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Aindassim rimos

Notas composicionais

Ø.///// 1 Dividido em duas partes — um Prólogo e um Ato — o texto a seguir foi idealizado durante a residência artística Ybytu (SP), entre novembro e dezembro de 2021. Uma primeira versão do trabalho foi impressa no catálogo feito em colaboração com a editora Ikrek. Em dezembro de 2021, durante a exposição Máscaras: fetiches e fantasmagorias (curadoria de Mirtes Marins de Oliveria) no Paço da Artes, uma leitura da primeira versão, intitulada Contradição performativa, foi apresentada na forma de “palestra radiofônica de caráter dramático”. A apresentação fez parte das ativações do trabalho Rádio Livre #6 do artista Gustavo Torrezan (BR).

No corpo do texto, alterações de tipo (bold e cor) correspondem às alterações de ênfase e timbre. Quanto ao timbre, esse pode ser entendido em sentido amplo. Alterações nesse parâmetro podem incluir manipulações eletrônicas na qualidade da voz, mudanças de agente sonador e outras intervenções sonoras por meios eletrônicos distintos.

O sinal ∗∗∗ indica períodos de pausa e silêncio — semelhante à uma fermata longa.

O sinal “n. /////” indica a ocorrência de interpolações lineares2 no decorrer do texto.

n. /////” marca o início (play) de algum material sonoro em paralelo à leitura do texto. O número n. indica um arquivo sonoro específico do conjunto de vinte intervenções sonoras sugeridas no decorrer deste ensaio. Para essa versão online, propomos arquivos de áudio sintetizados digitalmente a partir do treinamento progressivo de uma rede neural SampleRNN. O objetivo do treinamento era modelar a risada humana. Para o treinamento da rede, foram reunidas duas horas de gravações selecionadas contendo risadas de mulheres, homens e crianças.

Uma leitura completa da peça possui a duração aproximada de 25 minutos.

Observação: Diversos trechos deste libreto foram escritos3 em colaboração com outros agentes — humanos e não humanos.4


PRÓLOGO
a hipótese

1. O mundo é tudo que é o caso.

Lá fora, no jardim, um pássaro cego está cantando.

2. O que é o caso — o fato — é a existência de estados de coisas.

Se ele falasse, eu não entenderia. Sei que é cego por causa da cor de seu canto.

3. A figuração lógica dos fatos é o pensamento.

Eu também não entenderia uma cadeira se ela falasse, ou até mesmo, se risse.

4. O pensamento é a proposição com sentido.

Se um tigre salta e sobrevive, mas lhe arrancam a pele, posso ouvir seu rugido, seu desespero. Posso entender sua fúria, mas sua língua é incompreensível para mim. Mal entendo a da minha espécie.

4.014 O disco gramofônico, a ideia musical, a escrita musical, as ondas sonoras, todos mantêm entre si a mesma relação interna afiguradora que existe entre a linguagem e o mundo. Eles são todos construídos de acordo com um padrão lógico comum. (Como, no conto, os dois jovens, seus dois cavalos e seus lírios. Todos são, em certo sentido, um só.)

Se um pássaro cego caísse em minha mão e soltasse um grasnido de protesto por ter sido confundido com uma bola de gude e estivesse fazendo o mesmo ruído que faria se estivesse cantando alguma coisa, eu saberia imediatamente do que se trata.

5. A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. (A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma.)

Se os aviões sobrevoassem a casa, levantando areia para dentro das janelas fechadas, me impedindo de escrever…

6. A forma geral da função de verdade é: [(p, ξ, N(ξ)]. Isso é a forma geral da proposição.

Um fato no mundo, tal qual a glossolalia, a síndrome de Tourette e o som dos aviões que se mantém no ar entre as nuvens.

7. Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar.

E ainda assim…

ATO I
o títere e o titereiro

Um homem entra em uma confeitaria e pede um bolo. Logo em seguida, ele o leva de volta e pede um copo de cachaça. Bebe a cachaça e vai embora sem pagar a conta. O proprietário o segura e fala:

— Você não pagou pela cachaça. O homem responde: Mas eu te devolvi o bolo…

— Você também não pagou pelo bolo.

Mas eu não comi o bolo.

1. /////

Ao tentar classificar o fenômeno que chamamos de humor, Sigmund Freud se perguntou sobre a estrutura do chiste — “o fato é que ainda não sabemos onde residem os elementos que fazem de uma cena qualquer uma piada”. Deixando de lado se está na própria cena, ou acompanhando-a, podemos concordar que parte do humor na cena do bolo se relaciona com a presença de um certo absurdo lógico; como o status de uma “faca sem lâmina que não tem cabo”. Esse absurdo tem uma qualidade diferente, alguma representação está equivocada; como uma moldura sem imagem.

2. /////

Freud, que nunca voltou ao assunto depois de escrever seu livro sobre a teoria das piadas em 1905, sugeriu que “censores” na mente formam poderosas barreiras inconscientes que dificultam pensar pensamentos “proibidos”. As piadas, o chiste e o absurdo poderiam ludibriar esses censores e, assim, produzir a prazerosa liberação de energia psíquica descarregada pela possessão do riso.

3. /////

Como a Faca de Lichtenberg citada por Freud, o chiste tende a ser absurdamente compactado e condensado com significados duplos: o que serve para enganar os censores da razão.

A hipótese poderia ser observada de cinco perspectivas complementares.

1. A lógica do senso comum não é confiável para uso prático. Dificilmente consegue ser reparada a tempo. O humor desempenha um papel especial no aprendizado e na comunicação de questões pragmáticas.

2. Detectar erros no raciocínio é insuficiente; porém, temos a ilusão de poder antecipá-los ou evitá-los. Incorporamos muito do nosso conhecimento sobre como fazer isso na forma de “censores” que suprimem estados mentais improdutivos. Talvez por isso o humor se preocupe tanto com o proibido — sexualidade, violência, preconceito etc.

3. O pensamento produtivo depende de saber usar Analogia e Metáfora. Mas as analogias costumam ser falsas e as metáforas, enganosas. O “inconsciente” eventualmente suprime comparações inadequadas.

4. As consequências do fracasso se manifestam em nossas próprias cabeças, enquanto os fracassos em si mesmos envolvem um Outro. Intelecto e Afeto parecem semelhantes uma vez que especulamos que o “inconsciente” considera o raciocínio falho tão “perverso” quanto os desejos “freudianos” usuais.

5. O humor se faz em contextos específicos. Sua prática inclui maneiras desarmadoras de “graciosamente” instruir os outros acerca dos comportamentos tidos como impróprios, ou falhos. Esse desvio torna o assunto confuso.

∗∗∗

4. /////

Os problemas são resolvidos, não dando novas informações, mas organizando o que há muito tempo já conhecemos. Daí a importância do conhecimento sobre o conhecimento e, particularmente, do reconhecimento de erros, fracassos e automatismos.

5. /////

Muitas histórias que a princípio pareciam sem sentido, ou misteriosas, tornam-se dessa maneira mais compreensíveis. Considere o livro grego sobre o caso de Troia. Para reparar um casamento desfeito por adultério, uma civilização passa dez anos destruindo outra civilização. Os heróis de ambos os lados sabem que a briga é fútil, mas eles continuam porque pensam que a disposição para a morte em campo de batalha é a prova da grandeza humana.

Não há sugestão alguma de que a guerra faça outra coisa senão prejudicar as pessoas que sobrevivem a ela.

6. /////

Lembre-se também do livro romano sobre Eneias. Ele lidera um grupo de refugiados em busca de um lar pacífico e, em resposta, ele espalha agonia e guerra ao longo de ambas as costas do Mediterrâneo. Ele também acaba visitando o Inferno, mas consegue sair do Abismo. O escritor desta história é sensível aos lugares pacíficos, ele quer o sucesso romano na guerra e no governo para fazer do mundo um “lugar pacífico” para todos.

Existe também o livro judaico sobre Moisés. É muito parecido com o livro romano sobre Eneias, portanto vou passar para o livro judaico sobre Jesus. Ele é um homem pobre, sem casa ou esposa. Ele diz que é filho de Deus e chama todos os homens de seus irmãos. Ele ensina que o amor é o único grande bem e se estrupia lutando pelas coisas. Ele é crucificado, vai para o Inferno, depois para o Céu, que (como o mundo pacífico de Eneias) está fora do escopo do livro.

Jesus ensinou que o amor é o maior bem de todos, e que o amor acaba prejudicado quando lutamos pelas coisas; mas se (como diz a música) “ele morreu para nos tornar bons”, ele também foi um fracasso. No final, as nações que o adoram se tornaram os conquistadores mais gananciosos desse mundo ou os Estados mais hipócritas que se possa imaginar.

Dentre todos esses livros, apenas o livro do italiano mostra um homem subindo vivo ao céu. Ele chega lá seguindo Eneias e Jesus pelo Inferno, mas primeiro perde a mulher e o lar que ama e vê a ruína de todas as suas esperanças políticas.

Existe também o livro francês sobre os bebês gigantes. Satisfazer a si mesmos é sua única lei, portanto eles bebem e excretam de maneira alegre como uma família masculina que ri de tudo que os adultos chamam de civilização. Nesse livro, as mulheres existem apenas em função deles.

Existe o livro espanhol sobre o Cavaleiro da Face Dolorosa. Um pobre velho solteirão que enlouquece lendo o tipo de livro em que você quer estar — com heróis que triunfam aqui e ali, sempre vivendo no agora. Ele acaba saindo de casa e luta com os camponeses e os estalajadeiros por uma causa bela, mas que nunca se manifesta e ele constantemente é zombado e ferido. Em seu leito de morte, ele fica são e adverte seus amigos contra a literatura intoxicante.

Existe o livro inglês sobre Adão e Eva. Ele descreve um Satanás que constrói um império heroico, um Deus amoral, irônico e infinitamente criativo, muita guerra (mas nenhuma morte) e tudo centrado em um casal e no estado de sua casa e jardim. Eles desobedecem ao senhorio e são despejados, mas ele lhes promete alojamento na sua própria casa caso vivam e morram em penitência. Mais uma vez, o sucesso está fora do escopo do livro. Somos mostrados pela última vez a eles quando partem para o mundo para criar filhos que eles sabem que vão matar uns aos outros.

Existe o livro alemão sobre Fausto, um velho médico que cresce jovem por meio da feitiçaria. Ele ama, depois negligencia uma garota que enlouquece e mata seu bebê. O médico se torna o banqueiro do imperador, rapta Helena de Troia e tem outro filho simbólico que explode. Ele rouba terras dos camponeses para criar seu próprio império, que é financiado por meio de espólios da pirataria. Ele abandona tudo de que se cansa, agarra tudo o que deseja e morre acreditando ser um benfeitor público. Ele é recebido em um céu como o italiano porque “o homem deve se esforçar e se esforçar, ele deve errar” pois “aquele que continuamente se esforça pode ser salvo”. No entanto, a única pessoa no livro que se esforça é o pobre diabo, que faz todo o trabalho e é roubado de seu salário pelo coro angelical que mostra a ele suas nádegas. O escritor deste livro foi privado por excesso de sorte. Ele mostra o tipo de homem de sucesso que comanda o mundo moderno, mas não mostra o quão vilmente incompetentes essas pessoas são. Você não precisa desse tipo de sucesso.

Por fim, há o “sincero” livro norte-americano sobre a baleia. Um capitão quer matá-la porquê da última vez que tentou fazê-lo, a criatura arrancou sua perna com uma mordida enquanto escapava do homem. Ele embarca com uma tripulação cosmopolita que não gosta da vida na terra, pois prefere essa forma de ganhar dinheiro. Eles são valentes, habilidosos e obedientes, perseguem a baleia pelo mundo e acabam todos afogados juntos, todos menos o contador de histórias. Esse descreve o mundo seguindo seu curso, como se essas personagens nunca tivessem existido. Não há mulheres ou crianças neste livro, exceto um garoto negro que eles “acidentalmente” enlouquecem.

7. /////

Argumenta-se que aprender sobre o erro é fundamental para o desenvolvimento da razão. Mas a própria razão não cresce no vácuo; a maioria de nossas ideias — e nossas ideias sobre ideias — vêm de nossos contextos materiais, sociais, familiares e simbólicos, o que resulta em questões específicas sobre essa noção de racionalidade. Por um lado, é arriscado apontar os erros de uma pessoa que se deseja agradar. Isso deve ser feito de uma maneira “conciliatória” — e o humor parece ajudar nisso. Por outro lado, aprender sobre os erros envolve um tipo especial de memória, uma a qual a comunicação deve, de alguma forma, engajar-se. Propõe-se então que o humor — e mais especificamente, o riso — seria habilitado a fazer isso de uma maneira quase que inata. Mas então, onde reside a dificuldade em explicar por que as piadas são engraçadas? Por que é tão difícil acessar a estrutura do absurdo?

8. /////

Talvez você conheça o problema de Wittgenstein em definir a noção de “jogo”. Para ele, não se pode encontrar nenhuma qualidade única e comum a todos os diferentes tipos de exemplos de jogos — algo semelhante parece ocorrer ao tentar definir o que é o “absurdo”. Raramente paramos para nos perguntar por que isso acontece — talvez devido a uma ilusão evidente pois, quando o absurdo emerge, ele nos parece irredutível.

Posso comparar uma falta de definição à dificuldade em se escanear uma superfície. A questão parece se relacionar com uma vontade em encontrar uma única estrutura subjacente de onde todas as coisas surjam — como uma “gramática generativa” ou uma “estrutura mais profunda”. De todo modo, não parece ser assim: quando olhamos mais atentamente para essa suposta estrutura subjacente, ainda há falta de unidade — o absurdo persiste. Parece não haver profundidade, apenas superfícies. O mundo é tudo o que é o caso e mesmo assim…

∗∗∗

9. /////

Em A interpretação dos sonhos, Freud usa metáforas espaciais para descrever a psique. Para ele, a cena de atuação dos sonhos é diferente daquela da vida idealizada em vigília. Freud propõe o conceito de “localidade psíquica”. Com isso, ele tem o cuidado de explicar que esse conceito é puramente topográfico e não deve ser confundido com uma localidade física anatômica. Sua “estrutura topográfica” divide a psique em três sistemas: o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. Sua segunda proposta mais famosa divide a psique em ego, superego e id.

Lacan critica esses modelos por não serem topológicos o suficiente. Ele argumenta que o diagrama com o qual Freud ilustra sua segunda topologia levou a maioria dos leitores de Freud a esquecer o poder intuitivo da imagem. O interesse de Lacan pela topologia surge pois ele a vê como um meio não intuitivo e puramente intelectual de expressar simbolicamente o conceito de estrutura. Portanto, é tarefa dos modelos topológicos “proibir a captura do imaginário”. Ao contrário das imagens intuitivas, nas quais “a percepção eclipsa a estrutura”, na topologia de Lacan não há ocultação do simbólico.

10. /////

Lacan sempre fala a verdade. Não toda a verdade [pas toute], porque não tem como dizer tudo. Dizer tudo é literalmente impossível: as palavras faltam. No entanto, é por meio dessa impossibilidade que a verdade se apega ao real.

Lacan então tenta responder à comédia de sua atualidade, o que só serviu para a lata de lixo.

Um fracasso, mas, portanto, realmente um sucesso quando comparado com a aberração que consiste nessa ideia de falar para ser entendido.

Lacan argumenta que a topologia não é simplesmente uma forma metafórica de expressar o conceito de estrutura: ela é a própria estrutura. Ele enfatiza que a topologia favorece a função de corte [coupure], uma vez que o corte é o que distingue uma transformação descontínua de uma contínua. Ambos os tipos de transformação desempenham um papel no processo analítico. Como exemplo de transformação contínua, Lacan se refere à fita de Moebius. Assim como uma face passa de um lado para o outro seguindo continuamente a volta da fita, o sujeito pode percorrer sua fantasia sem dar um salto mítico de dentro para fora. A título de exemplo de transformação descontínua, Lacan também se volta à fita de Moebius. Ao ser cortada ao meio, ela se transforma em um único laço com propriedades topológicas muito diferentes: agora ela tem dois lados em vez de um. Assim como o corte opera uma transformação descontínua na fita, uma interpretação efetiva pode modificar radicalmente a estrutura do discurso.

11. /////

Lá, cada frase se conecta com outra. Entre elas existem cem anos.

Lá as pessoas nunca vão a lugar nenhum sozinhas, apenas em grupos de três a sete, seus cabelos estão entrelaçados.

Lá os mortos vivem nas nuvens e como a chuva, contaminam as pessoas como vírus.

Lá os deuses permanecem pequenos enquanto as pessoas crescem. Quando eles crescerem tanto que não viram mais os deuses, eles tiveram que estrangular uns aos outros.

Lá, eles falam uma língua distorcida no mercado e ficam paralisados ​​em casa.

Lá todos são governados por um verme inato, cuidam dele e são obedientes a ele.

Lá eles atuam apenas em grupos de cem; o indivíduo, que nunca se ouviu ser nomeado, não sabe nada sobre si mesmo, se esvai.

Lá eles sussurram uns com os outros e punem uma palavra forte com o exílio.

Lá os vivos jejuam e alimentam os mortos.

Lá as pessoas estão mais vivas enquanto morrem.

Lá as pessoas andam em filas; é considerado indecente se mostrar sozinho.

Lá, todo aquele que gagueja também deve mancar.

Lá, os cachorros acasalam-se de maneira diferente, eles o fazem enquanto correm.

Lá, os números das casas são alterados todos os dias para que ninguém encontre o caminho de casa.

Ali, é considerado insolência dizer a mesma coisa mais de uma vez.

Lá se tem outra pessoa para sentir a dor, a própria dor não conta.

Lá as pessoas leem jornais duas vezes por ano, depois vomitam e se recuperam.

Lá os países não têm capitais. Todas as pessoas se instalam nas fronteiras. O próprio país permanece vazio. Toda a fronteira é a capital.

Lá são os mortos que sonham, sonham e ressoam como um eco.

Lá as pessoas se cumprimentam com um grito de desespero e se separam em júbilo.

Lá as casas ficam vazias e são limpas a cada hora para as gerações futuras.

Lá, quem foi insultado fecha os olhos para sempre e os abre às escondidas, somente quando está sozinho.

Lá as pessoas reconhecem seus antepassados, mas são cegas para seus contemporâneos.

Lá as pessoas dizem “Você é”, mas querem dizer “Eu posso ser”.

Lá as pessoas mordem rápida e furtivamente e depois dizem: “Não sou eu”.

Lá, um quarteto de cordas toca o Contrapunctus No. 9, Die Kunst der Fuge, de Johann Sebastian Bach.

∗∗∗

Em mecanismos elaborados — tal qual um plano de ação — é razoável perguntar sobre o propósito ou a causa de uma estrutura. Qual é o propósito dessa viga nesta casa? Talvez, sustentar este telhado — e, talvez, separar aquelas paredes. Mas quando fazemos perguntas sobre as estruturas criadas pelo desenvolvimento de algo, descobrimos que apenas raramente uma informação serve a um único propósito — raramente uma única coisa serve a um único propósito particular. O padrão que delineia um comportamento emerge de uma rede de mecanismos interdependentes. Não se pode esperar que qualquer teoria (ou mecanismo) discreto “explique” completamente qualquer componente superficial, único a um comportamento ou a uma estrutura. O que uma teoria pode fazer, entretanto, é descrever algum fragmento dessa estrutura maior, formada de subsistemas em interação com a base. Como dedicar todo o tempo para reunir partes suas que flutuam ainda descoladas — mesmo sabendo que não há recomposição exata em nenhum instante?

12. /////

O humor, assim como os jogos e o absurdo, atende e explora muitas necessidades e mecanismos diferentes. Carece de limites naturais nítidos porque essas coisas subjacentes se sobrepõem e exploram umas às outras. Quando empregamos a palavra “humor”, temos a ilusão de designar algo mais nítido do que sugere essa complexa trama de relações entre o riso, o raciocínio, a falha, o tabu, as proibições e os inconscientes mecanismos de supressão. A própria clareza das palavras é em si uma ilusão.

A função das palavras é tão diversa quanto a das coisas.

13. /////

A linguagem funciona porque a simplificação excessiva é mais útil (ou econômica) do que a confusão realista de uma miragem no deserto.

Talvez por isso não haja comicidade fora do que é propriamente humano? Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia, porém jamais risível. Riremos de um animal, mas porque teremos surpreendido nele uma atitude humanizada ou certa expressão humana. Riremos de um chapéu, mas, no caso, o cômico não será um pedaço de feltro ou palha, senão a forma de um espectro humano. Já se definiu o humano como “um animal que ri”. Poderia também ter sido definido como um animal que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seria por semelhança com o ser humano?

14. /////

Considere o que acontece quando uma situação ou pensamento passa a ser percebido como engraçado ou absurdo: o raciocínio posterior é afogado em uma avalanche de atividade corpórea — movimentos furiosos ocorrem no tórax, abdômen, cabeça, membros, rosto e são acompanhados de grunhidos altos, chiados de ar e ruídos de asfixia. Para um marciano, uma crise epiléptica seria menos alarmante.

15. /////

O cômico parece só produzir o seu abalo sob a condição de que possa emergir na superfície de um indivíduo tranquilo e bem articulado — o que parece ser uma mentira. A indiferença é o ambiente natural do cômico. Paradoxalmente, o maior inimigo do riso é a emoção. Talvez não mais se chorasse numa sociedade em que só houvesse “inteligências”, mas provavelmente se risse. Por outro lado, almas sensíveis, afinadas em uníssono com a vida, numa sociedade onde tudo se estendesse em ressonância afetiva, nem conheceriam nem compreenderiam o riso.

16. /////

Agora, imagine-se afastado, assistindo à vida como um espectador neutro: muitos dramas se converterão em comédia. Basta taparmos os ouvidos ao som da música num salão de dança para que os dançarinos logo pareçam ridículos. Quantas ações humanas resistiriam a uma prova desse gênero? Não veríamos muitas delas passarem imediatamente do grave ao divertido se as isolássemos da música sentimental que as acompanha? Para produzir todo o seu efeito, o cômico parece exigir certa anestesia momentânea do coração, ele se destina à inteligência e a crueldade.

O riso atrapalha o raciocínio.

17. /////

A reação do riso é tão perturbadora que impede a mente de prosseguir no caminho proibido ou ridículo que outrora havia começado. Qualquer que seja essa linha de pensamento, a interrupção a impede de “levar a sério”, de agir de acordo com ela ou de considerar suas consequências lógicas.

18. /////

Não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados. O riso parece precisar de eco.

∗∗∗

Ouça bem, não se trata de um som articulado, nítido, acabado, mas de alguma coisa que se prolonga repercutindo aqui e ali, algo começando por um estalo e que continua em repetição — como o trovão nas montanhas. Essa repercussão, no entanto, não se prolonga ao infinito. Pode-se caminhar no interior de um círculo tão amplo quanto se queira, mas, ainda assim, ele sempre estará fechado. O nosso riso é sempre o riso de um grupo. Ele talvez nos ocorra no ônibus ou na mesa do bar ao ouvir pessoas contando casos que devem ser cômicos para elas, pois riem a valer. Teríamos rido se estivéssemos naquele grupo? Se não estamos, provavelmente não teremos vontade alguma de rir? Alguém a quem se perguntou por que não chorava ao ouvir uma prédica que a todos fazia derramar lágrimas, respondeu: “Eu não sou da paróquia”.

19. /////

O riso tende a corresponder a certas exigências da vida em comum. Ao mesmo tempo, o riso exerce outra função complementar.

O riso foca nossa atenção. Embora atrapalhe o raciocínio posterior, o riso exerce controle sobre o próprio pensamento, mantendo o absurdo em foco. Talvez o pensamento humorístico receba toda a atenção retendo a incongruência em alguma “memória de curto prazo”. O “humor” pode servir para mediar o processo no qual os censores aprendem, assim como o “prazer” costuma mediar o aprendizado depois do sofrimento.

20. /////

Por mais franco que se suponha o riso, ele oculta uma segunda intenção, como uma cumplicidade com outros galhofeiros, reais ou imaginários. Já se observou inúmeras vezes que o riso do espectador no teatro é tanto maior quanto mais cheia esteja a sala. Por outro lado, já se notou que muitos dos efeitos cômicos são intraduzíveis de uma língua para outra, relativos, pois, aos costumes e às ideias de certa sociedade. Daí as definições que tendem a fazer do cômico apenas uma relação abstrata, percebida entre ideias e palavras: um “contraste intelectual”, um “ato de crueldade”, um corte, um “gesto absurdo”.

21. /////