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Face ao nacionalismo da Grande Rússia, reinventemos o internacionalismo1

Bernardo Glogowski

Alguns à esquerda sempre têm dificuldade de contar até dois. Ter dois inimigos e não apenas um, lutar em duas frentes e não apenas em uma não é, evidentemente, confortável. É muito menos difícil para a mente poder contar apenas com o bom, único e exclusivo Inimigo. O simplismo político, nascido de velhos hábitos, ignorâncias, amnésias e de muita preguiça rói uma parte da esquerda radical até a indignidade. Nem toda, felizmente. Balibar acaba de lembrar que, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia, “o pacifismo não é uma opção”, e que o “imperativo imediato é ajudar os ucranianos a resistir. Não reeditemos a ‘não intervenção’”.

Mas ampliemos os termos: não é apenas o pacifismo que é totalmente questionável quando um país é invadido por outro, desprezando todas regras do direito internacional. É, primeiramente, o “campismo” que não é opção em hipótese alguma. O que é o campismo? É a estupidez política com os efeitos mais sinistros, que consiste em pensar que só existe um Inimigo. Vamos defini-lo como um anti-imperialismo de sentido único. Da unicidade do Inimigo decorre a seguinte consequência inevitável: aqueles que se opõem ao Inimigo têm direito, se não às bênçãos, ao menos às desculpas, segundo o princípio de que os inimigos do Inimigo são, se não amigos, ao menos “aliados objetivos” em um combate justo.

Quase todo o século XX foi marcado por este trágico jogo de espelhos. Os partidários do sistema capitalista fechavam os olhos para as mais criminosas ditaduras, as encorajavam e as apoiavam em nome da defesa da civilização ocidental contra o comunismo, enquanto uma parte da esquerda não queria saber nada sobre a terrível realidade do “comunismo” soviético ou chinês, nem foi demasiado exigente com a natureza dos regimes “pós-coloniais”. O campismo de esquerda postula que os povos só têm como inimigo o “capitalismo”, “o imperialismo estadunidense”, “o Ocidente”, o “neoliberalismo”, até a “União Europeia”, conforme o caso e as diferentes designações em uso. Felizmente, no século passado, sempre houve movimentos e intelectuais que souberam resistir à estupidez política e salvar a honra da esquerda denunciando todos os inimigos da democracia e das liberdades, sem nenhuma “relativização das responsabilidades”. No movimento revolucionário, as correntes trotskystas e libertárias, além de outros movimentos, como Socialismo ou Barbárie, também sustentaram corajosamente a dupla frente anticapitalista e antistalinista.

Poderíamos esperar que estivéssemos imunizados contra essa bobagem após o colapso do “bloco soviético” e a crise da “hegemonia estadunidense”. Poderíamos acreditar que nenhuma opressão, violação dos direitos humanos, transgressão do direito internacional, demonstração de força, fosse ocidental, oriental, do Norte ou do Sul, pudesse ainda justificar-se, uma vez terminada a Guerra Fria. Nós nos enganamos. Claramente, os maus hábitos preguiçosos perduraram, mesmo se mostrando um pouco vergonhosos no momento da guerra de invasão realizada por Putin.

O campismo de esquerda consiste em ler, hoje, nessa guerra, um enfrentamento entre uma Rússia humilhada, cercada e ameaçada, e um Ocidente arrogante, invasor e agressivo: no fundo, a Ucrânia não seria mais que um campo de batalha entre o Inimigo imperialista que quer se expandir infinitamente, e, a Rússia, um país agredido e enganado por falsas promessas em 1990. E mesmo se se reconhece nesta última alguma veleidade imperialista — nem sempre, aliás —, seria um imperialismo de segunda categoria, enfraquecido, não comparável ao do Inimigo. Se se trata de uma guerra entre Estados Unidos e Rússia, se a causa dos ucranianos é tão “instrumentalizada” pelo Ocidente imperialista, como se poderia, então, entregar-lhes armas, ajudá-los a lutar? Sem dúvida, se é difícil alinhar-se abertamente a Putin, grande defensor de todas as extremas direitas do mundo, não se deveria, pelo menos, permanecer “não alinhados”, “neutros”, até “altermundialistas” como propõem alguns, à maneira de Jean-Luc Mélenchon, na França? Digamos: essa postura só atesta uma complacência inadmissível para com o fascismo neostalinista de Putin e, mais fundamentalmente, um desconhecimento completo da natureza totalitária e criminosa desse poder que não cessou de destruir a oposição interna até a eliminação física de jornalistas e militantes, de perseguir toda a sociedade e de exportar para a Tchetchênia, Síria e, mais recentemente, para a Bielorrússia e o Cazaquistão seu ódio armado contra todos os desejos de democracia dos povos. Também é esquecer de todas as provocações e as ações de Putin, com vistas a restaurar o império russo em nome de uma mística nacionalista de lógica sinistra.

O apoio da esquerda radical à resistência ucraniana deveria, então, ser evidente como, aliás, o apoio à causa palestina e a outras no mundo. É preciso não apenas exigir a retirada das forças de invasão, mas também reclamar o envio de armas aos resistentes ucranianos e, na sequência, oferecer todas as garantias de proteção do território ucraniano em suas fronteiras, anteriores à anexação da Crimeia e da secessão, orquestrada pela Rússia, das pseudorrepúblicas de Donbass.

O campismo de esquerda acredita que um crime anula outro, que uma violação do direito internacional justifica outra, que as vítimas se compensam mutuamente. Estaremos facilmente de acordo sobre o fato de que o Ocidente não tem nada de virtuoso e que sua hipocrisia é realmente incomensurável. As intervenções estadunideses e ocidentais desde o 11 de setembro de 2001 (“a guerra contra o terrorismo”) não se preocuparam com a legalidade e provocaram tragédias que duram até hoje, notadamente no Iraque e na Líbia, sem falar da defesa obstinada das políticas israelenses de colonização dos territórios ocupados! Como reivindicar o direito internacional quando se protege sua violação permanente, como fazem os Estados Unidos com seu veto no Conselho de Segurança? O combate contra esse imperialismo estadunidense e ocidental se justifica plenamente. Ele deve mesmo se ampliar a todas as formas de dominação econômica, financeira e ideológica e não somente às intervenções militares. Esse era, inclusive, há não muito, o sentido do altermundialismo. Mas a dominação do capitalismo ocidental não deve fazer esquecer que existem outras formas de dominação e opressão, notadamente religiosas, e outras ideologias extremamente perigosas, como o nacionalismo “imperial” do poder na Rússia. Sejamos realistas, o Ocidente não é o único obstáculo à democracia e à justiça social e nós temos mais de um inimigo. O internacionalismo consequente sabe disso; o campismo, não.

A negação do direito dos povos à democracia

Um dos piores aspectos dessa atitude é de não dar nenhuma importância às aspirações populares dos ucranianos, mas também, para ir mais longe, aos grandes movimentos democráticos na Ucrânia, na Bielorrússia, na Geórgia, no Cazaquistão. Os povos em questão são reduzidos a peões que, na realidade, não existem nesse grande esquema histórico abstrato, do qual o único verdadeiro ator é o Inimigo que quer expandir sua dominação mundial. Realmente não ocorre ao campista de esquerda que a adesão à Otan por vários países há muito sob o controle da URSS, após 1945, era, para eles, na falta de melhor opção, uma promessa de segurança depois de todas as agressões, anexações e divisões que haviam sofrido em suas histórias.

Certamente, a realidade é “sempre mais complexa”, como repetem os “não alinhados”, mas justamente eles deveriam tirar disso uma lição: os povos dispõem de autonomia, não são marionetes das grandes potências. O pior erro político do campismo é considerar que os povos não são nada, que tudo se dá pelo alto. Assim, o terrorismo islamista estaria em ação desde o início na revolução popular síria de 2011. Assim, as “revoluções coloridas”, mobilizações populares no espaço pós-soviético que, a partir dos anos 2000, participaram do grande movimento de emancipação democrática nos quatro cantos do mundo, só teriam sido formas disfarçadas do imperialismo estadunidense. Assim, a ocupação da Praça Maidan, em 2014, que faz parte do grande ciclo dos movimentos de ocupação das praças, teria portado a marca dos “neonazistas”.

Desse esquema decorre uma “relativização das responsabilidades”. O teórico do altermundialismo e da “esquerda global”, melhor inspirado em outros tempos, Boaventura de Sousa Santos, afirma sem pestanejar que “a democracia é apenas uma fachada (pantalla) dos Estados Unidos” e compara o “golpe de Estado de 2014” na Ucrânia ao golpe que derrubou Dilma Rousseff, em 2016, no Brasil. Em ambos os casos, haveria apenas uma e mesma tentativa de expandir a esfera de interesses dos Estados Unidos: “A política de mudança de regime não visa a criar democracias, mas, unicamente, governos fiéis aos interesses dos Estados Unidos”. Não há melhor maneira de negar a subjetividade democrática dos povos, reduzida a joguetes nas mãos do imperialismo estadunidense.2 Além disso, esquece-se de que as multinacionais estadunidenses e europeias jamais prosperaram tanto quanto no regime mafioso e repressivo da Rússia, que lhes assegurava uma paz social absoluta. Na realidade, esse autor repete a velha doxa do século XX, como se a Rússia ou a China representassem uma alternativa “progressista” ao capitalismo ocidental que seria preciso “poupar” porque ela lhe faria contrapeso. Na realidade, esses países oferecem as mais monstruosas versões do capitalismo, no que combinam o pior das ditaduras políticas sobre a população, com a exploração à exaustão das riquezas, em favor de uma pequena classe de predadores ultrarricos.

A realidade do imperialismo russo

(…) Sejamos claros. O inimigo de Putin não é o capitalismo como sistema de exploração. É a democracia, contra a qual ele pretende travar uma guerra impiedosa. O que o preocupa é o poder das massas em luta contra a corrupção econômica e política, isto é, contra seu próprio poder. Essas massas mobilizadas, como se viu ainda na Bielorrússia, veem na União Europeia um modelo político mais desejável do que as ditaduras predadoras a que estão submetidas. Foi a associação entre a Ucrânia e a União Europeia, aliás, que levou Putin a começar o desmembramento da Ucrânia, após a “revolução de fevereiro de 2014”. Com certeza, compreende-se que uma parte da esquerda dita “radical” esteja bem embaraçada em ver revoluções populares do mundo pós-soviético fazerem da União Europeia uma esperança e um horizonte, ela que critica com razão a natureza profundamente neoliberal e capitalista dessa Europa. Mas se há razão em criticar-se a “escassa democracia” da União Europeia, é em nome da exigência de autogoverno e não para retomar a retórica de Putin, segundo a qual essas revoluções são golpes de Estado fomentados pela Otan. É preciso dizer alto e forte: para a causa da igualdade, da democracia e das liberdades, é mil vezes melhor a democracia insuficiente dos países do Ocidente do que as bárbaras ditaduras de Bachar, Putin e Loukachenko, modelos de todos os fascismos contemporâneos.

Recusar falar no lugar dos ucranianos

Mais que hesitar diante do envio de armamentos defensivos frente a um agressor que só conhece a violência mais bárbara, a esquerda radical deve buscar ponderar a relação de forças na guerra. Como? Primeiramente, não falando no lugar dos outros, não negando o direito dos ucranianos, bem como o de outros povos expostos às pressões e ameaças de Putin, de se defender por todos os meios que julguem adequados, mesmo que eles possam desagradar. A urgência é a autodefesa de um povo agredido. Em seguida, mostrando-se solidário à esquerda radical ucraniana, que chama à compreensão da natureza do regime de Putin, para apreender a real dimensão de sua política externa. A guerra não deve ser feita contra “os russos”, mas contra um sistema que os oprime. Por isso, aliás, convém preocupar-se particularmente com possíveis ressurgimentos de uma extrema direita ucraniana nacionalista, estimulada pela guerra e que é um espelho do fascismo de Putin. Sabemos bem: nacionalismo nutre nacionalismo.

(…)

Mas outra tarefa internacionalista urgente se impõe. Ela consiste em denunciar a estreita conivência entre o capitalismo do Ocidente — dos Estados Unidos e da União Europeia em especial — e a corrupção das “elites russas”. Foi esta conivência que permitiu o funcionamento da “máquina de pilhar”, nos anos 1990. Esse capitalismo predador, cujas primeiras vítimas foram e sempre são os trabalhadores russos, gozou de todas as facilidades de lavagem de dinheiro e especulação nos circuitos das finanças, imobiliário, de luxo, do esporte etc., oferecidas por países que hoje se chocam com a ultrarriqueza dos oligarcas russos, adquirida pela corrupção e pela total submissão a Putin. O sistema capitalista financeiro mundial, com todas suas opacidades, contribuiu para fabricar o monstro estatal de Putin, e é contra os dois que é preciso unir todos os democratas radicais do Ocidente e do Oriente. Os soldados russos vão aceitar por muito tempo serem mortos para defender um Estado a tal ponto ladrão e corrompido? Foi essa mesma complacência interessada dos dirigentes políticos europeus que deu a Putin os meios de fortalecer e modernizar seu exército.

(…)

Europa “potência” ou Europa federativa?

Enfim, essa esquerda radical não pode se desviar do imenso canteiro da “arquitetura política” da Europa e do mundo. Como conter a dinâmica mortífera dos poderes soberanos que põem em questão as muito frágeis regras e equilíbrios do fim do século XX? Mais do que não se desviar, deve torná-lo uma de suas prioridades, porque a organização política do mundo determina, em grande parte, todas as outras. Acreditar abster-se, avançando uma concepção absolutista e obsoleta de soberania nacional e um “não alinhamento” é não apenas um erro político e moral, é um erro sobre o estado do mundo e sobre o meio de evitar as piores calamidades. É compreensível que um país agredido se valha dela. Não seria compreensível que um país do qual se pede solidariedade faça dela pretexto de um abandono covarde.

Por outro lado, todos os dias e há muito tempo se constata que o modo de deliberação e de decisão da ONU, graças ao direito de veto no Conselho de Segurança, reduz a organização das nações à mais completa impotência, desde que os interesses de um ou outro dos membros permanentes esteja em jogo. Não haverá paz ou justiça internacional alguma, nem uma real “transição ecológica”, fundada sobre a cooperação mundial, enquanto não for inventada uma outra instituição encarregada das relações e conflitos entre os Estados. Mas, mais fundamentalmente, compreende-se que o verdadeiro problema está na herança histórica que fez do Estado soberano a forma universal de organização das sociedades. É em nome dessa aspiração a formar um Estado soberano protegido de seus inimigos que a Ucrânia se defende, mas é também em nome desse mesmo princípio que a Rússia pretende se defender invadindo seu vizinho. O potencial destruidor do quase monopólio da “forma Estado” nas relações internacionais, sem falar do direito de cada uma dessas entidades de perseguir seus sujeitos, deve conduzi-la contra a exigência democrática de sociedades que se autogovernam por completo e tecem, entre elas, múltiplos laços que escapam à mediação estatal nacional. Isso demonstra, como dissemos no início, que não haverá solução “internacional” para as crises que afetam o mundo, sem solução democrática na escala de cada sociedade. A guerra que a Rússia faz é a mais trágica prova disso. Também por isso só o desenvolvimento de uma solidariedade e de uma transnacionalidade das lutas emancipadoras pode dar um pouco de esperança. (…) A grande tarefa da próxima geração consistirá em inventar uma nova cosmopolítica fundada na democratização radical das sociedades.