Afrofuturismo na Tarifa Zero
Exu matou um pássaro ontem
com uma pedra que só jogou hoje
PEDRA DORMENTE --- PEDRA DORMENTE / QUE A RIBEIRA DESPERTA / TRANSFORMADA EM SERPENTE
Comunicações & Concorrências, Néstor Gutiérrez
É comum falarmos, quando planejamos nossos destinos, que devemos caminhar no rumo do futuro que desejamos. A junção do espaço com o tempo pelo movimento é também uma forma de abordar a existência. Muitas vezes quando sonhamos, dormindo ou acordados, imaginamos a supervelocidade ou a capacidade de voar como formas que extrapolam nossos limites corporais mundanos. Todas essas imagens e figuras estão vinculadas a uma necessidade de mobilidade que está na essência da existência humana. Porém, para alguns povos, essa essência enfrenta profundos desafios. Estou falando dos povos de origem e ancestralidade africana, quando defrontam uma estrutura mundial de discriminação racial.
O racismo é um sistema de opressão secular que estrutura nossa sociedade. Uma forma de dominação que organiza as instituições, orienta as sociabilidades, produz baixas autoestimas, dor e sofrimento. Ele também tem um poder perverso de atribular nosso acesso ao passado, nossa observação do presente e nossa imaginação do futuro. Se basearmos a história pelas perspectivas racistas, o ontem será reduzido à escravidão; o hoje, à violência; o amanhã, ao extermínio.
Como disseram alguns dos nossos antigos, devemos lutar por todos os meios necessários. Não devemos nos restringir a atuar nos setores da sociedade em que a distinção social baseada em raça é mais evidente nem devemos deixar de atacar a ideologia dominante que busca reduzir o negro ao nada. Articulações antirracistas podem acontecer mesmo em setores da sociedade em que o tema não seja tão explícito. Com base nessa premissa, proponho aqui o encontro entre a imaginação afrofuturista e o combate à mobilidade racista no transporte. Mais especificamente, explorarei neste artigo a possibilidade de a Tarifa Zero, uma proposta de universalizar o acesso ao transporte coletivo, inscrever-se em uma ideia de futuro negro com horizonte de mobilidades antirracistas.
Uma apreciação ao Afrofuturismo
Temos contato com uma ideia distinta de futuro-passado-presente negro quando vemos o filme do Pantera negra ou lemos suas histórias em Wakanda. Também ao escutarmos Sun Ha, Erykah Badu, George Clinton e Parliament Funkadelic, Missy Elliot, Jorge Ben, Afrika Bambaataa, Ellen Oléria, Liniker. Quando lemos nos quadrinhos que En Saban Hur, o mais antigo dos mutantes, o Apocalipse, nasceu no Egito Antigo há milênios e sobrevive até hoje por utilizar tecnologias do futuro. Ou mesmo quando vemos aquele animê um pouco ruim sobre o Yasuke, no qual robôs, ciborgues, raios lasers aparecem de forma despropositada e meio cafona. Naqueles quadros maravilhosos de Basquiat. Também naquele filme do Michael Jackson em que ele vira um transformer, ou no clipe em que ele conquista Cleópatra. Ou, sei lá, quando vemos uma linda pixação, grafite e demais intervenções negras pelas ruas.
O Afrofuturismo, movimento literário, filosófico, estético, cultural, pop e imagético é, grosso modo, uma abordagem do passado e do futuro da humanidade que parte do ontológico vínculo entre o povo negro e a tecnologia. Trata-se da memória de que há milênios a população negra se desenvolve constituindo desde as tecnoculturas básicas (tais quais o círculo, a roda, a escrita, os objetos de manuseio com a natureza) até as grandes instituições sociais (tais quais as ciências, o urbanismo, as artes, o saneamento, o transporte, a comunicação, as instituições públicas) e religiosas (o vínculo com o sagrado, os procedimentos, rituais de organização com a ancestralidade e o mundo para além do que podemos ver). É parte do combate ao delírio eurocêntrico que tudo o que há de civilização, modernidade e tecnologia foi gestado nas instituições greco-romanas, conferindo à população branca e europeia a exclusividade do desenvolvimento social e científico — nada mais obtuso e colonial do que isso.
É também uma forma de desanuviar a observação de que o povo negro desenvolveu e organizou profundas estratégias contracoloniais com as quais combateu e se reorganizou nesse tenebroso período da história marcado por tráfico negreiro, saques e expropriações entre povos. Fez isso organizando a diáspora negra que enfrentou a escravidão, o racismo antinegro e o colonialismo. As religiões de matriz africana territorialmente organizadas em terreiros, a capoeira, o quilombo, o dengo, o samba, o frevo, o maracatu, o coco, o sertanejo são alguns exemplos mais conhecidos desses saberes complexos.
Além disso, o Afrofuturismo apresenta uma questão fundamental: se estamos falando de um futuro povo negro altamente vinculado à tecnologia, estamos informando ao futuro que sobreviveremos ao projeto genocida em curso, venceremos o racismo e desenvolveremos plenamente nossas capacidades, vocações e interesses. Ele também possibilita a compreensão de que nossa história é muito anterior à escravidão e que mesmo no período escravista nossa existência não foi reduzida àquilo. Nosso Axé é uma força superior a qualquer sistema de opressão. Ou seja, o Afrofuturismo é potente e poderoso porque, ao fazer ficção sobre o futuro, rememora o passado e instrumentaliza o presente. É uma arma de combate.
Entre o afrofuturo e a mobilidade antirracista
Essa arma tem sido utilizada como ferramenta principalmente do campo literário. Por meio da produção de futuros, passados, multiversos e outros presentes a diáspora negra tem se expandido para muito além. Podemos nos provocar, então, a utilizar esse arsenal afrofuturista em outras áreas que também utilizam a criação, proposição e imaginação como campo fértil de organização da população negra. O Afrofuturismo pode servir como linha de ação para a organização política, propostas de políticas públicas, ações sociais. Neste escrito, em específico, propomo-nos a explorar como esse movimento tecnocultural pode ajudar a lutar contra o racismo no transporte e na mobilidade urbana.
Compreende-se aqui que o transporte e a mobilidade urbana em nosso país, ao contrário do que se supõe conceitualmente, foram gestados concretamente como mecanismos de controle, dominação territorial e segregação racial nas cidades brasileiras. Ao contrário de realizarem o encontro e a fruição urbana, esse campo está organizado no Brasil sob as bases do racismo institucional. Essa compreensão baseia-se em alguns critérios, como a trajetória de constituição das cidades brasileiras em suas reformas higienistas;1 a constituição da mobilidade urbana nacional como uma tecnologia de reforçar os muros urbanos;2 a forma, o financiamento e o funcionamento do transporte coletivo urbano como um processo concreto de segregação e espoliação racial;3 os assombrosos marcadores raciais em sinistros envolvendo o transporte individual.4 Ou seja, as restrições e as dificuldades de deslocamento atuais nas cidades brasileiras são mecanismos de controle, dominação territorial e segregação racial.
Abordamos esta leitura em várias direções na publicação Mobilidade antirracista (2021), organizado por mim, Daniel Santini e Rafaela Albergaria. Ali estão elencadas uma diversidade de argumentos sobre o tema: a da violência sobre a mobilidade negra no transporte; da restrição racial na circulação urbana; do impacto da violência policial e carcerária no fluxo urbano de cor; o ataque racista a territórios negros; a realidade distinta da mobilidade para homens negros, mulheres negras, crianças, adolescentes e jovens; sobre a mediocridade da gestão do transporte e seus impactos letais na negritude. Enfim, a crítica da mobilidade racista está ali expressa em dimensões bem profundas.
Todavia o campo da mobilidade não foi constituído somente pela dinâmica segregadora de quem o domina; ele foi gestado em uma situação de conflito pela circulação na urbe na qual a segregação tem sido a ferramenta racista de repressão à circulação negra. O povo negro enfrenta esse conflito constituindo distintas formas de driblar esses muros e circular pelo espaço, ao mesmo tempo em que participa e realiza lutas públicas pela sua mobilidade.
É também no livro Mobilidade antirracista que encontramos algumas tecnologias de resistência e caminhos pelos quais o povo negro projetou um horizonte de futuro. Lutando contra as tarifas em manifestações da periferia ao centro; organizando e conquistando para a juventude negra o direito de circular; resistindo em territórios a partir das referências ancestrais; aquilombando-se das mais diferentes formas; nos terreiros das religiões de matriz africana; no movimento hip hop, no underground, na cultura negra; nas lutas contra exploração dos aplicativos; utilizando os saberes ancestrais de confluência e transfluência, aquelas que permitem que mantenhamos conexão com nosso passado ainda que destruam nossas referências materiais. A resistência negra na mobilidade está na poesia, na lírica, no verso, o lamento, na mandinga, na memória.
Compreendemos então, aqui, o campo da mobilidade como um espaço de constante disputa, na encruzilhada entre o projeto racista de controle, espoliação e extermínio da população afrodiaspórica contra o nosso desejo de circular, prospectar e realizar seu próprio caminho. O anseio negro por se movimentar conflita com a colonização do transporte. A mobilidade antirracista delineia-se justamente nas formas de movimentação preta frente o esforço colonial em controlar nossa localização e circulação.
É possível um Afrofuturo com a Tarifa Zero?
Trata-se agora de abordar os conflitos políticos em uma dimensão afrofuturista. Em especial a capacidade de propostas de políticas de movimentos sociais de instituir e instaurar, por meio da luta, horizontes de um futuro negro próspero. A Tarifa Zero, uma tecnologia social para o transporte, tem potencial de constituir-se como uma ferramenta antirracista e projetar a potência negra sobre o espaço? Essa proposta inscreve-se como uma ficção política que deve ser abraçada e imaginada pela diáspora negra contra o racismo?
Trata-se de uma proposta de reorganização da mobilidade para que ela tenha como protagonistas e definidores os setores de maioria negra. Porém, simultaneamente, trata-se de uma proposta política universalista para o transporte coletivo. Por Tarifa Zero ou Passe Livre Universal entendemos o funcionamento do transporte coletivo como um serviço público de fato. Ou seja: público, gratuito em seu uso, de qualidade. Um serviço que seja financiado com recursos progressivos (pagos pela parte mais rica da sociedade), gerido com mecanismos participativos e populares, no qual a decisão pelos caminhos da mobilidade seja definida prioritariamente por usuários/as, trabalhadores/as e vizinhanças vinculadas ao transporte coletivo. Como diz o Movimento Passe Livre, é “O Transporte pago pelos ricos e controlado pelo povo!”.
A adoção dessa política possibilita combater o racismo em múltiplas dimensões. A Tarifa Zero aumentaria significativamente o número e as possibilidades de viagens negras pela cidade. Um aumento desse tipo de circulação livre modifica sobremaneira as nossas oportunidades e criações. O impacto desse volume de encontros sobre os territórios negros seria significativo ao valorizar e dar chances de tantos eventos, festas, reuniões, mobilizações e celebrações nos distintos espaços onde o povo preto reside e existe. Também, ao garantir qualidade e prazer nos veículos, atacamos um trauma histórico que vincula o transporte coletivo ao navio negreiro, à humilhação secular de irmos pra onde não queremos por meios que odiamos. Estamos abrindo possibilidades de amar andar pela cidade, tomar conta dela, fazer dela abertamente terreno de nosso reencontro ancestral. Ao atacar a espoliação econômica racial pelo transporte, com financiamento feito pelos ricos, possibilitamos uma reparação antirracista com os custos sendo pagos por aqueles que por séculos lucraram com o controle da circulação negra. Por fim, realizarmos a gestão negra do transporte é passo fundamental para definirmos, desde nossos projetos, o futuro de por onde queremos e devemos caminhar.
Certamente existem outros tantos caminhos, situações e motivos para imaginarmos que a Tarifa Zero é uma tecnologia social de combate ao racismo. Justamente por isso conclui-se que se trata de uma política afrofuturista: ela é semente para pensarmos sobre nosso passado na mobilidade, nosso jeito presente de circular e, ainda, projetar um futuro em que o povo negro caminhe por onde quiser.