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Em algum lugar do inacabado: a atualidade de Vladimir Jankélévitch

Sem título (série Bestiário), Christiana Moraes, 2013.

Em 1978, a editora francesa Gallimard publica Quelque part dans l’inachevé, obra composta a partir da longa entrevista concedida por Vladimir Jankélévitch (1903–1985) à sua ex-aluna, Béatrice Berlowitz, a quem o filósofo francês havia dedicado A música e o inefável (1961). O livro, composto por 29 capítulos, recebe agora sua primeira tradução em língua portuguesa, sob o título Em algum lugar do inacabado, publicado pela Editora Perspectiva, na prestigiosa coleção Debates.

Ainda pouco conhecido e estudado no Brasil, Jankélévitch foi professor de Filosofia Moral na Sorbonne, de 1951 a 1979. Contudo, sua obra, marcada por forte influência bergsoniana, não se restringe ao campo da ética, voltando-se igualmente a problemas relativos à ontologia, à antropologia filosófica, à filosofia da linguagem, à música e ao tempo.

Multifacetado em temas e referências, o pensamento jankélévitchiano, denso, poético e coeso, requer uma adequada porta de entrada para quem deseja travar um primeiro contato com ele. Sem dúvida, a entrevista recém-publicada no Brasil é o texto que proporciona a mais autorizada e envolvente apresentação ao autor. Por um lado, ao longo das páginas de Em algum lugar do inacabado, contamos com a voz do próprio filósofo, que, com seu estilo sagaz, poético e encantador, revê, aos 75 anos, seus principais conceitos e ideias, fazendo uso da linguagem mais acessível de uma entrevista. Por outro, temos como guia para tal introdução uma intelectual dotada de rara sensibilidade e profunda intimidade com a visão de mundo de seu mestre, o que lhe permite tecer um panorama do pensamento em questão sem perder de vista a sutileza, qualidade imprescindível para a abordagem de um autor que prefere a visão à entrevisão, a pretensão de capturar seu objeto de estudo ao simples gesto de roçá-lo (effleurer).

Certamente, a palavra “panorama” não se ajusta muito bem a um filósofo que, acentuando a imersão radical do ser humano na temporalidade, considera artificiais as visões sinópticas. Para se ver o todo da vida ou de uma filosofia, ambas devem estar concluídas, acabadas, afirma Jankélévitch já no início do texto. Vale lembrar que Em algum lugar do inacabado antecede em sete anos a morte do entrevistado. Sua obra, àquela altura, ainda não tinha chegado a se perfazer e, talvez, continue a se reelaborar no modo como nós dela hoje nos apropriamos. Nós, leitores do século XXI, século que, segundo o filósofo, saberia apreciá-lo melhor que o século XX,1 com seus particulares modismos acadêmicos e sua forte herança cientificista…

A partir do livro-entrevista, síntese de um pensamento quase acabado, depreendemos algumas pistas que nos permitem reconhecer se o vaticínio do filósofo, autor de uma obra dirigida à ironia, teria, de fato, o potencial para se cumprir. Os temas percorridos nesse “panorama” ­— o tempo, a nostalgia, a inocência, o amor, a morte, o silêncio, a música, a condição judaica, o ensino da filosofia, entre outros — são pertinentes à nossa época e, de modo particular, ao atual cenário brasileiro? Além disso, o modo como tais temas são tratados e as perspectivas que se abrem por meio da reflexão jankélévitchiana sobre eles têm algo de original ou valioso a nos dizer?

Como tradutor de Em algum lugar do inacabado, escolhi quatro passagens da entrevista, de temáticas variadas, para compor este texto de convite à leitura da obra. A contextualização e a apresentação de cada uma delas sugerirão uma resposta positiva quanto à atualidade e à pertinência da filosofia jankélévitchiana para este tempo de obscurantismo, resistência, superficialidade e contradições.

Da curiosidade à simpatia

No primeiro capítulo da obra, ao abordar o (seu) ofício de escritor, Jankélévitch elabora uma distinção inusitada, que, apesar de possuir implicações éticas, também revela a dedicação do pensador a uma filosofia da vida. Segundo ele, não se pode confundir, no campo das relações humanas, a curiosidade e a simpatia, esta pertencente ao campo do amor. Atento às alternativas inconciliáveis que nos compõem, como a impossibilidade de reunir os saberes circunstanciais aos saberes mais essenciais de determinadas realidades, o filósofo destaca a total descontinuidade entre a curiosidade e a simpatia.

Embora cause certo estranhamento por aludir a um modo de convivência quase impraticável, a passagem pode ser lida como a postulação de um horizonte no qual nunca atracamos, mas que nos serve de referência. É importante ressaltar que Jankélévitch costuma pensar o amor, um dos principais temas de sua obra, não a partir da psicanálise,2 mas de uma tradição espiritual que remonta ao “amor puro” de Fénelon. Ultrapassar a curiosidade parece coincidir, nessa perspectiva, com o exercício do amor desinteressado. Ademais, ser curioso em relação ao próximo é reduzi-lo à condição de enigma, de depositário de informações ocultas, enquanto ter simpatia por ele é acolhê-lo como mistério, mistério que também me constitui, para retomar outra bela distinção trazida pelo filósofo na abertura de sua obra Debussy et le Mystère (1949).3 A oposição entre a curiosidade e a simpatia ganha especial sentido nesta época de redes sociais, que nos leva facilmente a confundir o conhecimento do outro com o acesso a seus “detalhes biográficos”.

Vladimir Jankélévitch: Isso porque, na maioria das vezes, o interesse que se dirige ao outro, especialmente quando esse outro escreve, não é a expressão da simpatia, mas antes o fruto da curiosidade. A curiosidade só é gulosa de detalhes biográficos, de anedotas mais ou menos picantes, de fofocas, de lembranças raras e confidências. A curiosidade é pontilhista, está à escuta dos fatos diversos e compõe uma crônica peneirada de anotações; estabelece, assim, um conhecimento superficial e irrisório, folheia com um dedo desenvolto o livro da biografia. Não é o amor, são o detetive e o inspetor de polícia que têm de se haver com os suspeitos e acumulam informações ao seu respeito. De fato, a simpatia começa onde não há mais espaço para a curiosidade. E digamos mais: é a curiosidade que obstrui a rota para a simpatia! Se você tem curiosidade sobre mim, é porque você não tem simpatia por mim. Se você procura saber algo sobre mim, extrair algum detalhe escabroso, é porque não quer me conhecer. Sim, a curiosidade se opõe à simpatia como o amador ao amante, como a seleção à eleição: o amador seleciona, ordena e detalha os indivíduos à maneira de um colecionador que classifica as amostras numa série abstrata ou num gênero impessoal. O amor, ao contrário, é indiferente aos pequenos detalhes e às particularidades materiais. É a própria generosidade que lhe dá essa aparência evasiva, negligente e talvez um pouco aproximativa. O amor não seleciona caracteres, adota, sim, a pessoa inteira por uma eleição maciça e indivisa. O amor nada deseja saber sobre o que ama; o que ama é o centro da pessoa viva, porque essa pessoa é para ele fim em si, ipseidade incomparável, mistério único no mundo. Imagino um amante que teria vivido toda a sua vida ao lado de uma mulher, que a teria amado apaixonadamente e nunca teria lhe perguntado nada e morreria sem nada saber sobre ela. Talvez porque soubesse desde o começo tudo o que havia para se saber.4

A precariedade da vida moral

Ao lado de sua tonalidade poética, o pensamento jankélévitchiano caracteriza-se, como já mencionado, por uma extrema coesão, verificada no emprego dos mesmos conceitos-chave nas diferentes áreas que o constitui. Assim, a ambiguidade, o não-sei-quê (je-ne-sais-quoi) e o quase-nada (presque-rien) destacam-se, com protagonismo, na antropologia filosófica, na ontologia, na filosofia da música e na ética propostas pelo autor. A concepção da vida humana ou de uma composição musical como um quase-nada, ou seja, como eventos frágeis e preciosos radicalmente submetidos ao tempo, não nos surpreende. Contudo, “fundar uma ética sobre a centelha”,5 ponto luminoso que aparece enquanto já desaparece, é, sem dúvida, uma proposta filosófica ousada e inquietante. Como bem aponta Berlowitz, é mais cômodo pensar nossa existência moral à semelhança de um caminho contínuo e ascendente, assegurado pelo exercício da virtude, defendido exemplarmente pela ética aristotélica. No entanto, para Jankélévitch, filósofo que valoriza especialmente a inocência, o olhar que não se torna espectador de si mesmo (seja na práxis, seja na criação/interpretação musical), a virtude é intermitente, realiza-se em lampejos, enquanto não temos tempo de nos inflar diante de nossa boa ação. Uma virtude, como a caridade, é graça, e, segundo o filósofo, não há um “estado de graça”, mas somente “pontas de graça”.6 Em outras palavras, ilude-se aquele que, como muitos no Brasil de hoje, instala-se na cátedra permanente de “cidadão de bem”. Assim, a ética jankélévitchiana, ao acentuar a precariedade constante do sujeito em suas escolhas morais, denuncia classificações éticas que não só nos acomodam, mas servem à má-fé de quem as manipula.

Béatrice Berlowitz: Aqui entra em jogo o seu pensamento mais desconcertante. Dissociar a exigência moral da exigência de aperfeiçoamento e privar os homens de pontos de referência, exilá-los de todo percurso, arrancá-los da sabedoria tradicionalmente prometida: chegamos quase a querer mal a alguém que nos fala de moral, impondo-a como uma exigência e definindo-a sempre como o improvável…

Vladimir Jankélévitch: Os homens, na verdade, não querem se ver privados do pão cotidiano da ginástica, não querem renunciar ao exercício tranquilizador que preenche os vazios do intervalo. Caplet escreveu uma coletânea de vocalizes intitulada O pão cotidiano… A ilusão do progresso diário implica uma mitologia tranquila para a consciência comum. O aprendiz mede com satisfação a extensão do caminho percorrido, subtraindo-a ao que resta a percorrer. Ele se compraz em contar o número de etapas transpostas e calcula quantas ainda restam a transpor. Hoje mais que ontem e bem menos que amanhã! Aquilo que está feito não está mais a fazer, aquilo que está feito está feito. Não importa a data escolhida para medir o meu grau de adiantamento, nunca terei estado mais próximo da meta, a cada dia um pouco mais próximo! Jamais um aperfeiçoamento terá me aproximado tanto da perfeição. Ao menos no espaço é assim. Mas em moral? Em moral, o caminho ganho é quase instantaneamente perdido outra vez. (…) Ora, para levar uma vida pura ou sábia não há nem receitas nem remédios, não há higiene nem terapêutica. No momento em que acreditamos ter descoberto a receita, tornamo-nos (e não de agora) os piores dos hipócritas, estamos mais corroídos por pensamentos egoístas que se não houvéssemos buscado qualquer remédio, estamos encerrados como uma ostra na concha da nossa salvação pessoal. É no momento de aplicar a exigência de sinceridade à minha vida como uma regra rigorosa que meço a profundidade maquiavélica e ardilosa da minha má-fé: eu só era sincero sob a condição de não fingir o ser, sob a condição de não o saber, de não me dedicar ao ensino da sinceridade. E da sinceridade recaio no sincerismo profissional, da pureza no purismo e, até mesmo, no puritanismo. Isso quer dizer que a pureza só existe nas brevíssimas distrações da inocência e nas fraturas instantâneas da consciência.7

O apreço às minorias

Tanto na filosofia quanto na música, áreas às quais dedicou grande parte de seus escritos, palestras e programas de rádio, Jankélévitch assumiu a missão de divulgar figuras de valor esquecidas ou pouco reconhecidas (méconnues) em seu próprio tempo. Assim, ganham destaque em sua obra um filósofo da cultura como Georg Simmel e compositores como Gabriel Dupont, Josef Suk e Albert Roussel.

A atenção por autores negligenciados pelo mainstream aponta uma inclinação pessoal e uma atitude política de defesa às minorias. Embora a preferência pelos frágeis o tenha acompanhado desde a infância, o desapreço pelos fortes provavelmente se intensificou após os horrores perpetrados pelo nazismo. Filho de judeus russos, o filósofo foi duas vezes banido, no mesmo ano de 1939, de seu posto de docente na Faculdade de Letras, em Lille, devido primeiramente à sua ascendência estrangeira e, num segundo momento, à sua ascendência judaica. No cenário da França ocupada, transferiu-se para Toulouse, onde passou clandestinamente os anos da Segunda Guerra, escrevendo, lecionando e participando da Resistência. Terminada a guerra, o filósofo, cuja tese principal de doutorado versou sobre a ética de Schelling,8 optou por praticamente não se referir, daquele momento em diante, à cultura germânica em sua obra. Sentiu-se mais à vontade para examinar, em especial no campo da música, repertórios que muito o fascinavam, produzidos por povos recorrentemente oprimidos, como aqueles do Leste europeu, submetidos até o fim da Primeira Guerra ao jugo do Império Austro-húngaro, cuja língua oficial era a alemã. Neste sentido, a ênfase dada por Jankélévitch aos ricos nacionalismos musicais, húngaro, tcheco, búlgaro, romeno, armênio, espanhol e brasileiro9 coincide com sua opção pelas minorias. Prenunciando preocupação própria à nossa época, o pensador ressalta a necessidade de valorização e de reconhecimento de “formas” artísticas e de visões de mundo não hegemônicas.

Embora, como veremos, nem sempre faça sentido buscar uma “coerência” entre nossos gostos musicais e nossas posições políticas ou éticas, o filósofo a estabelece em certa medida, consciente ou inconscientemente. Ao repudiar a cultura germânica, Jankélévitch recusa, sobretudo, a grandiloquência e o culto ao sublime próprios ao Romantismo tardio, que refletem ou estimulam a inflação do ego de um indivíduo ou de uma nação. Estar ao lado das minorias é, portanto, privilegiar a espontaneidade, a ingenuidade, a despretensão, em uma palavra, a graça. Além disso, ser sensível às minorias e às suas culturas coaduna-se com a missão de um filósofo moral, empenhado na defesa do equilíbrio social de direitos, vozes e oportunidades.

Jankélévitch: Pertenço ao partido daqueles que são frágeis, desarmados, abandonados, minoritários. Estou do lado daqueles que todo mundo esquece ou renega, que ninguém defende e por quem ninguém se compadece. (…) Devo confessar, não tenho grande interesse pelas causas triunfantes, apoiadas pelos clamores da multidão e pelas bajulações dos desprezíveis. Os musculosos, os fortes, os “robustos”, aqueles que Max Jacob chamava de “rugidores”, aos quais se deve acrescentar as cantoras vociferantes, os virtuoses em delírios e os regentes gloriosos: esse campo triunfal não é o nosso. Quando menino, eu me via como aliado de Heitor e não de Aquiles no momento em que os troianos estavam prestes a sucumbir. (…) Então detestava Constantino, o grande, o grandíssimo Constantino, esse Constantino, o forte, tão seguro da sua força. Desejei a derrota do cristianismo quando se tornou majoritário e triunfal, quando o sentimento de superioridade desfigurou o seu rosto e quando se pôs, por sua vez, a perseguir os pagãos. (…) Os fortes não precisam de ninguém, defendem-se por si mesmos. Felizmente, algumas vezes devoram-se uns aos outros. Contudo, também com frequência os ogros são solidários com os ogros, solidários em “ogroria”. A eles os bilhões, a consciência tranquila, a segurança natural que a sua musculatura propicia aos atletas e, por acréscimo, certos cuidados pseudofilosóficos. Por que esses rugidos contra a moral? Justamente porque a moral é o que incomoda os cavaleiros da força triunfante. (…) A moral não existe para enriquecer os ricos nem para fortalecer os fortes, a injustiça “imanente” já se encarrega disso por si mesma, ao não cessar de ampliar monstruosamente as desigualdades e de aumentar vertiginosamente os latifúndios.10

A pluralidade da sensibilidade

Talvez por uma interpretação errônea de uma das célebres proposições que compõe o Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein, costumamos ouvir indiscriminadamente a afirmação de que ética e estética se equivalem.11 Ao longo de Em algum lugar do inacabado, Jankélévitch tece algumas considerações que nos permitem distinguir os “territórios” de grandes áreas da mentalidade humana, como a ética, a estética e a razão teórica. De acordo com o filósofo, engana-se quem tenta aplicar à arte, cuja apreciação e interpretação inclui certa dose de prazer, o ideal moral do anti-hedonismo ou quem busca, como dito anteriormente, exercitar-se e progredir na vida moral do mesmo modo que aperfeiçoa sua técnica na prática diária de um instrumento. Outra relevante distinção entre as áreas citadas encontra-se no último capítulo da entrevista. Enquanto nossas posições filosóficas, políticas, religiosas — e, poderíamos completar, nossas opções morais, fundamentadas numa “razão prática” — tendem a ser excludentes, nossas preferências artísticas acolhem múltiplas possibilidades. Provavelmente a música, independente em certa medida dos “fenômenos” em sua dimensão propriamente acústica, como observou Schopenhauer, permita, mais que as outras artes, a formação de constelações únicas de gosto, compostas por peças de gêneros, estilos e procedências variadas. Reconhecemos, neste ponto ressaltado por Jankélévitch, um dos valores da arte e especialmente da música, como registros nos quais afirmamos algo de nossa liberdade, pelo exercício de nossa irrepetível sensibilidade.

Expandindo o tema das “constelações” singulares para além da apreciação artística, vale aqui recordar que o filósofo foi muitas vezes mal interpretado ­— e, ouso completar, até alijado — por seus pares em virtude de ter reunido, em sua obra e subjetividade, influências, posturas e preferências então consideradas contraditórias. Um pensador assumidamente de esquerda, um dos poucos professores da Sorbonne a engajar-se, ao lado de seus alunos, nos eventos de Maio de 68, poderia apreciar Plotino e os Padres da Igreja, os escritos de São João da Cruz e São Francisco de Sales?12 Tal preconceito não é estranho aos nossos dias, nos quais aderir a uma posição política parece exigir a conformação a uma visão de mundo pré-determinada. Mas até que ponto, como fazemos de modo indevido no âmbito da experiência estética, atribuímos uma exigência de coerência a gostos e posições que, se não fosse por estereótipos e comportamentos dominantes, poderiam ser, sob nova perspectiva, perfeitamente conciliáveis? Neste sentido, o exemplo de vida e da obra de Jankélévitch nos alertam para o que há de falsamente coerente ou incoerente em nossas escolhas.

Vladimir Jankélévitch: Reivindico um direito que a música é capaz de me dar: poder apreciar obras tão diferentes umas das outras. As preferências em matéria de gosto musical não pretendem formar um sistema coerente nem mesmo ser conciliáveis entre si. Em oposição às doutrinas filosóficas, que implicam um sistema de ideias, e mais ainda às doutrinas políticas, que pressupõem a priori a proibição de se contradizer, o sensível reconhece uma única lei: a do pluralismo e do plural. (…) No mundo das ideias, deve-se lutar a cada dia e passo a passo para não se contradizer, até mesmo para não se desmentir e, por uma razão ainda maior, para não se renegar. (…) Ao contrário, tenho o direito de ao mesmo tempo gostar de Albéniz e de Scriábin, sem experimentar o sentimento de me contradizer nem a necessidade de me justificar; sem precisar prestar contas a quem quer que seja. Tenho também o direito de admirar tanto Magritte quanto Claude Lorrain sem o mínimo remorso, sem me reconhecer culpado. (…) Não há um sistema de prazeres. Como você é capaz de gostar de Bartók, uma vez que gosta das Baladas de Chopin? Pode-se responder a essa questão dizendo que ela se coloca um problema inexistente. A sensibilidade é plural e diferencial. Não organiza em torno de si um mundo sistemático, um mundo de coerência bem redondo e administrado como o faz um ser humano religioso que coloca todos os valores em harmonia com a sua fé. Isso porque há duas ordens heterogêneas que não devem ser confundidas: uma que se refere à “sistematologia”, à organização dogmática das ideias (ainda que os valores sejam essencialmente esporádicos), a outra que se refere à sensibilidade, mundo fantástico, multicor como a veste de Arlequim, dirigida a todos os caprichos do coração, cedendo à humoresque do prazer. (…) Se confundirmos essas duas “ordens”, como dizia Pascal, seremos como o geômetra que, depois de ter assistido a uma tragédia de Corneille, perguntava: “O que isso prova?” De resto, não presto mais contas a ninguém a respeito do que devo amar ou não. Os terroristas me aterrorizaram o suficiente na minha vida. Agora não tenho mais medo. Decidi ser sincero.13

Para planejar este curto sobrevoo por Em algum lugar do inacabado, precisei excluir várias outras passagens da obra que também dialogam intimamente com nosso tempo. No entanto, não devemos nos esquecer de que a filosofia não é atual somente quando se debruça sobre questões na ordem do dia. A atualidade da filosofia advém igualmente do tratamento especulativo de temas que, embora ganhem relevo em determinados períodos da história do pensamento, não cansam de nos tocar e inquietar. Assim, a obra aqui apresentada, como síntese de um pensamento filosófico, também nos diz respeito por mergulhar na precariedade da vida, na dinâmica do tempo, no desafio da liberdade, nos bastidores da ação, na inefabilidade da música, mistérios fundamentais da experiência humana que, segundo Jankélévitch, permanecerão para nós como um eterno não-sei-quê.