formas de governo mundo afora? É manifesto que, mais do que uma dimensão material, o colonialismo é entendido por Fanon como uma dimensão da formação (Bildung) do espírito da própria modernidade;9 uma práxis que traduz as relações concretas e a dimensão ideal de sua organização. Com essa mesma perspectiva, Mbembe estabelece três momentos fundamentais para situar o que chama de protocolo da modernidade: “o primeiro é o da espoliação organizada”, baseada no tráfico atlântico, que vai do século XV ao XIX; “o segundo momento corresponde ao nascimento da escrita”, com início no final do século XVIII, trata-se da linguagem articulada pelo próprio negro, que reivindica o estatuto de sujeito, e tem seus marcos históricos em revoltas e revoluções; “o terceiro momento (início do século XXI)”, trata-se da globalização dos mercados e da privatização do mundo, ambos organizados sob à égide do neoliberalismo. O tempo histórico e a situação presente aparecem como pano de fundo que organiza a modernidade e a ideia do seu fruto genuíno: o negro.

Ao abordar o terceiro momento, o tempo presente, Mbembe consegue agarrar a dimensão reducionista da vida comum, proposta pelo neoliberalismo. Ao transformar toda a esfera da vida em objeto mercadológico, ele coloniza toda a dimensão do tempo dos indivíduos enredados na teia que dominou o mundo globalizado. O neoliberalismo — que não é senão um desdobramento lógico dos processos de acúmulo e monopólio da riqueza capitalista sob escudo da aristocracia financeira — diferencia-se das outras metamorfoses do capital por conseguir tornar todos aspectos da vida particular um objeto de valorização mercadológica: “a todos os acontecimentos e todas as situações do mundo da vida pode ser atribuído um valor do mercado”.10 Devotado ao tempo presente, o neoliberalismo se eterniza como a forja da subjetivação na reprodução capitalista. Por falar em tempo, logo se percebe que esse terceiro momento é decisivo na construção teórica do camaronês e na tensão diante de Fanon, pois marca o processo de passagem das grandes expectativas às ilusões perdidas.

Talvez, a característica particular do neoliberalismo, pensando juntamente com Mbembe, em relação às outras metamorfoses do capitalismo, resida na capacidade ideológica de reordenar a visão de mundo atrelando a esfera do gozo individual à fruição da mercadoria. O indivíduo, que antes era o pórtico de uma marca, torna-se empresa de si mesmo e, portanto, o seu próprio patrão. A esfera pública é minada, e o seu interesse torna-se uma amálgama de interesses particulares concorrenciais entre si. Com isso, há a “produção da indiferença, a paranoica codificação da vida social em normas, categorias e números, quanto por diversas operações de abstração que pretendem racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais”.11 A dominação não se forja única e obrigatoriamente da opressão, aqui também nasce da autocensura organizada pelo espetáculo cuja vítima é o “perdedor”. Existe, portanto, a identificação com o “vencedor”. Não se trata apenas de uma identificação psicológica, subterfúgio pelo qual o indivíduo sentiria que ele próprio está destinado a vencer. Pode ocorrer, também, que essa identificação se dê somente como um traço da violência que se naturalizou: o perdedor é o vagabundo, ou aquele que não se esforçou tanto.

Essa naturalização do modo de operação e domínio da visão de mundo neoliberal é sucedida pela ideia de que não há mais história nem alternativas e, portanto, “o capital, sobretudo financeiro, define-se agora como ilimitado, não só do ponto de vista dos seus fins como também dos seus meios”.12 Se, n’O conceito de angústia, Kierkegaard aludia à ideia de que a única forma de eternidade reside no presente,13 o capitalismo tardio se sagra como grande maestro da presentidade. Como um deus todo poderoso, o capital encarcera seus servos nas dívidas flutuantes e no constante endividamento que não afeta só indivíduos, mas Estados e países inteiros, ele “procura multiplicar-se por si mesmo numa série infinita de dividas estruturalmente insolvíveis”14. Como reorganizou a estrutura produtiva — graças à acelerada produtividade por meio do desenvolvimento tecnológico que, num ciclo infinito, tornou a paisagem dos parques industriais estrangeiras e raras —, causou uma profunda alteração no mundo do trabalho e, “já não há trabalhadores propriamente ditos. Só existem nômades do trabalho”.15 A flutuação da mão de obra, a independência cada vez mais radicada nos processos de produção da mercadoria, não apenas tornou as massas humanas cada vez mais supérfluas como colocou a gestão da vida comum num horizonte de crise permanente. Agora, “a tragédia da multidão é ser relegada a uma humanidade supérflua, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital”.16

O trabalhador nômade é assim concebido porque já não há mais estabilidade no lugar de trabalho, já não há mais segurança trabalhista e foram pilhadas todas as conquistas do período fordista. A profissionalização, que era a moeda de troca, cedeu espaço para múltiplas especializações; a capacidade que o indivíduo tem para se moldar permanentemente de acordo com as necessidades da família corporativa. A teologia neoliberal reordena assim a visão e organiza o desejo. Pôde-se ainda precisar o aspecto de acomodação às estratégias de organização da vida pessoal e tornar rentável aquilo que antes era gratuito. A mobilização do indivíduo como chefe de si, uma autointoxicação, e a secreção nefasta de uma impotência prolongada são estruturadas por uma autoconfiança que crê que nada há de melhor do que o que já se tem. Mbem diz que:

De saída, é um indivíduo aprisionado em seu desejo. O seu gozo depende quase inteiramente da capacidade de reconstruir publicamente sua vida íntima e de oferecê-la no mercado como uma mercadoria passível de troca.17

Enquanto o indivíduo da primeira revolução industrial tinha no patrão o filtro do ressentimento, o trabalhador nômade defende aquele chefe que ele próprio se tornou. Não se deseja um simples êxito, como um salário no final do mês — tampouco a garantia dos direitos —, deseja-se a liberdade de autogestão de si sem levar em consideração que ela só se tornou possível porque do ponto de vista social não há mais nada. Assim, o trabalhador nômade visa fazer com que se reconheça algo que ele tem e que já foi por ele reconhecido, e que possa, portanto, ser oferecido no solo sagrado do mercado. O que não se compreende, no entanto, é a identificação da forma absoluta do engajamento necessário do trabalhador nômade com a falta de possibilidade de manutenção de relações dignas e asseguradas de trabalho. Numa fórmula ao revés de Hegel, o escravo introjetou o senhor na consciência e agora ele opera sua mentalidade. Foi, porém, a impossibilidade de absorção dos inomináveis no mercado de trabalho que impôs à concorrência radical no interior da própria classe trabalhadora. Essa condição precária do trabalho se estende por todo o globo. Por isso, “os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas”.18 O trabalho se torna paralelo à dimensão da vida íntima. Todo o tempo é transformado em possibilidade de ganho que, no mais das vezes, garante apenas a sobrevivência. Trata-se de um neoescravismo aceito diante da precarização geral da vida. Nas palavra de Mbembe:

Essa tendência à universalização da condição negra é simultânea ao surgimento de práticas imperiais inéditas, tributárias tanto das lógicas escravagistas de captura e predação como das lógicas coloniais de ocupação e exploração incluindo as guerras civis ou razias de épocas passadas.19

Claro que a normalização de uma situação não elide de si a contradição. Esse neoescravismo, pensado como ressurgimento da condição negra em escala global, é aquilo que será concebido por Mbembe como devir-negro do mundo. Na impossibilidade de normalidade democrático-liberal, na desestruturação do mundo do trabalho, na pilhagem das conquistas sociais, o que se vê é o aprofundamento da miséria, a escalada do trabalho superexploratório e a contínua acumulação primitiva a exigir uma operação de guerra focada num estado de sítio permanente como organização estatal. Em suma, um capitalismo de espoliação cada vez mais violento. Assim,

uma parte do trabalho consiste agora em transformar o real em ficção, e a ficção em real; as intervenções militares aéreas, a destruição da infraestrutura, as agressões e os ferimentos passam pela mobilização total através das imagens, que agora fazem parte dos dispositivos de violência que se desejava pura.20

O devir-negro do mundo é a consolidação de um horizonte regressivo em que toda a humanidade está sob ameaça de se tornar supérflua diante do capitalismo.

Portanto, o que se pode extrair da observação de Mbembe é que, de acordo com as contradições dos significantes negro e raça, existe a possibilidade desse devir-negro do mundo ser respondido com uma transformação radical da sociedade global. Isso, porém, não fica de todo evidente, dado o pressuposto opressão-resistência mantido graças ao elo foucaultiano. De suas observações só se pode deduzir que o devir-negro do mundo é a tentativa de expropriação radical e exploração gritante do exército de indivíduos dispensáveis no capitalismo tardio. Toda a sofisticação dos controles estatais é assim colocada às ordens da dinâmica da contrainsurgência permanente. Citamo-lo:

Estas práticas de zoneamento vêm geralmente acompanhadas por toda uma malha transnacional de repressão; esquadrinhamento ideológico das populações, emprego de mercenários afeitos à luta contra guerrilhas locais, formação de comandos de caça, recurso sistemático a prisões em massa, tortura e execuções extrajudiciais. Imperialismo da desorganização.21

Frigio (escudo Colombia), Astrid González

A novidade do processo global de acúmulo é que a violência do capital aflige os locais onde garantias mínimas de vida estavam efetivadas. Não só todas as esferas da vida privada foram pilhadas como as da vida pública também. A condição negra — e por condição negra podemos entender os processos de violência e opressão causados pela exploração capitalista untadas à negação da humanidade dos subalternizados — acabou chegando na Europa por diversos dispositivos. “Pela primeira vez na história humana, o substantivo negro deixa de remeter unicamente à condição atribuída aos povos de origem africana durante à época do primeiro capitalismo”, diz Mbembe.22 Se a condição negra se tornou também globalizada, uma ressignificação do sentido de negro tornou-se uma linha orientadora para a compreensão do presente. Mbembe, através de seu esforço crítico, e pensando à sombra da história moderna, deduz que os significantes, negro e a raça, nunca foram elementos fixos. Enquanto a raça nunca se determinou pela biologia, mas pela ideologia, o sentido da noção de negro sempre foi existencial e, portanto, político.

Ao pôr os pés na temporalidade histórica, ao pensar o terceiro momento da modernidade, o tensionamento junto a Fanon se dará pelo distanciamento das expectativas orientadas pela própria análise. Mbembe tenta responder a essa tensão reorganizando o quadro de problemas herdados da letra fanoniana junto à analítica genealógica. O resultado mais feliz das influências divergentes, que marcam o percurso de construção argumentativa de Mbembe, foi, sem dúvida, o de instigá-lo a interpretar os fenômenos históricos da modernidade como desdobramentos da noção racial. É daí que emerge a experiência negra como negativa ao modo de visibilidade do poder. Trata-se de uma velha conclusão estabelecida pela crítica negra; um duplo discurso e um duplo referencial que, desde Du Bois, reflete-se na análise da questão racial.23 Por um lado, o discurso daquele que nomeia, por outro, o discurso daquele que é nomeado.

São a escravidão, o colonialismo e o apartheid que dão tom e ritmo para o discurso negro, segundo Mbembe. A escravidão liga-se, em primeiro lugar, à separação do indivíduo africano de sua terra. O colonialismo se liga à expropriação e despossessão material que acaba por forjar uma sujeição com o empobrecimento ontológico daqueles que são racializados e tornam-se negros. O resultado nefasto dessa lógica será a degradação fruto de uma morte civil caracterizada pela obliteração da participação da vida social. O desejo do negro de se saber a si mesmo advém dessa nadificação seguida de uma objetificação que lhe foi imposta. Esse é o embrião do discurso negro que será tecido na trama histórica. O negro, fruto do nascimento de uma nova forma de exploração, é ao mesmo tempo o produto de uma razão mercantil. Tal interpretação não é cristalizada, é preciso apreendê-la no movimento que organiza, através do mercado, o mecanismo das trocas juntamente às relações sociais e políticas que são determinadas como condição de possibilidade da realização das trocas. Ela esclarecerá que

a expansão do liberalismo como doutrina econômica e até específica de governar foi financiada pelo comércio de escravos, num momento em que, submetidos a uma acirrada concorrência, os Estados europeus se esforçavam para ampliar seu poder…24

Certamente, essas condições foram capazes de fornecer uma direção e uma realidade material às mudanças que se preparavam; a mercadoria, como forma elementar da riqueza, num primeiro momento do desenvolvimento capitalista (mercantilismo) propiciou que o próprio dinheiro, como além-mercadoria (D-D’), entronasse-se como chefe dos mundos ao se tornar capital — aquele que subsome em si todas as mercadorias abstratificando suas qualidades.25

Frigio (escudo Haiti), Astrid González

Mbembe chama de razão mercantilista esse primeiro movimento que usa o negro como um corpo e uma mercadoria; melhor, um objeto-corpo que gera valor e se realiza enquanto substância-trabalho. No sistema mercantilista, o negro é esse corpo-objeto que passa da forma do dispêndio de energia no trabalho à forma de objeto gasto e sem vida. O que, pois, reduziu um homem à coisa? A sua separação de uma condição humana: a exploração do continente africano e a consideração de que o mundo é, acima de tudo, um mercado ilimitado. É justamente essa noção — que dá as coordenadas de uma livre concorrência e uma livre circulação organizadoras do direito internacional, civil e cosmopolita — a responsável por organizar a ideia moderna de democracia e se entranhar na visão liberal. E não é dialética essa concepção de uma dinâmica própria a superestrutura que se reflete num momento situacional e historicamente preciso e se desenvolve por meio da subjetivação humana ligada às leis objetivas do seu próprio devir? Infelizmente, não. Mas, sigamos…

Com o estágio avançado do mercantilismo, conclui o pensador camaronês, as diversas formas de vida se regulam numa matriz comum; planetarização comercial cujo embrião está na plantation e na colônia. São os dispositivos raciais, subjacentes a essas estruturas de organização exploratória, que irão permear as formas de regulação próprios à democracia e ao liberalismo. A produção da liberdade no discurso liberal tem um custo cujo cálculo é feito através da segurança e da proteção. É verdade que se produz liberdade, mas se destrói também, e é justamente na escravidão dos negros o lugar dessa verdade. “A economia típica do poder do liberalismo e da democracia de mesma extração se assenta no jogo cerrado da liberdade, da segurança e da proteção contra a onipresença da ameaça, do risco e do perigo”, diz Mbembe.26 Liberdade e segurança se encontram assim dirigidos num único sentido: têm como princípio prevenir os perigos exteriores. As divisões brutais herdadas do mercantilismo-colonialismo, e suas consequências na construção do imaginário, obrigam a produção de inimigos ao engendrar uma cultura do medo. Claro: o negro como pura exterioridade, como reduzido à apresentação do corpo, para pensar como Fanon, aparece como esse perigo; “O perigo racial, em particular, constitui desde as origens um dos pilares dessa cultura do medo intrínseca à democracia liberal”.27 Ora, no passo central, dado entre mercantilismo e liberalismo, os pressupostos racialistas não só permaneceram intocados como desempenharam papel central na formação histórica da nova sociabilidade. O movimento do emergente capitalismo, consciente de si mesmo, manteve as estruturas do imaginário colonial na nova forma de administração política.

Para cada passo de desenvolvimento histórico e progressista, a multiplicidade das formações, suas contradições e suas separações aparecem situadas no interior de unificações arraigadas pela ideia de raça. A guerra civil, a guerra colonial e a reconstrução de um ideário, cujo significante era democrático, manteve, sob a cobertura ordinária do medo, as noções de igualdade e liberdade acomodadas aos pressupostos da escravidão e da segregação raciais. Assim, a pluralidade dos sentidos da formação do ideário liberal pôde ser descoberta sobre o fundo de uma negatividade que paira sobre seu discurso. Liberdade pressupõe segurança, e a segurança pressupõe o medo. O ofício teórico de Mbembe é tornar essa dimensão ocultada algo visível. Tudo está ainda obscuro e, entretanto, tudo está em plena luz, Tocqueville dará os contornos e limites dessa democracia nascente; o momento em que a tensão racial só terá dois sentidos; ou se dissolver entre a “mistura”, ou se resolver com um retorno dos negros à África. O pessimismo de Tocqueville marca o destino da noção democrático-liberal, sendo incapaz de resolver o tensionamento, evoca-se, quando preciso, o perigo racial. Assim, a liberalização pôde modificar os resultados da nova dinâmica social, mas não alterou sua realidade profunda. Para Mbembe, é preciso reparar nas contradições e afirmar a especificidade de cada formação, que atravessa o meio social, conservando as determinações e trazendo à luz a própria metafisica ocidental. Se a democracia liberal não pode resolver as questões raciais, como pensava Tocqueville, e se a saída seria um governo autodeterminado por negros, seriam eles capazes de se governar?

As diferentes respostas situam esse ser-negro em diferentes posições. Vemos o traço fanon-foucaultiano acentuando o tensionamento na medida em que a análise das repostas surge. São três respostas historicamente dadas à questão de Tocqueville analisada de maneira tipológica por Mbembe:

  1. “A primeira resposta consistia em situar a experiência humana do negro na ordem da diferença fundamental.”28 O negro não se caracteriza pela superação de uma situação ou de um lugar, mas justamente por estar preso e sedimentado à sua situação e ao seu lugar. Nessa resposta, há algo, no signo africano, que o separa de todos os outros signos humanos. Atado ao corpo e, sobretudo, à cor, o negro não apresenta uma subjetividade plenamente desenvolvida. Tem uma natureza, uma essencialidade. Se a superação da situação e do lugar se encontra na raiz do humano, a falta de humanidade do negro o condicionaria ao mesmo. Sua conduta mais rudimentar deve ser determinada na relação a certo aspecto biológico que lhe é próprio. Para essa resposta, historicamente forjada sob o signo democrático-liberal, o negro é um ser à parte. Algo entre o homem e o macaco…
  2. A segunda resposta é aquela que institui uma nova economia da diferença: se o negro é um ser à parte por seus costumes, deve-se corrigi-los para inscrever essa diferença numa ordem institucional. Simultaneamente, mando e obediência. Uma diferença relativa, que organizava a relação de desigualdade entre quem manda e quem obedece, sob a forma do controle estatal. O que iria resultar no princípio da diferença utilizado para a manutenção do princípio da desigualdade com fins segregacionistas. A abstração e a reificação ganham um mote utilizado pelo Estado na forma da lei: um reconhecimento unilateral e os lugares distribuídos no corpo social. As estruturas de organização da diferença condicionam os costumes e definem para cada um uma situação objetiva de partida. Ao negro está fechado a possibilidade de ultrapassar, ou melhor, de sair do seu lugar. Ora, essa impossibilidade de superação só é concebível como uma relação do existente organizado a partir da segregação. Os ecos dessa resposta se encontrarão nas políticas do apartheid.
  3. A terceira resposta advém da noção de possibilidade de assimilação: “a ideia de assimilação se baseia na possibilidade de uma experiência do mundo que fosse comum a todos os seres humanos ou, melhor, na experiência de uma humanidade universal, fundada numa semelhança essencial entre os seres humanos”.29 Se das três respostas a última resulta menos arbitrária, isso não elide o fato de que essa assimilação está pressuposta no interior do horizonte colonialista por meios não apenas da dessubstancialização da diferença como também na noção de que o espaço da modernidade é o lugar de conversão desse outrora embrutecido. Se as condições materiais circunscrevem o campo de suas possibilidades, o único possível ao negro é ser educado para usufruir do espaço de visibilidade da ordem existente, só assim se tornam aptos à cidadania e aos direitos civis. Assim, o campo dos possíveis é o objetivo em direção ao qual o negro, à parte de tais processos, é convidado ao assimilar a cultura.

Chegamos até aí: há um processo. Mas onde estaria a tensão? A tensão certamente não reside na análise às respostas dadas historicamente ao problema do negro. Assim, como Fanon, Mbembe insiste num vínculo estreito entre a forma de estruturação da vida social e a subjetivação. Entretanto, Fanon observa que a prática que organiza a racialização não poderá ser detida de maneira compensatória. Antes será preciso uma revolução que leve em consideração a própria construção de um novo inconsciente. Uma abertura que imploda as condições de possibilidade das três respostas historicamente fornecidas pelo quadro liberal burguês. Se as três respostas se mostram insuficientes, é preciso implodir o próprio universal-abstrato existente para dar vida e concretude a uma nova totalidade social. Audaz e ardilosa, a aposta de Fanon é alta. Para entendê-la, é preciso visualizar, mais que sua época, a escolha crítico-teórica que faz.

Na trilha de Freud, Fanon pensa o inconsciente como o locus que veicula o grande tensionamento pulsional. Nele se compõe tanto os atos que ficaram latentes, como os desejos recalcados. O inconsciente estabelece uma topografia impondo uma certa logicidade aos desejos e ao controle do ego. Trata-se assim de uma topografia do aparelho psíquico composto pelo quadro geral exposto por Freud. Para Fanon, porém, os traumas se forjam também pela racialidade do princípio de realidade do ego. Daí a importância da linguagem. Sua análise da linguagem, balizada pela fenomenologia, pensa, sobretudo, a forma de compreensão da dimensão para-um-outro do indivíduo racializado. O outro, ou para-um-outro, propiciado pela experiência imersa na linguagem, como forma que organiza o inconsciente, é o lugar que produz o horizonte de significados compostos pela linguagem. Fanon observou que a linguagem é a responsável pelo horizonte que aliena o negro. Impedindo-o não só de reconhecer-se a si como também impondo a reprodução da estrutura de alienação graças à racialização. Por isso, a necessidade da descida aos infernos, ou seja, de saber-se negro — excluído dos processos de humanidade — tem a ver com a suspensão da própria linguagem para seu exame radical.

O reconhecimento de si, por parte do negro, é, para Fanon, a primeira possibilidade de transformação radical, assim, a estrutura pensada por ele não é a mesma de Lacan — como aliás parece advogar Mbembe. Trata-se antes de pensar a estrutura envolta à sociogênese.30 Fanon, para pensar na racialização, seus traumas e suas saídas possíveis, privilegia a gênese social dos processos psíquicos. Balizada pela filogênese e pela ontogênese, a sociogênese apimenta a relação como um terceiro excluído. A sociogênese é fundamental porque possibilita o encontro do eu com o outro a partir das interações sociais concretas.31 É por aí que se explica o trauma racial. Se a linguagem formula e dá contornos à experiência social, advindo de relações materiais, a transformação que devolve humanidade àquele que dela foi retirado passa por uma revolução cultural, orientada pela transformação da estrutura sociogenética. Essa resposta dada por Fanon nasce de seus pressupostos teóricos. Não se tratava apenas de interpretar. Se a interpretação do mundo nos leva a contemplar os seus limites, havia um projeto fanoniano de construção do novo através do ruir do próprio universal já existente garantido por uma estrutura sociogénetica orientada pela economia capitalista. O martinicano nos convida a ultrapassar os limites dados.

Mas e o que diz Mbembe? Às suas constatações vertiginosas seguem-se tentativas de sair do labirinto racial. É verdade. Ele pensa na reinvenção da comunidade. E, certamente, é sempre possível tomar consciência da racialização como estrutura afetiva que condiciona a organização simbólica e dinâmica da própria sociedade. Mas a raça não é originalmente desligada da formação geral, como tampouco a percepção de sua ideia não é livre de condições específicas. A possibilidade de pensar a sociogênese, e inscrevê-la numa tradição dialética, deu armas para Fanon pensar a saída da grande noite. A consciência racial é primeiramente irrefletida e, nesse plano, ela só pode ser consciência dela mesma como algo natural. A noção racial é, em primeiro lugar, consciência da estrutura do mundo racializado. E nesse sentido o embrião do capitalismo é a primeira pista para enxergar aquilo que lhe dá arrimo. Se o nascimento do sujeito racial, para Mbembe, é inseparável da história do capitalismo, para Fanon, a história (ou pré-história) do capitalismo tem que chegar ao fim.

É, sobretudo, o capitalismo quem condiciona a violação e sempre precisou de subsídios raciais para manter sua contínua exploração do planeta. Hoje, a cooptação e a adaptação do corpo, a imobilidade de uma identidade fechada, estruturam as lógicas de distribuição da violência e já não poupam mais nenhuma região do mundo bloqueando qualquer alternativa de florescimento de uma verdadeira humanidade. Isso fica patente. Mbembe vivendo numa modernização colapsada não ignora esse processo. A reposta que surge disso é que é problemática. “Enquanto houver secessão em relação à humanidade”, diz Mbembe, “não será possível a economia da restituição, da reparação ou da justiça. Restituição, reparação e justiça são as condições para a elevação coletiva em humanidade”. 32 Mas, não é necessariamente o contrário? No interior dos pressupostos da vida sob império da mercadoria, a apresentação desse corpo marcado pela racialização, que aparece como identidade última, e se torna uma presença como diferença irredutível só pode ter como “reparação” a mercadoria. Não é exatamente isso que faz o capital atual? Uma economia da reparação não é exatamente o convite feito do capitalismo na sua realidade neoliberal? Uma reparação mediada pelo valor não seria limitada à reestruturação da mesma economia que organiza o quadro da totalidade social?

Não sejamos injustos, porém Mbembe sabe que é uma questão ardilosa, e a resposta só poderá ser dada em nível global; as fronteiras, os limites e as formas de lidar com os problemas através do globo é a tarefa da crítica. Disso à conclusão de Mbembe prefigura uma séria preocupação geral: existe um só mundo composto por mil partes. A existência de um único mundo sugere reciprocidade e preocupação comum. O compartilhar do mundo está implicado na preocupação, legada pela sabedoria africana, com todos os seres viventes que o compõe: “compartilhar o mundo com outros viventes, eis a dívida por excelência. Eis, sobretudo, a chave para a durabilidade tanto dos humanos quanto dos não humanos”.33 A dívida poderá ser paga com o partilhar do mundo. Mas e o mundo da mercadoria? Qual mundo é esse? É aqui que entra o programa de Mbembe: o desejo de ser só poderá ser respeitado pela reparação e restituição da humanidade negada àqueles que foram coisificados durante a construção histórica do mundo moderno. Toda a possibilidade de uma verdadeira justiça estará vedada se não se levar em consideração o processo que inoculou socialmente a diferença racial como algo estanque e hierárquico. De acordo! O problema é que tanto a reparação e a restituição são pensadas no quadro de resistência que mantém a álgebra do poder intacto e as formas de produção e reprodução sociais do mundo da mercadoria. Faltou a aposta no devir, Mbembe! Essa falta, porém, é condicionada pela própria escolha teórica. Fanon não se atém só às ruinas, enfrenta a coruja de Minerva e faz dos cacos uma possibilidade daquilo que se considera impossível na lógica de possibilidade atual.